6|FEVEREIRO|2004 Y
música|bernardo devlin
Nas nove implosões de
“Circa 1999”, Bernardo Devlin pinta telas da mente para observar com a luz
baixa. Quem já ouviu “Tilt”, de Scott Walker, deve munir-se da mesma lanterna.
Sonhos no salão preto e
prata
“Circa
1999 (9 Implosões)” é um disco estranho. O seu autor, Bernardo Devlin, antigo
elemento dos Osso Exótico, não lhe fica atrás. “Circa 1999” é o seu terceiro
trabalho a solo, depois de “World Freehold” e “Albedo”. A capa é prateada, como
um espelho, e o livrete inclui um caderno de folhas coloridas, sem qualquer
texto – as cores, explica Devlin, correspondem a estados de espírito, a sua
sequência aludindo à estrutura completa do disco.
A música é uma tapeçaria densa de
texturas eletrónicas e elementos acústicos que contaram com a participação dos
convidados José Ernesto Rodrigues (violino), Nuno Leão e Pedro Lourenço (guitarras
adaptadas), Luís Filipe Valentim (piano), Luísa Gonçalves (sintetizador),
Miguel Sintra (percussão), Oliver Vogt (saxofone tenor), Damiano Tonegutti
(oboé) e o quarteto de cordas Opus 4. Vítor Rua, dos Telectu,
responsabilizou-se pelos arranjos e direção de cordas. Soa a música de câmara
de fantasmas (ou fantasias?), acentuada pelas vocalizações semi-declamadas de
Devlin, de textos nalguns casos impenetráveis que falam de luzes, visões e
paixões geladas. Do tempo e da comunicação/incomunicação com o outro. E com o
espelho.
Olhos vítreos, cortados por uma
tesoura, como no filme de Buñuel, em “Un Chien Andalou”. A luz das estrelas e
da morgue. Do espaço sideral e de um quarto onde é impossível dormir. Um faroleiro
aparece misteriosamente num dos temas… Como se fosse “A plague of lighthouse keepers”,
“a praga dos faroleiros”, o épico de Peter Hammill, músico com quem Devlin
mantém afinidades estéticas. E “Tilt”, outra referência de “Circa”, do Scott
Walker inatingível… Devlin fala “à altura dos olhos”, título de uma das canções
de “Circa 1999”.
“Circa 1999” convoca as memórias
desse ano, 1999, “em que a maioria das canções foram escritas” mas também
marcado por “uma série de adversidades que tiveram que ser superadas”. As “nove
implosões” do subtítulo indicam essa viagem para dentro. “O disco preenche um
período de transição de uma atitude mais romântica, ou ultra-romântica, para um
estado de espírito diferente, mais racional”.
para ouvir no escuro. Mergulha-se na
música de “Circa” como numa tina de mercúrio congelado. Os movimentos tornam-se
difíceis, a bússola deixa de funcionar. “A diferença entre o exterior e o
interior é muito ténue”. E pode ser “complicado entrar”, diz Devlin
pausadamente, “muito complicado…”.
Resta ao ouvinte inventar as suas
próprias histórias a partir das palavras do disco que a razão disseca, ou não,
conforme o tipo de viagem que pretenda seguir. A cabeça encarregar-se-á de
escolher o itinerário mais conveniente. “Gosto de dar espaço à interpretação”.
Liberdade por vezes mais aparente do que real, pois “Circa 1999” esconde
armadilhas e outros perigos. “Havia verdade na luz/Quando me protegi/Operam
marés na clausura/Que do alto vi/Foi impressão/Ou algo acenou/Em gesto tão
real/Se elevou/Vigília/ De mundo de estátua/E êxtases/De visionários/Em convixão/Chama
de mistérios/Sem conversão”, canta em “Novo alvor”. “Visões” que, segundo o seu
autor “não fazem necessariamente parte do quotidiano, fora do momento da grande
interiorização”.
Devlin fala em “fornecer pistas” e
em “referências”. Umas e outras são o que não falta em “Circa 1999”. “A
explicação é muito complicada. É mais como uma pessoa quando se lembra de um
sonho… Quando se descreve um determinado sonho a alguém está-se a dar uma pista
extremamente diminuta em relação à informação que estava contida no momento”.
Pistas “verbais”, sem “princípio nem fim”. Num país, Portugal, onde “as pessoas
estão pouco habituadas a ouvir canções que tenham um trabalho literário mais
aprofundado”.
As canções de “Circa 1999” são como
as cores. Dos vários tons de azul ao branco, com choque brusco com o negro e
passagem ulterior para o castanho. Do céu para a terra. Símbolos de “um percurso
cromático” – “quase um ‘travelling’ muito lento”, entre o claro e o escuro. Ou
um “pôr-do-sol”, provavelmente o último antes do “novo alvor” de que fala a
canção.
Scott Walker, Peter Hammill, Syd
Barrett, Edward Ka-Spel, dos Legendary Pink Dots. Arautos da alucinação. Devlin
conhece bem a sua obra. “‘Tilt’ é uma referência, certamente, mas não o vou
assumir como álbum-modelo. Percebo a comparação mas, por outro lado, são coisas
distintas, não há, de modo algum, qualquer tentativa de recriação da mesma
atmosfera…”. Psicadelismo? Um dos temas de “Circa 1999” tem como título
“Cirros”. Os Pink Floyd gravaram “Cirrus minor”. As nuvens. “Não sabia, é
fantástico! Os Floyd, do Syd Barrett, fizeram um disco fantástico, ‘The Piper
at the Gates of Dawn’. “Hoje em dia já não consigo ficar deslumbrado pelo
universo do rock e da pop, mas acredito que se for metido num saco, é nesse
saco”. Hoje em dia, Bernardo Devlin prefere ouvir música clássica, “em casa,
sozinho”. Rock, sobretudo “em casa dos amigos”. Pere Ubu e Roxy Music, por exemplo,
atualmente até “mais inspiradores” do que Peter Hammill ou Scott Walker.
Existe um lado mágico no disco. “O
concretizar de algo faz parte de um processo de depuração extremamente pessoal.
A energia é posta na concretização dos conceitos em causa. No decorrer desse
trabalho há uma simbologia que se vai criando a ela própria”. As cores? “Também
as cores. Mas não pretendo pintar a mesma tela repetidamente. Interessa-me
fazer música que tenha vários níveis de escuta”.
“Circa 1999 (9 Implosões)” é para se
ouvir no escuro. Ou, no mínimo, “com as luzes baixas”. Na cabeça de Bernardo
Devlin agitam-se já outros projetos: um “no formato 5.1 [som “surround”], chamado
‘Agio’, de canções eletrónicas e, em paralelo, um álbum duplo que se chamará
“Vol. 3: As Duas Antenas do Caracol”. Risos. Fica a garantia: “Estou mesmo a
falar a sério...”
Sem comentários:
Enviar um comentário