JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 14 FEVEREIRO 2004
O alargamento das fronteiras
e da “praxis” da música improvisada foi um dos objectivos em vida de Peter
Kowald. “World” afinal também liga com jazz. Neste caso, um mundo tão global
que se estendia a outros planetas.
O
improvisador planetário
Morreu em Nova
Iorque, há três anos – Peter Kowald, o improvisador planetário. Não foi o mais
amado dos improvisadores, mas foi certamente um dos mais inquietos e
imaginativos. Era alemão, de Wuppertal, tocava contrabaixo e, ao longo de uma
carreira pautada pela busca e pelo alargamento dos horizontes da improvisação, tocou
com a Globe Unity de Alexander Von Schlippenbach, com Manfred Schoof e Peter
Brötzmann (no incontornável disparo de “Machine Gun”) e ajudou na fundação da
editora FMP (“Free Music Productions”).
O contacto com várias culturas do
globo levou-o a integrar no léxico da improvisação novas linguagens, recolhidas
sobretudo da música tradicional, mas também à adaptação de tecnologias e outros
idiomas extrínsecos ao jazz. Nunca quis a fusão, mas privilegiou o diálogo. No
jazz como na folk, também ele, como nós, abominava a sopa. Talvez por isso os
apreciadores do jazz mais canonizado o encarassem com alguma indiferença. Tanto
pior – para Kowald o importante não era a ortodoxia, mas a descoberta.
O segundo volume de “Duos” é uma
oportunidade irrecusável para comprovar a extensão desta prática e desta atitude.
Composto por gravações registadas entre 1986 e 1990, o álbum apresenta
diálogos, discussões, “big bangs”, iluminações e maldições partilhadas com
outros aventureiros. A lista é impressionante: Evan Parker, Jeanne Lee (também
já desaparecida), Toshinori Kondo, Julius Hemphill (idem), Seizan Matsuda,
Diamanda Galas, Conrad Bauer, Butch Morris, Fred Frith, Masahiko Kono, Andrew
Cyrille, Floros Floridis, Michihiro Sato, Derek Bailey, Marilyn Mazur, Junko Handa,
Yoshisaburo Toyozumi e Tom Cora (idem, idem). Os contrapontos e réplicas provêm
da eletrónica, saxofone, clarinete, baixo, violoncelo, trombone, bateria… mas
também dos étnicos shakuhachi, shamisen, biwa… E da voz endemoninhada da bruxa
Galas. É “world music” no sentido mais lato do termo, não enfermada a qualquer tipologia.
Kowald rompeu os limites sem se render no niilismo. Não é audição fácil, nem
poderia ser. A gramática avançada do alemão ignorava as evidências. Dependia
dele pescar no fundo de águas agitadas por diferentes graus de ondulação e
contaminação.
Cada um destes duos é conversa singular,
nalguns casos hermética, mas empenhada em reter e pronunciar o essencial. “Drones”
e baixas frequências subterrâneas, histeria de arco, vociferar furibundo,
contemplação tensa, contágio, fogo. O contrabaixo de Kowald era um animal
mitológico, organismo mágico e mutante que da música do outro fazia janela, porta
e espelho. Retire-se a senha com qualquer um dos nomes citados. Ver-se-á que Kowald
se ajusta aos seus tempos e aos seus mundos sem perder a personalidade própria.
Ouça-se, por exemplo, o que ele faz com Galas ou o que Galas faz com ele. Se
ela é a feiticeira, o seu contrabaixo é a varinha do mago. Ela “scata” no
inferno, como é seu hábito; ele responde com um zumbido de vespa assassina, o
ferrão pronto a espetar-se. No Jazz? Mas é jazz, isto? Que importam os rótulos?
Kowald não age como um “jazzman”, mas como um conspirador, xamã, ladrão e
cavalheiro. Procurem lugares ermos mas não pensem em descortinar fronteiras. A “Global
Village” que Kowald criou em vida era a sua pátria. E, lá, todos os que a
visitavam sentiam-se livres.
E já que falamos em duos, Joe McPhee
e Evan Parker estão à altura um do outro, em “Chicago Tenor Duets”. Ao ecletismo
intuitivo do primeiro responde o conceptualista dos Spontaneous Music Ensemble
com uma visão mais intelectualizada, mas também mais frenética. O contexto é simples
no enunciado – onze duetos de saxofone tenor – resultando a complexidade da
complementaridade, mais do que da soma. Como seria de esperar, recorrem ambos
as técnicas extensivas, nomeadamente o “ataque” à palheta e a respiração
circular, como no “Duet 4”. Música de vísceras mas também de chamamento (“Duet
7”), vive tanto da concentração como da interrogação sobre a estabilidade que
resulta do choque entre dois combatentes. Na prática, porém, é mais pacífico do
que parece.
Retornemos ao conforto da Nagel
Hayer e à sua inesgotável reserva de jazz bem escorado na tradição. “Real Life
Stories” (2001), de Donald Harrison, saxofonista alto, arrisca pouco, contando com
uma secção rítmica competente que tira o melhor partido da inspirada
contribuição de Eric Reed, ao piano. Jazz arreigado às convenções mas, definitivamente,
bem tocado e sentido. Tem um tema de Sonny Rollins (“Oleo”), outro de Dizzy
Gillespie (“A night in Tunisia”), outro ainda de Paul Desmond (“Take five”, servido por um
alto à altura do original). Três ultraclássicos que reforçam a veia
tradicionalista destas histórias da vida real. Harry “Sweets” Edisom,
trompetista principal da “big band” de Count Basie, entre 1938 e 1950, parceiro
de Ben Webster e Art Tatum, falecido em 1999, após uma vida bem recheada de
jazz, volta a swingar na nossa memória numa sessão ao vivo de 1986, no
Quasímodo de Berlim, “There Will Never be Another You”. A guitarra de Giorgio Crobu
tem métrica fluente e instinto, Hendrik Meurkens espalha colorido com gama alta
de reverberação no vibrafone e Torsten Zwingenberger (atualmente elemento do grupo
de Lyambiko, leia-se o texto da semana passada) acentua com alguma graça os contratempos.
“Sweets” faz o resto, com o seu trompete sem arestas afiadas, atinado nas
surdinas, em temas de Gillespie, Ellington, Gordon, Gershwin ou Jobim (numa “Wave”
dispersa pelo caricatural e a genuína melancolia da bossa-nova).
PETER KOWALD
Duos
2
FMP, distri. Multidisc
8 | 10
EVAN PARKER & JOE McPHEE
Chicago
Tenor Duets
Okka, distri. Ananana
7 | 10
DONALD HARRISON
Real
Life Stories
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