11/03/2020

Programa de luxo nos três dias do festival de Sines


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 29 JUL 2004

Programa de luxo nos três dias do festival de Sines

Música de todas as cores e para todos os gostos no programa deste ano do Festival Músicas no Mundo

O Festival Músicas do Mundo de Sines deste ano privilegia a diversidade sem cair no populismo. O mesmo é dizer que o programa é de luxo. Ronda dos Quatro Caminhos, Warsaw Village Band, Savina Yannatou, David Murray com Pharoah Sanders, Tom Zé, Septeto Roberto Rodriguez, Rokia Traoré, Femi Kuti. Nomes acima de qualquer suspeita dão garantias de qualidade e pluralidade de estilos. Hoje, amanhã e sábado, como sempre com um cenário condigno, no interior das ameias do castelo, com entrada gratuita e início às 21h30.
            Tudo começará esta noite com a grandiosidade que a junção do “cante” alentejano com uma orquestra proporciona. “Terra de Abrigo” é a proposta ambiciosa que a Ronda dos Quatro Caminhos leva a Sines, um trabalho de fusão que fará subir ao palco do festival os grupos corais alentejanos de Moura, Campo Maior, Évora, Serpa, Baleizão e Aldeia Nova de São Bento e a Sinfonietta de Lisboa, orquestra de 30 elementos com direção de Vasco Pearce de Azevedo.
            Na senda dos suecos Hedningarna, os polacos Warsaw Village Band cultivam a dissidência e a mestiçagem entre as linguagens tradicionais e elementos da pop e da tecno. São três rapazes e três raparigas que um dia se meteram à aventura de descobrir as raízes seguindo por um caminho proibido. Na Mazóvia, coração do país, encontraram o que buscavam, canções de casamento, canções de protesto, baladas de amor. A tradução para os tempos modernos é que se faz de modo alternativo, mesmo que em palco vão estar instrumentos tradicionais como a “Suka” ou que o grupo utilize uma forma peculiar de canto chamada “canto branco”. A finalidade, porém, não é a exibição das peças de um museu mas conseguir provocar no ouvinte, com o recurso a instrumentação acústica, o mesmo tipo de hipnose provocada pela música eletrónica de dança. Já chamaram “biotecno” a este estilo, que pode ser apreciado no álbum “People’s Spring”.

Uma voz cativante
Savina Yannatou vem da Grécia para nos levar para o Olimpo. Quem já a ouviu e viu cantar ao vivo em Portugal há-de sentir de novo um arrepio na espinha, de tal forma o seu canto é arrebatador. A pose hierática de onde se eleva uma voz absolutamente cativante, juntamente com a sua fotogenia, criam a imagem de uma deusa. Savina, autora de álbuns como “Mediterrânea”, “Virgin Maries of the World” e “Terra Nostra”, virá acompanhada do grupo Primavera em Salónica. O canto de Savina é o canto da sereia. Em Sines serão estreados temas do próximo disco.
            David Murray vem ao festival de Sines pela terceira vez. Desta feita na companhia de Pharoah Sanders, um dos mais ilustres herdeiros de Coltrane, para apresentar o “ka” de Guadalupe. Os tambores “ka” suportarão o canto em crioulo e o som quente dos dois saxofones. Tanto Murray como Sanders nunca se afastaram muito das raízes africanas e de uma postura equidistante do jazz e da “world music”. Murray dedicara-se já à música de Guadalupe nos álbuns “Creole”, “Yonn-Dé” e “Gwotet”, este último o seu mais recente trabalho.
            Tom Zé é o mais radical dos tropicalistas brasileiros. Reza a lenda que no final dos anos 80, quando o Brasil parecia tê-lo esquecido, quis voltar para trabalhar na bomba de gasolina do sobrinho. Mas mesmo que tal tivesse acontecido, Tom Zé continuaria a reinventar a sua música, construindo os seus próprios instrumentos. Nasceu na Baía e interessou-se pelo folclore local mas desde cedo aprendeu a misturá-lo com a pop e a música contemporânea. Participou, com os papas do tropicalismo, no álbum-manifesto “Tropicália ou Panis et Circensis”. Posteriormente o mercado ignora-o, acusando-o de demasiado politizado e experimental mas Tom Zé não desiste. Finalmente, em 1989, David Byrne descobre a sua música e convida-o para gravar para a sua editora, a Luaka Bop. O “Best of” que aí grava é considerado pela revista “Rolling Stone” um dos dez melhores discos da década. As suas mais recentes produções são o álbum “Jornalismo Falado” e o DVD “Jogos de Armar”.

O tigre do “afrobeat”
Quando era pequeno, o avô costumava levar Roberto Rodriguez a ver os velhos judeus a dançar ritmos cubanos na praia de Miami. Tanto bastou para que este cubano inventasse um estilo híbrido, mistura do “klezmer” judaico com as “habaneras” cubanas, a salsa-klezmer. Rodriguez, cubano de nascimento, integrou o projeto “Cubanos Postizos”, do guitarrista hebreu americano Marc Ribot, aproximando-se da chamada Radical Jewish Cultura de Nova Iorque, onde o klezmer se entrega a ligações licenciosas com o jazz e o rock. Tocou com John Zorn, outro paladino da cultura ídiche, e gravou os álbuns “Danzón de Moises”, onde combina a “guajira” espanhola com o “danzón” francês para criar uma aproximação bizarra ao tango, e o novo, intitulado “Baila Gitano Baila”, a apresentar no festival.
            Criada musicalmente num caldeirão para onde atiraram o “jazz”, a música clássica e a pop, a cantora Rokia Traoré, do Mali (país natal de Oumou Sangaré e Ali Farka Touré), é sinónimo de delicadeza, mesmo quando na sua música, por vezes minimalista, as palavras falam de temas tabu como infâncias difíceis ou os direitos da mulher africana. Editou os discos “Mouneissa”, “Wanita” e “Bowboi”, premiado pela crítica da BBC.
            “Filho de tigre tigre é”, diz um velho provérbio ioruba. Femi Kuti é filho de um tigre, Fela Kuti, criador do “afrobeat”, mescla de ritmos tradicionais africanos, “funk” e jazz de vanguarda. Femi tocou saxofone alto na banda do pai, os Egypt 80, e é nela que desenvolve o mesmo tipo de postura politicamente interventiva de Fela. Dirigiu o grupo enquanto o pai esteve preso, mas após a sua libertação e regresso à banda Femi abandona-os para formar os The Positive Force. Após a morte de Fela Kuti, em 1997, Femi Kuti prosseguiu, embora de forma mais discreta, a mesma luta, abordando temas como a sida e a corrupção. A sonoridade que caracteriza os seus discos, “Shoki Shoki” e “Fight to Win”, é igualmente herdada do pai, pelo que Sines irá vibrar, sob as luzes e o clamor do fogo-de-artifício, ao som do apelo festivo do “afrobeat”.

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