JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
8 JULHO 2004
Frames é a jóia da coroa de um lote de discos de uma
editora, a Ogun, que contrapõe músicos ingleses e sul-africanos.
Os
elefantes têm a cabeça macia
Cruzaram-se na
Ogun, deram-se bem. Nesta editora que tem vindo a divulgar o melhor do jazz
inglês, desde os anos 70 e da “Free music” até aos dias de hoje, músicos
ingleses e sul-africanos dão-se as mãos, que é como quem diz, trocam de jazz,
numa síntese de sons e sensibilidades da qual têm resultado trabalhos de grande
qualidade.
Principal ponto de encontro: a Chris
McGregor’s Brotherhood of Breath, “big band” liderada pelo pianista Chris
McGregor. Nela pontificam alguns dos principais nomes do jazz da África do Sul,
como Louis Moholo, Radu Malfatti, Dudu Pukwana e Mongezi Feza, além do próprio
McGregor, enquanto os ingleses se fazem representar por Evan Parker, Gary
Windo, Marc Charig e Nick Evans. Desta formação, cuja estreia magistral, “Chris
McGregor’s Brotherhood of Breath”, apenas foi reeditada em CD em catálogos de
rock progressivo, a Repertoire e a Akarma, chega-nos “Live at Willisau”, de
1973. Jazz abrasivo, coletivo, pujante no modo como vozes solistas e secções
instrumentais se digladiam, dialogam, ramificam em mil e uma colorações que vão
beber à música tradicional e às modalidades do Soweto.
Louis Moholo apresenta o seu projeto
Viva La Black nas improvisações largas que caracterizam “Freedom Tour, Live in
South Afrika 1993”, gravado na Cidade do Cabo e Durban, na África do Sul, é um
batimento ritual que inclui cantorias, chamamentos, risos o “What a wonderful
world” de Louis Armstrong, e uma atmosfera geral onde a descontração vive
paredes meias com a tensão, na busca da melhor forma de expressar o instante criativo.
“Bush Fire”, de 1997, sustenta-se no diálogo entre Moholo e Evan Parker, num
quinteto que inclui outros dois sul-africanos, Pule Pheto (piano) e Gibo Pheto,
um dos dois baixistas, localizado auditivamente no canal esquerdo da gravação,
juntamente com o inglês Barry Guy, que se faz ouvir no canal direito.
Extraordinários os diálogos entre o soprano e o tenor de Parker e o solo contínuo
de Moholo, nomeadamente os apontamentos na “snare drum” a envolverem o desenvolvimento
temático de cada tema. Pheto acrescenta “staccatos” da lavra de um Cecil Taylor
(escute-se a raiva com que percute as teclas do piano, em “South Afrika is free
– ok?”) e os dois baixos garantem a coesão de um álbum de música improvisada ao
mais alto nível, orgânica, vital e, em caso algum, gratuita.
O caso de Lol Coxhill é um caso à
parte. Excêntrico por natureza, entregou-se nos anos 70 às delícias do rock
progressivo alinhando ao lado de Mike Oldfield no The Whole World de Kevin Ayers,
com quem gravou “Shooting at the Moon”. Outros atestados do seu desalinho
incluem colaborações com Heidi Berry, a cantora folk Shirley Collins e o grupo
punk The Damned. “Coxhill on Ogun” junta dois álbuns distintos, “Diverse” e “The
Joy of Paranoia” ambos gravados na década de 70. É, na maior parte dos casos, e
fazendo jus a essa paranoia que tem muito de humor, um delírio cozido a solo no
sax soprano em “Diver” ou em “The Wakefield Capers” onde a a música escorre através
do funk, do rhythm ‘n’ blues, do reggae e do free jazz. “The Clück variations”,
um dueto com o pianista Veryan Weston inspira-se numa composição de Webern e
“Divers” (a par de “Diver” uma das duas peças de “Diverse”) pinta-se com as
camadas sobrepostas da música de câmara.
Na ponta extrema e mais “jazzy” da
escola de Canterbury, Elton Dean, Hugh Hopper, Dave Sheen e Alan Gowen,
formavam os Soft Head, derivação dos Soft Heap, por sua vez uma prótese dos
Soft Machine. Música construída sobre “riffs” saturados pelo baixo de Hugh
Hopper, em desenvolvimentos cíclicos imbuídos do espírito e das formas da fase
jazzística dos Soft Machine, mostra Elton Dean como o mais livre dos improvisadores
do quarteto enquanto o malogrado Alan Gowen nem sempre encontra o espaço de
manobra ideal para a sua inigualável veia melódica, seja no piano elétrico ou
no sintetizador, como tão bem deixou exemplificado nos Gilgamesh e National
Health, duas das formações de Canterbury às quais pertenceu. De entre os álbuns
aqui em análise é sem dúvida o mais acessível, eventualmente tão macio como a
cabeça do elefante que serve de ilustração à capa.
