DESTAQUE – FESTA DO
“AVANTE!”
SEGUNDA-FEIRA, 6 SET 2004
Crítica
Música
Pianos de Abril
Mário Laginha e Bernardo Sassetti
Quinta
da Atalia, Festa do Avante. Sábado. 22h30
Recinto
cheio.
Volvidos
30 anos sobre a revolução de Abril o sinal radiofónico que desencadeou as
operações militares voltou a soar. Desta feita, porém, não para fazer avançar
os tanques e chaimites, mas os dois pianos, de Mário Laginha e Bernardo
Sassetti, na estreia oficial, ao vivo, sábado, na Festa do “Avante!”, de “Seis
Canções e Dois Pianos”, suite de temas incluída na edição discográfica
“Grândolas – A Revolução que começou com música”, alusiva ao 25 de Abril.
Frente a frente, em diálogo de
sensibilidades complementares, Laginha e Sassetti arrancaram novas “nuances” a
“Grândola, vila morena” e outras canções de José Afonso. Com o “auditório” 1º
de Maio à cunha, o fervor revolucionário deu lugar a outra espécie de luta onde
a música derrubou a ditadura das notas resignadas. A hora não era de gritos,
mas de se ouvir, com novos ouvidos, a música do autor de “O Coro dos
Tribunais”. Sob a luz fraca dos holofotes e com o desconforto da enorme tenda
de campanha que fez as vezes de auditório, fez-se silêncio para se ouvir um
outro Zeca Afonso.
“Chiu” – lançavam alguns mais
impacientes perante o entusiasmo mal contido de outros, provocado pela audição
de frases musicais mais facilmente identificáveis. Porque Sassetti e Laginha
não facilitaram, optando pelo desenvolvimento harmónico em profundidade ao
invés da reprodução superficial das melodias que todos conheciam de cor. O jazz
ditou as suas leis, como não podia deixar de ser, impregnando arranjos onde a
improvisação funcionou como ferramenta adicional de exploração.
De José Afonso os dois pianistas
interpretaram “Venham mais cinco”, “Era um redondo vocábulo”, “Traz outro amigo
também”, “Filhos da madrugada” e “Grândola, vila morena”, tocando, de permeio,
ainda “E depois do adeus” – juntamente com “Grândola” uma das canções que
serviu de senha ao golpe militar – e um surpreendente “Hino do MFA” reatado
como exemplo de lirismo.
Não se tratou, em suma, de uma
reprodução fiel do alinhamento do disco, uma vez que faltou “Canto moço” e
apareceram como novidades “Era um redondo vocábulo” e “Filhos da madrugada”,
mas de um périplo mais lato pela música de José Afonso, tornada nalguns casos praticamente
impossível de identificar fora do enquadramento do refrão, dada a complexidade
e natureza dos arranjos. Complexidade muitas vezes presente nas próprias composições
do cantautor, como fez questão de acentuar Bernardo Sassetti, salientando, no
entanto, a sua omnipresente fluidez.
Houve força e comunhão no
concerto. Dos dois pianistas com a música. De um com o outro. Sentiu-se como se
fosse um único e imenso intérprete de quatro mãos, de tal forma, as notas de
cada um se interligaram na perfeição. Crescendos que derivaram para a quase
dissonância, numa assunção do risco que José Afonso nunca desdenhou,
insistências e padrões minimalistas, envolvimentos harmónicos em espiral,
momentos de contemplação, o fazer e desfazer de “puzzles” rítmicos, criaram a
justa medida de uma música que assim se revelou fonte de mil e uma descobertas.
Na primeira metade do concerto foi um Laginha Keith Jarrettiano que fez valer a
agilidade da sua mão direita, a liderar solisticamente os acontecimentos.
Depois trocaram de piano e foi a vez de Sassetti, sob a inspiração de um Bill
Evans, se lançar no desenho das linhas melódicas mais em destaque. Em qualquer
dos casos sempre, um e outro, em comunicação estreita, oferecendo a cada tema
uma carga emocional intensa.
“Grândola, vila morena” foi assim
qualquer coisa de secreto, com dinâmica implosiva mas carregada de energia, no
anúncio de uma revolução que começa por ser interior e que a História se encarregou
de transformar em hino à liberdade.
Entusiasticamente aplaudidos,
Laginha e Sassetti tiveram direito a um “encore” e utilizaram-no com “We shall
overcome”, um espiritual que pontuou da melhor maneira o movimento dialético do
restante concerto.
EM RESUMO
Funcionando como um só, Laginha e
Sassetti recriaram de forma superlativa a força e o lirismo da música de José Afonso,
acrescentando-lhes a complexidade de arranjos jazzísticos marcados pela intensidade
emocional
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