BLUES
DISCOS
PÚBLICO
17 JULHO 2004
Martin Scorsese Presents the Blues
junta bandas sonoras e antologias com ‘blues’ do primitivo ao mais ousado.
O
blues segundo Scorsese
“Martin
Scorsese Presents the Blues” começou por ser uma série de televisão americana apresentada
em 2003 no canal PBS, sendo posteriormente editado em DVD, projeto
supervisionado pelo realizador que antes já apresentara “The Blues”, reunindo
sete longas-metragens sobre o “blues”, de realizadores como Wim Wenders (“The
Soul of a Man”), Richard Pearce (“The Road to Memphis”), Charles Burnett
(“Warming by the Devil’s Fire”), Marc Levin (“Godfathers and Sons”), Mike
Figgis (“Red, White & Blues”), Clint Eastwood (“Piano Blues”) e o próprio
Scorsese (“Feel Like Going Home”). Tema fulcral: a evolução do “blues”, do
regionalismo folk para uma linguagem universal. Motivo pelo qual as diversas
antologias não apresentam exclusivamente “bluesmen” clássicos, integrando artistas
de outras áreas musicais como o jazz, a pop e o rock.
Entretanto, a série expandiu-se numa
coleção mais vasta de CD que além de inclusão de algumas destas bandas sonoras
apresenta antologias de músicos individuais, dos mais antigos como Son House e
Robert Johnson a contemporâneos como Eric Clapton ou os Allman Brothers Band.
Os “blues” são deste modo exemplificados nos mais variados contextos e facetas em
gravações, algumas delas raras, que recuperam as raízes, ou as transformam, para
demonstrar a perenidade de uma música que está na origem quer do rock quer do
jazz.
Eddie James, Son House, mal se
consegue fazer ouvir entre os ruídos das suas gravações dos anos 30, mas a
força da sua voz e as marcações rítmicas da sua guitarra passam incólumes.
Acompanhado nalguns temas por Leroy Williams (harmónica), Willie Brown (guitarra)
e Fiddlin’ Joe Martin (bandolim), Son House foi um dos precursores e o mestre
de um mestre, Robert Johnson. As gravações originais aqui compiladas avançam
até aos anos 40 e à derradeira sessão de 1965 – o “blues” do delta do
Mississípi, por um dos seus expoentes.
O seu discípulo e uma das lendas do
“blues” do delta, Robert Johnson, foi igualmente merecedor de uma antologia.
Imitar o estilo dos mais velhos era uma das coisas que Johnson fazia no início
de carreira. Son House incentivou-o a abandonar a cópia: “Não faças isso,
Robert, pões as pessoas malucas. Não consegues tocar nada!” O jovem Robert
acabou por desenvolver o seu próprio estilo mas foi como cantor que a sua
personalidade se impôs. “Quando regressar de novo, haverá uma longa história
para contar”, canta em “From four until late”. Histórias de dor e solidão (“Come
on in my kitchen” é pungente, um homem e uma mulher tentam anular a distância
que os separa), de partidas e chegadas, de vivências extremas como só o “blues”
sabe contar.
A eletricidade entra em cena em Taj
Mahal e no mais novo Keb’Mo’. Keb’Mo’ é Kevin Moore e o seu “blues” está mais
próximo do rhythm‘n’blues, embora não descure o “blues” mais clássico sendo
interessante, por exemplo, fazer a comparação da sua versão de “Come on in my
kitchen” com o original de Robert Johnson. Keb’Mo’ abre o som, confere-lhe
outro “drive”, aproveitando a sonoridade de um órgão eletrónico. Mas
“Peerpetual blues machine”, em guitarra acústica, permite a reconciliação.
Pureza e “swing” imaculados. Há temas mais “gospel” e algumas concessões a
piscarem o olho aos prémios Grammy. Mas Keb’Mo é um extrovertido por natureza e
diz-nos coisas como estas: “O comentário que se ouve mais vezes de pessoas que
não sabem de ‘blues’ é que a música é boa mas demasiado deprimente. Concordo em
certa medida. As canções de ‘blues’ são amiúde tristes em termos dos assuntos
que abordam. Mas para mim são um meio de cura. Existem para trazer alegria, não
desgosto, para nos ajudarem a compreender que não estamos sós naquilo que
sentimos.” A compilação reúne temas dos seus álbuns “Just like you” e “Slow
Down”, bem como um inédito, “Peace of mind”.
Taj Mahal também tem um pé no rhythm
‘n’ blues e outro na “soul” (ele gosta de ouvir Marvin Gaye, Stevie Wonder e os
Tempations). Henry Saint Clair Fredericks escolheu chamar-se Taj Mahal porque
quis que as pessoas pensassem em algo “inspirador” e “grandioso”. Com a maior
parte do material recolhido do final dos anos 60, este “Presents” abarca desde
baladas pop e espirituais ao rock e ao “boogie”. Seja qual for o registo, é
visível a personalidade do excêntrico para quem o “blues” é o fio condutor de
todos os caminhos da alma.
Grande disco é o disco que Scorsese
dedicou a uma grande senhora: Bessie Smith. Com origem no “vaudeville”, o acompanhamento
de um piano e os vapores inebriantes do álcool, Bessie vai ao fundo da questão.
