24/02/2020

Encontro do fado com a música árabe


CULTURA
SEXTA-FEIRA, 16 JULHO 2004


Encontro do fado com a música árabe

CONCERTO “REGRESSOS” NO TEATRO S. JOÃO

Camané, Argentina Santos, Rabih Abou-Khalil, Ricardo Pais. Um quadrado mágico para recriar um encontro de duas culturas musicais mais próximas do que se possa pensar

Regressa-se com vontade aonde se foi feliz. Regressar é voltar. Mas, para além desse retorno a uma matriz, voltar é também rodear e transgredir. O que se aplica ao que hoje e amanhã se passará no Teatro Nacional S. João, no Porto, quando subirem ao palco os fadistas Camané e Argentina Santos e o libanês, tocador de alude árabe, Rabih Abou-Khalil, no espetáculo “Regressos”, com direção cénica de Ricardo Pais. De um lado o fado, pertencente a duas gerações distintas, do outro o taqasim, a improvisação como é praticada na música árabe.
            O espetáculo será dividido em três partes, atuando cada artista individualmente. O mais interessante poderá acontecer no final, quando o músico árabe e Camané partilharem atmosferas e estados de alma juntos. Para Ricardo Pais será ainda a revisitação do fado, depois do espetáculo que encenou em 1997, “Raízes Rurais, Paixões Urbanas”. Camané é a mais profunda e emblemática voz do fado no masculino da atualidade. Na sua expressão mais sentida e genuína. A de dar voz à alma dos verdadeiros fadistas. Camané gravou os álbuns “Uma Noite de Fados”, “Na Linha da Vida”, “Esta Coisa da Alma”, “Pelo Dia Dentro” e “Como Sempre… Como Dantes”, cada um deles uma renovada etapa numa evolução que visa atingir o âmago da poesia, da vida e do fado.
            Argentina Santos é o fado na sua forma mais instintiva, castiça e emocionalmente arrebatadora. A proprietária (e, às vezes, também cozinheira) do Parreirinha de Alfama cultiva no seu canto o contraste entre os graves telúricos e pujantes e ornamentações, na zona dos agudos, tão límpidos como os de uma ave canora. Houve quem a comparasse à diva egípcia Oum Khalsoum. Rabih Abou-Khalil é um “virtuose” do “’ud”, ou alaúde árabe. Virtuoso não no sentido meramente exibicionista do termo, mas no modo como sabe fazer vibrar as cordas interiores. Improvisador nato, a sua música cultiva a fusão da música árabe com o jazz, como está registada nos múltiplos CDs que tem gravado na Enja. Admirador de Portugal – onde diz que gostaria de viver –, Khalil conhece e sente o fado, bem como as ressonâncias que a palavra “saudade” pode provocar, não tão afastadas como isso da música árabe.

Um sul iluminado por mais que um sol
Desta convergência entre três personalidades, apesar de tudo, diferentes, resultará não se sabe exatamente o quê, mas decerto terá a ver com sangue e luz, pedra e cal, vielas e deserto. Ao toque das respetivas sensibilidades poderá irromper um sul iluminado por mais do que um sol.
            Camané interpretará, na 2.ª parte, um reportório de fado tradicional. “Será uma parte pequena, vou cantar poucos temas, oito ou nove”, diz. O mais interessante ou o mais curioso, virá no fim, quando o fadista juntar a sua voz ao alaúde do músico árabe. “À partida só será um tema, mas poderão ser dois”. Para isso decorreram já ensaios em Paris. “Foi um trabalho difícil, é muito difícil cantar os temas dele, é uma linguagem completamente diferente da nossa, as músicas são feitas em melodia, é preciso decorar cada nota, aquilo é tocado praticamente em uníssono com a minha voz”. As palavras foram escritas por Jacinto Lucas Pires “sobre aquela música”: “Funciona muito bem, embora pareçam coisas diferentes, vai soar um bocado estranho, mas, se calhar, é isso que faz sentido”, garante o fadista.
            A ideia desta colaboração surgiu do próprio Abou-Khalil: “A última vez que esteve em Portugal ouviu os meus discos e gostou imenso, acabámos por nos encontrar num jantar no Parreirinha de Alfama, começámos a falar…”. No dia seguinte, estavam ambos a ensaiar no hotel: “Eu a ouvir a música dele e ele a minha”, lembra Camané. A ajuda para fazer a parceria funcionar poderá ter vindo de onde menos se esperava, quando Camané ouviu a cantora egípcia Oum Kalsoum. “Fiquei todo arrepiado, embora não percebesse nada da língua. É precisamente esse registo que eu não tenho para cantar aquela canção. A forma de cantar, até mesmo como terminam as frases, é completamente diferente. Foi isso que eu tive que encontrar. É engraçado, porque, no caso dela, há um tema base melódico, depois ela vai cantando de maneiras diferentes, repetindo sempre o mesmo refrão. É incrível!”.
            Rabih Abou-Khalil é um músico para quem a pureza é algo inatingível. “Açúcar puro, sal puro, não acho que exista qualquer cultura com esse grau de pureza”. Nem isso será o mais importante no seu trabalho, onde a improvisação joga um papel primordial. Álbuns como “The Blue Camel”, “Al-Jadida”, “The Sultan’s Picnic”, “Tarab” ou o novo “Morton’s Foot (que fornecerá o maior parte do reportório à apresentação do seu grupo) só aparentemente praticam um idioma jazzístico, como também só aparentemente se submetem aos cânones da música tradicional árabe. Khalil é um conhecedor do fado – “interessa-me o contexto poético” –, tem em casa uma quantidade de discos de Amália, claro, mas também uma boa coleção de compilações. Foi quando veio a Portugal pela primeira vez que o alaudista começou a interessar-se pela cultura portuguesa e pelo fado. A música de Camané, conheceu-a num festival na Alemanha e, mais tarde, ouviu-o em Monsaraz. “Achei que era um cantor de fado muito bom, mas na altura não sabia ainda o seu nome”. No fado e na música árabe encontra uma ponte a unir os dois, e essa ponte é “o elemento nostálgico”. “Sempre que dou a ouvir fado a um árabe, ele gosta”, garante. A saudade? “Sim, um estado de alma, até temos em árabe uma palavra para dizer o mesmo, ‘Tarab’”.

“Regressos: O fado não está só”
Com Argentina Santos, Camané e Rabih Abou-Khalil Group
Direção cénica de Ricardo Pais
PORTO Teatro Nacional S. João. Tel.: 800 108 675/ 223 401 900. Hoje e amanhã, às 21h30. Bilhetes a 10 e 15 euros.

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