02/03/2020

O blues segundo Scorsese


BLUES
DISCOS
PÚBLICO 17 JULHO 2004

Martin Scorsese Presents the Blues junta bandas sonoras e antologias com ‘blues’ do primitivo ao mais ousado.

O blues segundo Scorsese

“Martin Scorsese Presents the Blues” começou por ser uma série de televisão americana apresentada em 2003 no canal PBS, sendo posteriormente editado em DVD, projeto supervisionado pelo realizador que antes já apresentara “The Blues”, reunindo sete longas-metragens sobre o “blues”, de realizadores como Wim Wenders (“The Soul of a Man”), Richard Pearce (“The Road to Memphis”), Charles Burnett (“Warming by the Devil’s Fire”), Marc Levin (“Godfathers and Sons”), Mike Figgis (“Red, White & Blues”), Clint Eastwood (“Piano Blues”) e o próprio Scorsese (“Feel Like Going Home”). Tema fulcral: a evolução do “blues”, do regionalismo folk para uma linguagem universal. Motivo pelo qual as diversas antologias não apresentam exclusivamente “bluesmen” clássicos, integrando artistas de outras áreas musicais como o jazz, a pop e o rock.
            Entretanto, a série expandiu-se numa coleção mais vasta de CD que além de inclusão de algumas destas bandas sonoras apresenta antologias de músicos individuais, dos mais antigos como Son House e Robert Johnson a contemporâneos como Eric Clapton ou os Allman Brothers Band. Os “blues” são deste modo exemplificados nos mais variados contextos e facetas em gravações, algumas delas raras, que recuperam as raízes, ou as transformam, para demonstrar a perenidade de uma música que está na origem quer do rock quer do jazz.
            Eddie James, Son House, mal se consegue fazer ouvir entre os ruídos das suas gravações dos anos 30, mas a força da sua voz e as marcações rítmicas da sua guitarra passam incólumes. Acompanhado nalguns temas por Leroy Williams (harmónica), Willie Brown (guitarra) e Fiddlin’ Joe Martin (bandolim), Son House foi um dos precursores e o mestre de um mestre, Robert Johnson. As gravações originais aqui compiladas avançam até aos anos 40 e à derradeira sessão de 1965 – o “blues” do delta do Mississípi, por um dos seus expoentes.
            O seu discípulo e uma das lendas do “blues” do delta, Robert Johnson, foi igualmente merecedor de uma antologia. Imitar o estilo dos mais velhos era uma das coisas que Johnson fazia no início de carreira. Son House incentivou-o a abandonar a cópia: “Não faças isso, Robert, pões as pessoas malucas. Não consegues tocar nada!” O jovem Robert acabou por desenvolver o seu próprio estilo mas foi como cantor que a sua personalidade se impôs. “Quando regressar de novo, haverá uma longa história para contar”, canta em “From four until late”. Histórias de dor e solidão (“Come on in my kitchen” é pungente, um homem e uma mulher tentam anular a distância que os separa), de partidas e chegadas, de vivências extremas como só o “blues” sabe contar.
            A eletricidade entra em cena em Taj Mahal e no mais novo Keb’Mo’. Keb’Mo’ é Kevin Moore e o seu “blues” está mais próximo do rhythm‘n’blues, embora não descure o “blues” mais clássico sendo interessante, por exemplo, fazer a comparação da sua versão de “Come on in my kitchen” com o original de Robert Johnson. Keb’Mo’ abre o som, confere-lhe outro “drive”, aproveitando a sonoridade de um órgão eletrónico. Mas “Peerpetual blues machine”, em guitarra acústica, permite a reconciliação. Pureza e “swing” imaculados. Há temas mais “gospel” e algumas concessões a piscarem o olho aos prémios Grammy. Mas Keb’Mo é um extrovertido por natureza e diz-nos coisas como estas: “O comentário que se ouve mais vezes de pessoas que não sabem de ‘blues’ é que a música é boa mas demasiado deprimente. Concordo em certa medida. As canções de ‘blues’ são amiúde tristes em termos dos assuntos que abordam. Mas para mim são um meio de cura. Existem para trazer alegria, não desgosto, para nos ajudarem a compreender que não estamos sós naquilo que sentimos.” A compilação reúne temas dos seus álbuns “Just like you” e “Slow Down”, bem como um inédito, “Peace of mind”.
            Taj Mahal também tem um pé no rhythm ‘n’ blues e outro na “soul” (ele gosta de ouvir Marvin Gaye, Stevie Wonder e os Tempations). Henry Saint Clair Fredericks escolheu chamar-se Taj Mahal porque quis que as pessoas pensassem em algo “inspirador” e “grandioso”. Com a maior parte do material recolhido do final dos anos 60, este “Presents” abarca desde baladas pop e espirituais ao rock e ao “boogie”. Seja qual for o registo, é visível a personalidade do excêntrico para quem o “blues” é o fio condutor de todos os caminhos da alma.