Também já falecido, o baixista
sul-africano Harry Miller radicado desde o início dos anos 60 na Inglaterra tem
compilados num triplo CD os cinco álbuns que gravou em vida, quatro para a
Ogun, um para a Vara records: “Children at Play” (em solo absoluto, no contrabaixo,
flauta e efeitos percussivos), “Family Affair”, com os Isipingo (Marc Charig, Mike
Osborne, Malcolm Griffi ths, Keith Tippett e Louis Moholo), “Bracknell Breakdown”
(duos com o trombonista Radu Malfatti), “In Conference” (com Willem Breuker,
Trevor Watts, Julie Tippetts, Keith Tippett e Louis Moholo) e “Down South”, com
um quinteto com Han Bennink.
“Children at Play” não é uma
brincadeira de crianças, embora o jogo lúdico seja uma constante, na forma como
Miller constrói melodias e ritmos plenos de imaginação, com o seu contrabaixo a
funcionar em multipistas, tocado com arco como o ventre de uma baleia ou
simplesmente dedilhado com a agilidade e sapiência de um mestre. “H and H”
remete para uma melodia medieval no meio de quatro temas de entre os quais se
destaca “Homeboy”, com Miller a fazer sobrevoar sobre o contrabaixo swingante
uma flauta entoando uma melodia da África do Sul e “Children at play, phase
III” entra por um túnel subterrâneo nos domínios da música clássica. “Family
Affair” funciona segundo os parâmetros típicos da música de fusão inglesa dos
anos 70, ainda sem os tiques que viriam a caracterizar o género, e de uma “free
music” pujante de ideias e energia. “Jumping” faz saltar o corpo e o coração de
alegria e entre os efeitos que provoca tem o de nos lembrar que este Keith Tippett
é o mesmo que tocou como convidado em álbuns dos King Crimson, o mesmo acontecendo,
aliás, com o próprio Miller, que tocou em “Islands”, um dos álbuns deste grupo.
“Bracknell Breakdown” é o mais difícil do lote, feito de intrincadas conversas
com o trombone que vão até à atonalidade. Avesso à estética do grito, torna-se
curioso verificar como o registo do trombone de Malfatti se aproxima da microtonalidade
e da estética minimalista de muita da atual música improvisada. Breuker e Watts
combinam da melhor maneira em uníssonos e contrapontos. As raízes africanas afloram
uma vez mais, em “Orange grove”, e Julie Tippets “scata” como uma gata em
“Dancing damon” e num misto de sirene de alarme e Robert Wyatt, em “Traumatic
experience closed”. Raízes que marcam também “Down South”, o mais étnico mas
também o mais declaradamente imbuído da estética do “free jazz” dos cinco
álbuns.
Keith Tippett volta a estar no
centro das atenções em “Frames”, subintitulado “Music for an Imaginary Film”,
um épico gravado com a sua Ark onde pontificava a nata do jazz inglês dos
“Seventies” (Stan Tracey, Elton Dean, Trevor Watts, Brian Smith, Larry
Stabbins, Marc Charig, Henry Lowther, Nick Evans…), bem como Harry Miller,
Louis Moholo e Peter Kowald. Podendo ser considerado um sucessor do megaprojeto
Centipede, de “Septober Energy”, e registado na mesma época em que o pianista
se concentrava nos seus Ovary Lodge (não foram reeditados em CD pela Ogun?),
“Frames” possui essa dimensão cinematográfica, devendo ser escutado em ecrã
gigante. Grandes naipes orquestrais, desenvolvimentos lentos e majestosos, cânticos
ascensionais, momentos de demência e de minimal-repetitivo (uma sequência do
segundo tema faz lembrar a música de Philip Glass envolvida em arame farpado)
nas margens do que poderá ser designado de “jazz progressivo”, fazem a glória
deste trabalho magnífico e “monstruoso” que é também o triunfo da composição,
posta ao serviço, embora evitando os seus excessos e vazios, da própria essência
da “free music”.
CHRIS McGREGOR’S BROTHERHOOD OF
BREATH
Live at Willisau
8
| 10
LOUIS MOHOLO’S VIVA LA BLACK
Fredoom Tour, Live in South
Afrika 1993
7
| 10
LOUIS MOHOLO QUINTET
Bush Fire
8
| 10
LOL COXHILL
Coxhill on Ogun
8
| 10
SOFT HEAD
Rogue Element
7
| 10
HARRY MILLER
The Collection
9
| 10
KEITH TIPPETT’S ARK
Frames
10
| 10
Todos
Ogun, distri. Trem Azul
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