Y 13|FEVEREIRO|2004
roteiro|discos
ani di franco
declaração de
independência
ANI DI FRANCO
Educated Guest
Righteous Babe, distri. Megamúsica
8|10
O caso de Ani di Franco faz pensar. Com alma educada na folk e
corpo tatuado no punk, a cantora de 34 anos, natural de Buffalo, é a lutadora
por excelência contra o sistema, a “workaholic” infatigável, adepta do “faça
você mesmo”, mas também a compositora inspirada e uma “true original” que,
álbum após álbum (e já lá vão 17), vem traçando uma obra ímpar no panorama dos
“singer songwriters” norte-americanos. Se longe vão os tempos em que Ani
percorria os EUA de costa a costa no seu Volkswagen de molde a satisfazer os
compromissos de um calendário de 200 concertos por ano, a verdade é que, nem por
isso se aproximou mais do que quis ou que devia do “mainstream”.
“Educated
Guest” é tão marginal ao sistema como qualquer dos seus discos anteriores, ao
ponto de assegurar, sozinha, a composição, interpretação, gravação e misturas
das 14 canções. Mas Ani foi mais longe desta vez. Além do prodigioso trabalho
de som que torna sonicamente fascinante um álbum quase exclusivamente elaborado
com a voz e uma guitarra acústica, com esporádicas pontuações de piano elétrico
ou de “wind chimes”, é a própria música que evidencia uma riqueza e complexidade
que neste álbum conseguem ser tão ou mais cativante do que alguns dos seus
trabalhos mais “produzidos”, como “Little Plastic Castle” ou “Up Up Up Up Up
Up”. Ani declama, examina-se ao espelho em “overdubs” vocais, tira da guitarra
refrações e reflexos de eletrónica artesanal ou aumenta a ressonância até às dimensões
de uma caverna.
Depois, o seu
sentido de ritmo e de dinâmica contradizem tudo o que a indústria musical exige
atualmente das “divas” pop. Ao invés de fórmulas adocicantes e “groove”
sintético, a música de “Educated Guest” elimina tudo o que não tenha a
luminosidade do espírito e a textura sanguínea e musculada da carne. Implosões
e explosões de palavras e frases de guitarra que tanto bebem no “blues” e no
“jazz” como numa “folk” espectral ilustram um sentido intrincado do tempo e o
desejo de experimentação, a par de uma elegância que jamais se dilui no novelo
de canções psicológica e socialmente empenhadas. Ani apenas terá como
concorrentes Joni Mitchell e, no caso de “Educated Guest”, o álbum mais
“difícil” da cantora canadiana, “The Hissing of Summer Lawns”, sem os
sintetizadores e as percussões africanas; e, esporadicamente, Annette Peacock, com
quem partilha o gosto pela “spoken word” “swingante”, em que a acutilância e a
ternura se confundem, em poemas apontados a alvos precisos, como “Grand Canyon”
– uma raspagem ao relevo emocional e social da América e um retrato cruel dos
seus habitantes, tão carregados de sarcasmo como de esperança – como ela, “born
of the greatest pain/ Into a grand canyon of light”.
Ani canta e
“scata” como uma criança magoada, um sádico em busca de vítimas, uma
“blueswoman” (por vezes mais próxima do misticismo descarnado de um John Fahey)
em transe, uma sonhadora, uma guerreira. “Educated Guest” é a primeira grande
declaração de independência da pop deste ano.
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