Y 20|FEVEREIRO|2004
roteiro|ao vivo
noturnos do velho Nick
Não
há perdão para os nossos pecados. Deus é o “croupier” de um casino onde se joga
a salvação. Quando o navio vai ao fundo os primeiros a abandoná-lo são os ratos.
O capitão do navio é um rato. Salve-se quem puder do naufrágio e rezem-se as últimas
orações aos santinhos que restam. Nick Cave, que atua por duas noites no Centro
Cultural de Belém, em Lisboa, a 24 e 25, já rezou tudo o que tinha a rezar mas
está por saber se a sua alma ficou da cor de um lençol ou suja como antes, nos
tempos dos Birthday Party e da fase perigosa dos Bad Seeds.
Há quem lhe chame cínico e o ache gasto. Ele está
simplesmente mais velho e, provavelmente, farto de pregar no deserto. O seu último
álbum, “Nocturama”, tem extremado as opiniões. Nada de novo na capela,
viciou-se nos Evangelhos, bradam uns. Está mais depurado e – olhem lá – tão furioso
como nunca, garantem outros, agitando a bandeira do último e arrasador tema,
“Babe, I’m on fire”, 15 minutos de incêndio que reduzem o mundo a cinzas.
A verdade, a existir alguma, está, como quase
sempre acontece, no meio termo. “From Her to Eternity” leva o seu tempo e o
cantor australiano avançou pelo caminho das pedras. Como Diamanda Galas, Cave é
prisioneiro da culpa, que sublima através de uma arte apocalíptica e de uma
religiosidade com os contornos da vingança.
O rock não chega para expiar os pecados mas serve
para martirizar. Cave e Galas recusam ser mártires e, como tal, optaram por
infligir aos outros o martírio – a praga, a peste, a paixão (“Babe, I’m on fire”
é a sua mais recente e universalista ferroada) que, de entre as doenças da
alma, é mais letal. Por isso recuaram ambos à matriz do “blues” e do “gospel”,
só que em vez da auréola dos santos deixaram crescer chifres na cabeça e exalam
um hálito a enxofre. O “bom filho” não o é, certamente, de Deus. “And the Ass Saw
the Angel”? É bem possível, pois Lúcifer tem esse estatuto.
Musicalmente, Nick Cave roda, sem dúvida, em torno
de sonoridades e obsessões que não são novos na sua obra. A entrada de Blixa
Bargeld, dos Einstürzende Neubauten, para os Bad Seeds significou o reforço do esqueleto
e da musculatura do grupo mas mesmo essa terapia parece já não surtir efeito sobre
um “rocker” que, aparentemente, em definitivo deixou de o ser. Porém, a poesia e
o terço de “Nocturama” continuam a deixar marca. O hábito pode provocar sintomas
semelhantes aos da morfina.
Ou será que “Babe, I’m on fire” é o primeiro passo
do eterno retorno? Nesta litania cujo objetivo é idêntico ao dos Neubauten,
isto é, a demolição sistemática das casas (“Home is in my head”, cantava alguém
e Cave chamou ao seu primeiro DVD, recentemente editado, “God is in the
House”…) que sustentam e abrigam os medos de cada um de nós, e a incineração
dos crucifixos na pira da loucura.
Um ex-seminarista, Ernest D. Gengenbach, escreveu,
no auge do período do Surrealismo, uma obra intitulada “A Experiência Demoníaca”.
Salvou-se ou não, no final, leiam o livro. Nick Cave anda por aí, a desviar-se
ou, vá lá saber-se, a dar comida à mão aos seres noturnos. O branco da capa de
“Nocturama” é o da noite.
NICK CAVE
LISBOA|Grande Auditório do Centro Cultural de Belém
Pç. Império. Dias 24 e 25, às 21h30.
Tel.: 213612444 . Bilhetes entre €50 e €30
Sem comentários:
Enviar um comentário