            Grande disco é o disco que Scorsese dedicou a uma grande senhora: Bessie Smith. Com origem no “vaudeville”, o acompanhamento de um piano e os vapores inebriantes do álcool, Bessie vai ao fundo da questão. É uma voz de contralto que ora afaga ora arranha, estendendo os tempos, forçando o espírito a segui-la no que cantava com uma expressividade rara. O som deficiente aqui é “patine”, atirando-nos para a época dos musicais e das revistas, apagando a imagem característica do “blues” personificado por um homem e a sua guitarra. Bessie cantava como se dançasse, enlaçando-nos ora num estado de exaltação, ora no abraço de uma imensa tristeza. Retenham-se momentos como “St. Louis blues” e “The yellow dog blues”, onde o “swing” emerge das profundezas desta mulher que fez a transição do “blues” rural e do ambiente de variedades para as divas clássicas como Billie Holiday e Ella Fitzgerald.
            Das bandas sonoras que integram “Martin Scorsese Presents the Blues”, chegaram-nos quatro: “The Soul of a Man”, “Warming by the Devil’s Fire”, “Piano Blues” e “Feel like Going Home”. As seleções são diversificadas na forma e no espírito. A de “The Soul of a Man”, de Wim Wenders, poderá chocar os puristas, fazendo ombrear Blind Willie Johnson, John Mayall, J.B. Lenoir, Cassandra Wilson e Shemekia Copeland com Lou Reed, Nick Cave, Los Lobos, Beck, Lucinda Williams, Jon Spencer Blues Explosion, Marc Ribot, Bonnie Rait e Garland Jeffreys. O “blues” recebe tratos de polé, é verdade, mas o todo acaba por se ouvir como uma rendição heterodoxa. E se Lou Reed pura e simplesmente mostra que o seu universo é outro, enquanto Beck reduz o “blues” a um pastiche/citação que roça o anedótico, já as interpretações de Lucinda Williams, T Bone Burnett ou Jon Spencer têm raça e a cor certa do “blues”. E John Mayall a recordar-nos que foi e continua a ser o mais ilustre dos “bluesmen” brancos, com um notável “The death of J.B. Lenoir”. A visão de Marc Ribot tem o efeito curioso de nos fazer justapor imaginariamente a guitarra mais primitiva à experimentação mais radical.
            “Warming by the Devil’s Fire” é pura dialética. O confronto de duas gerações do Sul profundo com duas espécies de religiosidade distintas. Um jovem prepara-se para fazer a profissão de fé na Igreja e dois caminhos se lhe deparam. Seguir a via ortodoxa do “gospel” celestial ou o endemoninhado carreiro dos “blues”, mais escuros e sanguíneos. Na banda sonora deparamo-nos com Jelly Roll Morton, Ma Rainey, Son House, Billie Holiday, Robert Johnson, Bessie Smith, Sonny Boy Williamson, Elmore James, Muddy Waters, W.C. Handy, Charley Patton, Sister Rosetta Tharpe e John Lee Hooker, entre outros. Aqui não há ousadias nem transgressões senão aquelas que são parte integrante da tradição e dos seus mensageiros.
            “Gosto da imagem do pianista. O pianista senta-se, conta a sua história, levanta-se e vai-se embora, deixando a música falar por si própria”, diz Clint Eastwood a propósito do tema escolhido para o seu “Piano Blues”. O piano é o rei e conta as suas histórias através do “boogie woogie” do “ragtime” mas também das construções mais complexas de Art Tatum, Duke Ellington (com Charles Mingus e Max Roach) e Thelonious Monk, entrecortadas por pausas vocais como a deliciosa interpretação de Johnny Moore’s Three Blazers para “Driftin’ blues” ou “The fat man”, de Fats Domino, a demonstrar que o rock‘n’roll jamais poderia existir sem a respiração do “blues”. Professor Longhair, Ray Charles e o piano “honky tonk” vudu com raízes no “bayou” de Dr. John fazem igualmente parte da coletânea.
            Scorsese descobriu os “blues” através do rock, mas em “Feel like Going Home” percorre o caminho inverso em busca da raiz mais antiga, a África. Uma viagem de ida e volta com Corey Harris a servir de guia. Há ritmo de batuque em Johnny Shines, negritude absoluta em Robert Johnson. Há o “blues” realmente africano de Ali Farka Touré e Salif Keita. Das quatro, é a banda sonora mais fiel às origens, onde o blues vibra como corda primordial em vozes e guitarras (mas também a flauta de Otha Turner) dos primórdios. Taj Mahal, Muddy Waters, Son House, Lead Belly e John Lee Hooker, entre outros, não mentem: o regresso às raízes é o regresso a casa. Sentimos isso ao ouvir os seus “blues”, tão simples como isto: os velhos 12 compassos que nos sacodem por dentro como as vagas do dilúvio.

Martin Scorsese Presents the Blues

SON HOUSE
7 | 10

ROBERT JOHNSON
8 | 10

TAJ MAHAL
7 | 10

KEB’MO’
7 | 10

BESSIE SMITH
8 | 10

BSO “THE SOUL OF A MAN”
7 | 10

BSO “Warming by the Devil’s Fire”
7 | 10

BSO “Piano Blues”
7 | 10

BSO “Feel Like Going Home”
8 | 10

Todos Columbia Legacy, distri. Sony Music

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