Y 13|FEVEREIRO|2004
música|einstürzende neubauten
Os edifícios podem ter-se
desmoronado mas os Einstürzende Neubauten não desistem de esgravatar nos
escombros. Depois de, no álbum anterior, terem feito amor com o silêncio,
muniram-se, no novo “Perpetuum Mobile”, de pistolas de ar comprimido e da visão
dos pássaros. Mas que ninguém se iluda: tresanda a miasmas.
O voo de pássaros cruéis no ar envenenado
Arrumaram
no armazém os berbequins e os martelos-pilões dos primeiros álbuns. Mas apesar
de já não sangrarem em palco nem espancarem pontes como faziam nos tempos em
que destruíam tudo em seu redor, os Einstürzende Neubauten (EN) continuam tão
ou mais ameaçadores do que antes. “Perpetuum Mobile”, o novo álbum,
sussurra-nos perversidades aos ouvidos, reforçando a transição dos Neubauten do
metal batido dos primórdios para os Neubauten das ventanias tóxicas. Em termos
elementares e alquímicos, do fogo para o ar. “‘Perpetuum Mobile’ é o silvo da primeira
viagem pelo ar. O próximo álbum será o som do seu impacto”, dizem eles na
revista “Wire”. A terra aproxima-se e o choque pode ser brutal. Acautelem-se.
Em “Perpetuum Mobile” a música do
quinteto, de cuja formação original apenas restam Blixa Bargeld (também
elemento dos Bad Seeds, de Nick Cave, grupo que abandonou recentemente para se
dedicar às gravações do novo Neubauten), Alexander Hacke e Andrew Chudy,
respira nas camadas altas da atmosfera mas o efeito nefasto dos gases venenosos
não se dissipou. É verdade que já não há ciclopes armados de malhos para nos
esmigalharem os miolos como acontecia nas obras de demolição “Kollaps” (1981),
“Zeischnungen des Patienten O.T.” (1983) e os três volumes da antologia
“Strategies Against Architecture”, que colocavam os EN na fila da frente da
legião industrial, na sua vertente mais radical e niilista, a par dos Throbbing
Gristle e dos primeiros Test Dept. e SPK, mas a violência, apesar de
dissimulada, não se dissipou. A serração fechou as portas, a carne do talho
apodreceu, o metal enferrujou. Porém, a viagem através do sofrimento não
cessou. Hoje os Neubauten envergam “smoking” e arvoram um sorriso fino de
crueldade nos lábios para, como os demónios de “Hellraiser”, nos romperem a pele
com um bisturi.
“Halber Mensch” (1985) e “Fuenf auf
der Nacht Oben Offenen Richterskala” (1987) deram início à derrocada mas não
puseram fim ao cataclismo. “Haus der Luege” (1989), inundado com esperma de
cavalo, virava a página das perversões e com “Tabula Rasa” (1993) e “Ende Neu” (1996),
incursões algo falhadas na eletrónica, os Neubauten prepararam o terreno no
qual iriam semear as novas minas.
“Silence is Sexy”, de 2000, trouxe o
monstro para o campo das canções. Um silêncio de mau agouro a envolver um
erotismo sonoro malsão, com palavras que se infiltram na mente como agulhas de
ponta incandescente e sons regurgitados das regiões mais recônditas do inconsciente.
“Perpetuum Mobile” pegou nesse silêncio carregado de ameaças e insuflou-o de ar
comprimido, fazendo a música subir como um balão que esconde nas suas entranhas
uma colónia de vermes. Já não há, como antes, tanques de guerra, estruturas de
cimento e óleos pesados. Mas há pistolas de ar comprimido, sinos de loucura, papel,
plástico e sirenes de alarme. Também percussões metálicas, como não podia
deixar de ser, todavia mais maneirinhas. E pássaros. Não os que trazem consigo
a Primavera mas aves cruéis como as de Hitchcock.
