CULTURA
QUINTA-FEIRA, 26 FEV 2004
Crítica
Música
E Deus desceu à cave
NICK CAVE
LISBOA
Centro Cultural de Belém
3ª-feira,
dia 24, às 21h30.
Lotação
esgotada
Encarado frio, não foi um
concerto de antologia, embora a espaços chegasse a ser entusiasmante. Nick
Cave, o cantor australiano das baladas soturnas através das quais tenta ficar
de bem com Deus e com o diabo, e do rock incendiário que ainda subsiste no seu
trabalho com os Bad Seeds, regressou a Portugal para lotar na noite de terça-feira
(o concerto de ontem teve igualmente lotação esgotada) o grande auditório do Centro
Cultural de Belém, em Lisboa, e reatar os laços de sangue que o unem à sua imensa
legião de admiradores portugueses.
Mas se os cardos do rock picaram e fizeram arder, as rosas
das baladas chegaram a provocar bocejos. Cave, o “crooner” de colarinho grande,
fato escuro e cigarro aceso ao canto da boca, tocou piano e cantou na sua voz
grave o habitual caminho que, nas suas canções, se estende da salvação à
condenação. Da elevação de “Hallelujah” ao assassínio como uma das belas artes
de “Henry Lee”.
O problema esteve nesse pequeno pormenor também ele capaz de
assassinar uma boa canção: o velho desafinanço. E Cave desafinou, andou à
deriva em busca do tom certo, atingindo o nível mais baixo numa desastrosa interpretação
de “Do you love me?” (se cantasse sempre assim não haveria, decerto, quem o
amasse…), um dos temas, juntamente com “Love letter” e “God is in the house”,
do álbum “No More Shall We Part”. Contudo, se a voz falhou, a emoção esteve
sempre presente. E nos temas rock, com as tripas de fora, ele e o grupo foram
avassaladores, como em “Wild life”, retirado do velho reportório dos Birthday
Party, e na demencial descarga de raiva e decibéis, já nos “encore” (foram três),
de “Stagger Lee, do álbum “Murder Ballads”, onde o violinista Warren Ellis
provou ser mais eficaz no registo “noise” (várias vezes segurou e tocou o
instrumento como se tratasse de uma guitarra elétrica) do que nas
“performances” mais melódicas das baladas.
“Watching Alice” (de “Tender Prey”), “Lucy” (de “The Good
Son”) “Sad waters” (de “Your Funeral… My Trial”) e “The singer” (composto por e
em homenagem a Johnny Cash, do álbum “Kicking Against the Pricks”) foram outros
temas escolhidos por Cave para prender o CCB, a par dos mais recentes
“Wonderful life” (a abrir o concerto) e “Still in love”, “He wants you” e “Rock
of Gibraltar”, do novo “Nocturama”, com direito a esquecimento de uma letra,
diálogos em português arrevesado com o público e apresentação de atestado de
baixa por danos psicológicos (“os anos 80 provocaram-me alguns estragos cerebrais…
e os 90… bom, pensando bem, os 70 também…) que é, ao mesmo tempo, certificado
de garantia da energia demoníaca que subjaz a toda a sua música, de “West
country girl” (transformada em “evil song”…) a cada golfada de sangue que
espirra de feridas ainda abertas. “Ganda maluco!”, gritou alguém do camarote.
O público, escusado dizer, adorou, entrando em delírio
quando Cave se aproximou da boca de cena para cumprimentar os fãs, incluindo
uma rapariga em transe depois de ter conseguido ser beijada na boca pelo
cantor. O beijo da serpente. Mas que importa, se as sementes daninhas continuam
a ter terreno fértil em Portugal?
EM RESUMO
O Cave soporífero de
algumas baladas foi suplantado pelo velho rocker dos Birthday Party. Chegou a ser
demolidor
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