24/02/2020

Os elefantes têm a cabeça macia [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 8 JULHO 2004

Frames é a jóia da coroa de um lote de discos de uma editora, a Ogun, que contrapõe músicos ingleses e sul-africanos.

Os elefantes têm a cabeça macia

Cruzaram-se na Ogun, deram-se bem. Nesta editora que tem vindo a divulgar o melhor do jazz inglês, desde os anos 70 e da “Free music” até aos dias de hoje, músicos ingleses e sul-africanos dão-se as mãos, que é como quem diz, trocam de jazz, numa síntese de sons e sensibilidades da qual têm resultado trabalhos de grande qualidade.
            Principal ponto de encontro: a Chris McGregor’s Brotherhood of Breath, “big band” liderada pelo pianista Chris McGregor. Nela pontificam alguns dos principais nomes do jazz da África do Sul, como Louis Moholo, Radu Malfatti, Dudu Pukwana e Mongezi Feza, além do próprio McGregor, enquanto os ingleses se fazem representar por Evan Parker, Gary Windo, Marc Charig e Nick Evans. Desta formação, cuja estreia magistral, “Chris McGregor’s Brotherhood of Breath”, apenas foi reeditada em CD em catálogos de rock progressivo, a Repertoire e a Akarma, chega-nos “Live at Willisau”, de 1973. Jazz abrasivo, coletivo, pujante no modo como vozes solistas e secções instrumentais se digladiam, dialogam, ramificam em mil e uma colorações que vão beber à música tradicional e às modalidades do Soweto.
            Louis Moholo apresenta o seu projeto Viva La Black nas improvisações largas que caracterizam “Freedom Tour, Live in South Afrika 1993”, gravado na Cidade do Cabo e Durban, na África do Sul, é um batimento ritual que inclui cantorias, chamamentos, risos o “What a wonderful world” de Louis Armstrong, e uma atmosfera geral onde a descontração vive paredes meias com a tensão, na busca da melhor forma de expressar o instante criativo. “Bush Fire”, de 1997, sustenta-se no diálogo entre Moholo e Evan Parker, num quinteto que inclui outros dois sul-africanos, Pule Pheto (piano) e Gibo Pheto, um dos dois baixistas, localizado auditivamente no canal esquerdo da gravação, juntamente com o inglês Barry Guy, que se faz ouvir no canal direito. Extraordinários os diálogos entre o soprano e o tenor de Parker e o solo contínuo de Moholo, nomeadamente os apontamentos na “snare drum” a envolverem o desenvolvimento temático de cada tema. Pheto acrescenta “staccatos” da lavra de um Cecil Taylor (escute-se a raiva com que percute as teclas do piano, em “South Afrika is free – ok?”) e os dois baixos garantem a coesão de um álbum de música improvisada ao mais alto nível, orgânica, vital e, em caso algum, gratuita.
            O caso de Lol Coxhill é um caso à parte. Excêntrico por natureza, entregou-se nos anos 70 às delícias do rock progressivo alinhando ao lado de Mike Oldfield no The Whole World de Kevin Ayers, com quem gravou “Shooting at the Moon”. Outros atestados do seu desalinho incluem colaborações com Heidi Berry, a cantora folk Shirley Collins e o grupo punk The Damned. “Coxhill on Ogun” junta dois álbuns distintos, “Diverse” e “The Joy of Paranoia” ambos gravados na década de 70. É, na maior parte dos casos, e fazendo jus a essa paranoia que tem muito de humor, um delírio cozido a solo no sax soprano em “Diver” ou em “The Wakefield Capers” onde a a música escorre através do funk, do rhythm ‘n’ blues, do reggae e do free jazz. “The Clück variations”, um dueto com o pianista Veryan Weston inspira-se numa composição de Webern e “Divers” (a par de “Diver” uma das duas peças de “Diverse”) pinta-se com as camadas sobrepostas da música de câmara.
            Na ponta extrema e mais “jazzy” da escola de Canterbury, Elton Dean, Hugh Hopper, Dave Sheen e Alan Gowen, formavam os Soft Head, derivação dos Soft Heap, por sua vez uma prótese dos Soft Machine. Música construída sobre “riffs” saturados pelo baixo de Hugh Hopper, em desenvolvimentos cíclicos imbuídos do espírito e das formas da fase jazzística dos Soft Machine, mostra Elton Dean como o mais livre dos improvisadores do quarteto enquanto o malogrado Alan Gowen nem sempre encontra o espaço de manobra ideal para a sua inigualável veia melódica, seja no piano elétrico ou no sintetizador, como tão bem deixou exemplificado nos Gilgamesh e National Health, duas das formações de Canterbury às quais pertenceu. De entre os álbuns aqui em análise é sem dúvida o mais acessível, eventualmente tão macio como a cabeça do elefante que serve de ilustração à capa.