É uma voz de contralto que ora afaga ora arranha, estendendo os tempos,
forçando o espírito a segui-la no que cantava com uma expressividade rara. O
som deficiente aqui é “patine”, atirando-nos para a época dos musicais e das
revistas, apagando a imagem característica do “blues” personificado por um
homem e a sua guitarra. Bessie cantava como se dançasse, enlaçando-nos ora num
estado de exaltação, ora no abraço de uma imensa tristeza. Retenham-se momentos
como “St. Louis blues” e “The yellow dog blues”, onde o “swing” emerge das
profundezas desta mulher que fez a transição do “blues” rural e do ambiente de
variedades para as divas clássicas como Billie Holiday e Ella Fitzgerald.
Das bandas sonoras que integram
“Martin Scorsese Presents the Blues”, chegaram-nos quatro: “The Soul of a Man”,
“Warming by the Devil’s Fire”, “Piano Blues” e “Feel like Going Home”. As seleções
são diversificadas na forma e no espírito. A de “The Soul of a Man”, de Wim Wenders,
poderá chocar os puristas, fazendo ombrear Blind Willie Johnson, John Mayall,
J.B. Lenoir, Cassandra Wilson e Shemekia Copeland com Lou Reed, Nick Cave, Los
Lobos, Beck, Lucinda Williams, Jon Spencer Blues Explosion, Marc Ribot, Bonnie Rait
e Garland Jeffreys. O “blues” recebe tratos de polé, é verdade, mas o todo acaba
por se ouvir como uma rendição heterodoxa. E se Lou Reed pura e simplesmente mostra
que o seu universo é outro, enquanto Beck reduz o “blues” a um pastiche/citação
que roça o anedótico, já as interpretações de Lucinda Williams, T Bone Burnett
ou Jon Spencer têm raça e a cor certa do “blues”. E John Mayall a recordar-nos
que foi e continua a ser o mais ilustre dos “bluesmen” brancos, com um notável “The
death of J.B. Lenoir”. A visão de Marc Ribot tem o efeito curioso de nos fazer justapor
imaginariamente a guitarra mais primitiva à experimentação mais radical.
“Warming by the Devil’s Fire” é pura
dialética. O confronto de duas gerações do Sul profundo com duas espécies de
religiosidade distintas. Um jovem prepara-se para fazer a profissão de fé na
Igreja e dois caminhos se lhe deparam. Seguir a via ortodoxa do “gospel” celestial
ou o endemoninhado carreiro dos “blues”, mais escuros e sanguíneos. Na banda
sonora deparamo-nos com Jelly Roll Morton, Ma Rainey, Son House, Billie
Holiday, Robert Johnson, Bessie Smith, Sonny Boy Williamson, Elmore James,
Muddy Waters, W.C. Handy, Charley Patton, Sister Rosetta Tharpe e John Lee
Hooker, entre outros. Aqui não há ousadias nem transgressões senão aquelas que
são parte integrante da tradição e dos seus mensageiros.
“Gosto da imagem do pianista. O
pianista senta-se, conta a sua história, levanta-se e vai-se embora, deixando a
música falar por si própria”, diz Clint Eastwood a propósito do tema escolhido para
o seu “Piano Blues”. O piano é o rei e conta as suas histórias através do
“boogie woogie” do “ragtime” mas também das construções mais complexas de Art
Tatum, Duke Ellington (com Charles Mingus e Max Roach) e Thelonious Monk, entrecortadas
por pausas vocais como a deliciosa interpretação de Johnny Moore’s Three
Blazers para “Driftin’ blues” ou “The fat man”, de Fats Domino, a demonstrar que
o rock‘n’roll jamais poderia existir sem a respiração do “blues”. Professor Longhair,
Ray Charles e o piano “honky tonk” vudu com raízes no “bayou” de Dr. John fazem
igualmente parte da coletânea.
Scorsese descobriu os “blues”
através do rock, mas em “Feel like Going Home” percorre o caminho inverso em
busca da raiz mais antiga, a África. Uma viagem de ida e volta com Corey Harris
a servir de guia. Há ritmo de batuque em Johnny Shines, negritude absoluta em
Robert Johnson. Há o “blues” realmente africano de Ali Farka Touré e Salif
Keita. Das quatro, é a banda sonora mais fiel às origens, onde o blues vibra como
corda primordial em vozes e guitarras (mas também a flauta de Otha Turner) dos
primórdios. Taj Mahal, Muddy Waters, Son House, Lead Belly e John Lee Hooker,
entre outros, não mentem: o regresso às raízes é o regresso a casa. Sentimos
isso ao ouvir os seus “blues”, tão simples como isto: os velhos 12 compassos
que nos sacodem por dentro como as vagas do dilúvio.
Martin
Scorsese Presents the Blues
SON HOUSE
7
| 10
ROBERT JOHNSON
8
| 10
TAJ MAHAL
7
| 10
KEB’MO’
7
| 10
BESSIE SMITH
8
| 10
BSO “THE SOUL OF A MAN”
7
| 10
BSO “Warming by the Devil’s
Fire”
7
| 10
BSO “Piano Blues”
7
| 10
BSO “Feel Like Going Home”
8
| 10
Todos
Columbia Legacy, distri. Sony Music
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