17/02/2020

Abrir a boca de espanto [Brian Eno]


Y 18|JUNHO|2004
roteiro|discos

brian eno
abrir a boca de espanto


BRIAN ENO
Here Come the Warm Jets
8|10

BRIAN ENO
Taking Tiger Mountain (By Strategie)
10|10

BRIAN ENO
Another Green World
10|10

BRIAN ENO
Before and After Science
10|10
Virgin, distri. EMI-VC

Brian Peter George St. Jean le Baptiste de La Salle Eno. Brian Eno para os amigos. Derrubou, remodelou e fugiu a sete pés da pop, criando com a sua “música discreta” as fundações de um edifício novo, com a etiqueta de “ambiental”, para a eletrónica dos nossos dias.
Mas no princípio era o artifício e a experimentação com as cores e formas da pop, lidas, relidas e regurgitadas como algo desfasado das normas ou, para usar o léxico do próprio, desenhadas de acordo com as “estratégias oblíquas”. Eno acabara de abandonar os Roxy Music, onde a força da sua imagem fazia espumar de ciúmes o “dandy” Bryan Ferry. Plumas e lantejoulas e um sintetizador de trazer por casa transitaram para “Here Come the Warm Jets”, álbum de fazer torcer o pescoço no esforço de encontrar referências apaziguadoras. Não havia. Aqui a pop desta Ruth Marlene aristocrata de cabelo ralo e pintura borrada era convulsão, as melodias pareciam existir desde sempre para se acoitarem em arranjos de um “não músico” que integrava o erro e o acaso no seu modo de agir. Alguns temas são demolidores. Diretos, lancinantes e, apesar disso, correndo ao pé-coxinho, como “Blank Frank” e o hino que arde, “Baby’s on fire”. As guitarras de Robert Fripp e Phil Manzanera serviam de rastilho. Pelo meio, experimentação e falsas baladas orgulhosamente pimba como “Some of them are old”. Bowie aprendeu a lição.
“Taking Tiger Montain (by Strategy)” é a primeira obra-prima. Inspirado nas “estratégias oblíquas” e na pintura de Peter Schmidt, refina a pop do disco de estreia. Impossível classificar estas canções que soam familiares e alienígenas, simples e incrivelmente complexas. Eno, o não-músico, descobria em cada nota, em cada reviravolta nas manipulações de estúdio, o prazer da criança que brinca com o desconhecido. “The true wheel” utiliza uma máquina de escrever para fazer o ritmo e a hipnose final, “Taking tiger mountain”, é uma lenta ascensão em espiral, “trompe l’oeil” auditivo cujos círculos sugerem um movimento que é pura ilusão.
Com “Here Come the Warm Jets” (uma das bíblias do pós-rock) Eno inicia o seu processo de afastamento da pop para se aproximar de uma música feita de fragmentos. A voz apaga-se para deixar brilhar a eletrónica e os efeitos especiais, as melodias ocultam-se e revelam-se em jogos de cabra-cega mas tudo se ilumina numa saudade de ouro em “Golden hours”, pura evocação não se sabe bem de que passado glorioso. Fripp, Phil Collins e John Cale são alguns dos participantes deste álbum feito de coincidências e confidências sussurradas demasiadamente baixo para lhe furtarmos um sentido único.
“Before and After Science” deve ser arrumado na estante dos discos fundamentais dos anos 70. É o retorno às canções construídas como colagens, mas agora envoltas na névoa minimalista resultante do contacto entre Eno e a dupla germânica Cluster, num tema como “By this river”, influência decisiva nos dois sentidos, já que também Moebius e Roedelius se deixariam enredar nas malhas do inglês nos seus “Cluster & Eno” e “After the Heat”. “Before and After Scince” anuncia ainda a new wave, no esplendor da sua energia concentracionária. “King’s lead hat” é uma homenagem, com título em anagrama, aos Talking Heads e “No one receiving” e “Kurt’s rejoinder” fazem boa companhia ao lado da trilogia do Bowie de Berlim, para quem este disco viria a constituir leitura obrigatória.
Eno inventou a sua própria ciência e passaria os anos seguintes a teorizar sobre ela. Viria a seguir a fase dos murmúrios, das metamorfoses do céu sobre Manhattan e da música sonhada num leito de hospital com a qual reinventaria, como John Cage, o silêncio. Antes, porém, vale a pena agarrar estes quatro álbuns que fazem a pop abrir a boca de espanto...

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