            Também já falecido, o baixista sul-africano Harry Miller radicado desde o início dos anos 60 na Inglaterra tem compilados num triplo CD os cinco álbuns que gravou em vida, quatro para a Ogun, um para a Vara records: “Children at Play” (em solo absoluto, no contrabaixo, flauta e efeitos percussivos), “Family Affair”, com os Isipingo (Marc Charig, Mike Osborne, Malcolm Griffi ths, Keith Tippett e Louis Moholo), “Bracknell Breakdown” (duos com o trombonista Radu Malfatti), “In Conference” (com Willem Breuker, Trevor Watts, Julie Tippetts, Keith Tippett e Louis Moholo) e “Down South”, com um quinteto com Han Bennink.
            “Children at Play” não é uma brincadeira de crianças, embora o jogo lúdico seja uma constante, na forma como Miller constrói melodias e ritmos plenos de imaginação, com o seu contrabaixo a funcionar em multipistas, tocado com arco como o ventre de uma baleia ou simplesmente dedilhado com a agilidade e sapiência de um mestre. “H and H” remete para uma melodia medieval no meio de quatro temas de entre os quais se destaca “Homeboy”, com Miller a fazer sobrevoar sobre o contrabaixo swingante uma flauta entoando uma melodia da África do Sul e “Children at play, phase III” entra por um túnel subterrâneo nos domínios da música clássica. “Family Affair” funciona segundo os parâmetros típicos da música de fusão inglesa dos anos 70, ainda sem os tiques que viriam a caracterizar o género, e de uma “free music” pujante de ideias e energia. “Jumping” faz saltar o corpo e o coração de alegria e entre os efeitos que provoca tem o de nos lembrar que este Keith Tippett é o mesmo que tocou como convidado em álbuns dos King Crimson, o mesmo acontecendo, aliás, com o próprio Miller, que tocou em “Islands”, um dos álbuns deste grupo. “Bracknell Breakdown” é o mais difícil do lote, feito de intrincadas conversas com o trombone que vão até à atonalidade. Avesso à estética do grito, torna-se curioso verificar como o registo do trombone de Malfatti se aproxima da microtonalidade e da estética minimalista de muita da atual música improvisada. Breuker e Watts combinam da melhor maneira em uníssonos e contrapontos. As raízes africanas afloram uma vez mais, em “Orange grove”, e Julie Tippets “scata” como uma gata em “Dancing damon” e num misto de sirene de alarme e Robert Wyatt, em “Traumatic experience closed”. Raízes que marcam também “Down South”, o mais étnico mas também o mais declaradamente imbuído da estética do “free jazz” dos cinco álbuns.
            Keith Tippett volta a estar no centro das atenções em “Frames”, subintitulado “Music for an Imaginary Film”, um épico gravado com a sua Ark onde pontificava a nata do jazz inglês dos “Seventies” (Stan Tracey, Elton Dean, Trevor Watts, Brian Smith, Larry Stabbins, Marc Charig, Henry Lowther, Nick Evans…), bem como Harry Miller, Louis Moholo e Peter Kowald. Podendo ser considerado um sucessor do megaprojeto Centipede, de “Septober Energy”, e registado na mesma época em que o pianista se concentrava nos seus Ovary Lodge (não foram reeditados em CD pela Ogun?), “Frames” possui essa dimensão cinematográfica, devendo ser escutado em ecrã gigante. Grandes naipes orquestrais, desenvolvimentos lentos e majestosos, cânticos ascensionais, momentos de demência e de minimal-repetitivo (uma sequência do segundo tema faz lembrar a música de Philip Glass envolvida em arame farpado) nas margens do que poderá ser designado de “jazz progressivo”, fazem a glória deste trabalho magnífico e “monstruoso” que é também o triunfo da composição, posta ao serviço, embora evitando os seus excessos e vazios, da própria essência da “free music”.

CHRIS McGREGOR’S BROTHERHOOD OF BREATH
Live at Willisau
8 | 10

LOUIS MOHOLO’S VIVA LA BLACK
Fredoom Tour, Live in South Afrika 1993
7 | 10

LOUIS MOHOLO QUINTET
Bush Fire
8 | 10

LOL COXHILL
Coxhill on Ogun
8 | 10

SOFT HEAD
Rogue Element
7 | 10

HARRY MILLER
The Collection
9 | 10

KEITH TIPPETT’S ARK
Frames
10 | 10

Todos Ogun, distri. Trem Azul

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