17/02/2020

E Deus desceu à cave [Nick Cave]


CULTURA
QUINTA-FEIRA, 26 FEV 2004

Crítica Música

E Deus desceu à cave

NICK CAVE
LISBOA Centro Cultural de Belém
3ª-feira, dia 24, às 21h30.
Lotação esgotada

Encarado frio, não foi um concerto de antologia, embora a espaços chegasse a ser entusiasmante. Nick Cave, o cantor australiano das baladas soturnas através das quais tenta ficar de bem com Deus e com o diabo, e do rock incendiário que ainda subsiste no seu trabalho com os Bad Seeds, regressou a Portugal para lotar na noite de terça-feira (o concerto de ontem teve igualmente lotação esgotada) o grande auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e reatar os laços de sangue que o unem à sua imensa legião de admiradores portugueses.
Mas se os cardos do rock picaram e fizeram arder, as rosas das baladas chegaram a provocar bocejos. Cave, o “crooner” de colarinho grande, fato escuro e cigarro aceso ao canto da boca, tocou piano e cantou na sua voz grave o habitual caminho que, nas suas canções, se estende da salvação à condenação. Da elevação de “Hallelujah” ao assassínio como uma das belas artes de “Henry Lee”.
O problema esteve nesse pequeno pormenor também ele capaz de assassinar uma boa canção: o velho desafinanço. E Cave desafinou, andou à deriva em busca do tom certo, atingindo o nível mais baixo numa desastrosa interpretação de “Do you love me?” (se cantasse sempre assim não haveria, decerto, quem o amasse…), um dos temas, juntamente com “Love letter” e “God is in the house”, do álbum “No More Shall We Part”. Contudo, se a voz falhou, a emoção esteve sempre presente. E nos temas rock, com as tripas de fora, ele e o grupo foram avassaladores, como em “Wild life”, retirado do velho reportório dos Birthday Party, e na demencial descarga de raiva e decibéis, já nos “encore” (foram três), de “Stagger Lee, do álbum “Murder Ballads”, onde o violinista Warren Ellis provou ser mais eficaz no registo “noise” (várias vezes segurou e tocou o instrumento como se tratasse de uma guitarra elétrica) do que nas “performances” mais melódicas das baladas.
“Watching Alice” (de “Tender Prey”), “Lucy” (de “The Good Son”) “Sad waters” (de “Your Funeral… My Trial”) e “The singer” (composto por e em homenagem a Johnny Cash, do álbum “Kicking Against the Pricks”) foram outros temas escolhidos por Cave para prender o CCB, a par dos mais recentes “Wonderful life” (a abrir o concerto) e “Still in love”, “He wants you” e “Rock of Gibraltar”, do novo “Nocturama”, com direito a esquecimento de uma letra, diálogos em português arrevesado com o público e apresentação de atestado de baixa por danos psicológicos (“os anos 80 provocaram-me alguns estragos cerebrais… e os 90… bom, pensando bem, os 70 também…) que é, ao mesmo tempo, certificado de garantia da energia demoníaca que subjaz a toda a sua música, de “West country girl” (transformada em “evil song”…) a cada golfada de sangue que espirra de feridas ainda abertas. “Ganda maluco!”, gritou alguém do camarote.
O público, escusado dizer, adorou, entrando em delírio quando Cave se aproximou da boca de cena para cumprimentar os fãs, incluindo uma rapariga em transe depois de ter conseguido ser beijada na boca pelo cantor. O beijo da serpente. Mas que importa, se as sementes daninhas continuam a ter terreno fértil em Portugal?

EM RESUMO
O Cave soporífero de algumas baladas foi suplantado pelo velho rocker dos Birthday Party. Chegou a ser demolidor

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