Afinal de contas, os Neubauten não
mudaram assim tanto. Desprezam, como sempre desprezaram, a indústria e o
“mainstream” e, numa concessão às velhas estratégias de sova do passado,
permitiram-se mesmo uma performance de percussão numa escada (não, não se trata
de terem tocado na escada mas de tocá-la de facto, ou seja, dar-lhe uma carga
de porrada).
Eles subiram pelo ar. É de lá que
desencadeiam tempestades. E é a altitude que lhes confere a visão do cimo, a
visão do poder. Poder-se-á pensar que o convívio de Bargeld com Nick Cave
serviu para aveludar o discurso e em “Perpetuum Mobile” não faltam canções (com
melodias atrativas, pasme-se!) que dão razão a tal argumento. O disco esteve, de
resto, para se chamar “The New Song”, o que também fazia sentido. Não se pense,
porém, que “Perpetuum Mobile” é um mar de rosas. Quando menos se espera
irrompem secções de eletro-acústica e música concreta (o segundo CD, um
DVD-áudio em formato 5.1 “surround”, apenas legível em leitores de DVD e PC, é
uma imersão no interior do som, enquanto matéria palpável) e “riffs” infernais que,
curiosamente, lembram o trabalho pioneiro dos também germânicos Faust.
Será ódio, será amor, o certo é que
“Perpetuum Mobile”, apesar de cultivar, ainda e sempre, a agressão (ou o
desporto, como adiante se verá…), não pretende ser repudiado mas ouvido. E
discutido. Durante os vários meses de trabalho de estúdio os fãs do grupo
puderam acompanhar, passo a passo, via Internet, as gravações, comunicando com
os músicos e tendo acesso a demos. É também esse momento, ou movimento, de
troca, que pauta o atual estado de coisas na organização Neubauten. Há um objetivo
final (“a besta ainda não acordou por completo”, lê-se na letra de uma das
canções) e os estrategas de Berlim conhecem-no (pudera, lá do alto, vê-se tudo com
maior clareza!). Ponhamos também nós o nariz e as antenas no ar. Mas com
cautela.
Também à cautela, conversámos com
Alexander Hacke, baixista do grupo. Falso alarme. O tipo tem sentido de humor.
“Perpetuum Mobile” esteve para chamar-se “The New
Song”…
O título tem a ver com o processo de produção. “Perpetuum
Mobile” é um maquinismo que se sustenta a si próprio. Foi o que tentámos fazer,
contornar o sistema da indústria, e gravar um disco suportado pelas pessoas que
gostam do que fazemos, sem a interferência de nenhuma editora.
É importante
sentirem que as pessoas gostam do grupo? Nos primeiros anos não parecia, com
toda aquela agressão e violência…
Eu
não lhes chamaria agressão e violência, mas entusiasmo (risos). Era mais como
no desporto, aquela energia que é necessário acumular para se conseguir
resultados. Houve quem visse nisso algo de patológico... Os Neubauten lidaram sempre
com a investigação e a experimentação tecnológica. Fizemos “sampling” antes
dele existir. Experimentamos igualmente ao nível da escrita e da dramatização,
em pôr em prática determinados conceitos, mas é claro que também nos queremos
divertir.
Foi por causa desse processo que o álbum levou
quase um ano a fazer?
Mas
foi o que gravámos em menos tempo! O anterior demorou três anos. O facto de
termos todas aquelas pessoas a acompanhar a gravação obrigou a que chegássemos
a horas ao estúdio (risos). Chegávamos lá e já estavam cem pessoas à espera.
Tínhamos que mostrar trabalho.
Não era constrangedor?
Bem,
elas “estavam” no computador. Mesmo as pessoas que não gostam do que fazemos, e
havia uma ou duas dessas, o simples facto de estarem presentes já nos ajudava.
Isso e centenas de mensagens de apoio. Mas não era propriamente uma democracia,
submetermos cada decisão a sufrágio, do estilo: “Devemos usar um sol maior ou
um sol menor?” (risos). Os nossos admiradores puderam ver-nos sem máscaras, ao
contrário da maior parte dos artistas que se escondem e pretendem ser aquilo
que não são. Para alguns terá sido como aceder a um “site” porno, pagar cinco
euros para ter direito a alguma intimidade ou à ilusão de ficar mais perto… E
houve os que ficaram desapontados, por não terem assistido a algo mais
glamoroso ou misterioso.
Na “Wire” defendem ser este um álbum que reflete
o “silvo do ar”. E que o próximo ilustrará o impacto na terra.
A
frase é do Rudolf Moser, a típica declaração de um baterista (risos). Mas é
verdade que o ar é o elemento mais presente na atual fase do grupo, em oposição
ao fogo de antigamente. Antes púnhamos fogo em cada palavra das canções, nas
apresentações ao vivo, fogo em todo o lado… Desta vez, quando começámos a
trabalhar, colámos na parede um mural onde escrevíamos metáforas, sobre coisas
que nos interessavam. Acabámos por notar que falávamos sobretudo de respiração,
de murmúrios, de tempestades, de ventos. O ar tinha que ser o elemento
principal do álbum.
Há outra perspetiva, a perspetiva aérea do
observador, que controla de cima porque consegue ver o quadro completo dos
acontecimentos…
Sim.
Como os pássaros [uma das canções o disco tem como título “Um pássaro raro”]. A
perspetiva do pássaro. Outro dos tópicos do disco é a “passagem”, a viagem, a
mudança. Antes falávamos principalmente das estruturas interiores, neste álbum
falamos de sair para o exterior, da transformação num novo ser.
Sim, mas e do ponto de vista do poder político? A
partir de um helicóptero é possível à polícia controlar os movimentos de uma
manifestação de rua, por exemplo…
Sim.
Vigilância. Obviamente que não nos escondemos num buraco no chão (risos).
A vivência de Berlim continua a ser determinante?
Continuo
a viver em Berlim mas passo grande parte do tempo fora. Agora é fácil. Os
Neubauten começaram por ser uma banda de Berlim Ocidental, daí toda aquela
agressividade contra um certo elitismo “arty” que se fazia sentir nessa parte
da cidade. Havia idiotas que se sentiam bem assim, que achavam que não se devia
receber influências do exterior. Com a queda do Muro, uma quantidade de putos
irrompeu do lado oriental, trazendo novas ideias e criatividade.
As sonoridades de “Perpetuum Mobile” refletem
também a relação do grupo com os objetos e os materiais enquanto artefactos
sonoros e musicais. Como executam essa pesquisa?
Muitos
desses objetos têm melhor aparência do que som. De certa forma os Einsturzende Neubauten
têm a ver com uma maneira especial de olhar para as coisas e para a música. Há
coisas que só consigo tocar com o grupo.
Como se sente na qualidade de executante de baixo
elétrico, no meio de tipos que batem e tiram sons de toda a espécie de objetos
estranhos?
Oh…
Sinto-me muito feliz por fazer de “idiota” do grupo (risos). São só quatro
cordas mas adoro as frequências baixas. O baixo foi sempre determinante na
música dos Neubauten. Quando o anterior baixista, Marc Chung, abandonou o grupo
fiz questão de ficar no baixo em vez de passar essa função a outro músico.
Os Neubauten representam a continuidade de uma
certa tendência do krautrock, personificada por uma banda como os Faust?
Há
dois grupos que marcaram a nossa sonoridade. Mais do que os Faust, citaria os
Can, ao nível dos métodos de produção e de pesquisa, e os Ton Steine Scherben,
um grupo de ativistas, politicamente empenhados, também dos anos 70, muito
parecidos connosco nos primórdios. Na raiva.
Mas são os Faust que hoje em dia desempenham o
mesmo papel que os antigos Neubauten, com sonoridades industriais e a
destruição dos palcos por onde passam…
São
loucos, uma cambada de sociopatas! (risos) Esses tipos são completamente
pirados! (risos). No fundo são “hippies”. Nós somos pessoas normais que apenas
fazemos o nosso trabalho.
EINSTÜRZENDE NEUBAUTEN
Perpetuum Mobile
2xCD Mute,
distri. EMI - VC
8|10
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