13/02/2020

O improvisador planetário [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 14 FEVEREIRO 2004

O alargamento das fronteiras e da “praxis” da música improvisada foi um dos objectivos em vida de Peter Kowald. “World” afinal também liga com jazz. Neste caso, um mundo tão global que se estendia a outros planetas.

O improvisador planetário

Morreu em Nova Iorque, há três anos – Peter Kowald, o improvisador planetário. Não foi o mais amado dos improvisadores, mas foi certamente um dos mais inquietos e imaginativos. Era alemão, de Wuppertal, tocava contrabaixo e, ao longo de uma carreira pautada pela busca e pelo alargamento dos horizontes da improvisação, tocou com a Globe Unity de Alexander Von Schlippenbach, com Manfred Schoof e Peter Brötzmann (no incontornável disparo de “Machine Gun”) e ajudou na fundação da editora FMP (“Free Music Productions”).
            O contacto com várias culturas do globo levou-o a integrar no léxico da improvisação novas linguagens, recolhidas sobretudo da música tradicional, mas também à adaptação de tecnologias e outros idiomas extrínsecos ao jazz. Nunca quis a fusão, mas privilegiou o diálogo. No jazz como na folk, também ele, como nós, abominava a sopa. Talvez por isso os apreciadores do jazz mais canonizado o encarassem com alguma indiferença. Tanto pior – para Kowald o importante não era a ortodoxia, mas a descoberta.
            O segundo volume de “Duos” é uma oportunidade irrecusável para comprovar a extensão desta prática e desta atitude. Composto por gravações registadas entre 1986 e 1990, o álbum apresenta diálogos, discussões, “big bangs”, iluminações e maldições partilhadas com outros aventureiros. A lista é impressionante: Evan Parker, Jeanne Lee (também já desaparecida), Toshinori Kondo, Julius Hemphill (idem), Seizan Matsuda, Diamanda Galas, Conrad Bauer, Butch Morris, Fred Frith, Masahiko Kono, Andrew Cyrille, Floros Floridis, Michihiro Sato, Derek Bailey, Marilyn Mazur, Junko Handa, Yoshisaburo Toyozumi e Tom Cora (idem, idem). Os contrapontos e réplicas provêm da eletrónica, saxofone, clarinete, baixo, violoncelo, trombone, bateria… mas também dos étnicos shakuhachi, shamisen, biwa… E da voz endemoninhada da bruxa Galas. É “world music” no sentido mais lato do termo, não enfermada a qualquer tipologia. Kowald rompeu os limites sem se render no niilismo. Não é audição fácil, nem poderia ser. A gramática avançada do alemão ignorava as evidências. Dependia dele pescar no fundo de águas agitadas por diferentes graus de ondulação e contaminação.
            Cada um destes duos é conversa singular, nalguns casos hermética, mas empenhada em reter e pronunciar o essencial. “Drones” e baixas frequências subterrâneas, histeria de arco, vociferar furibundo, contemplação tensa, contágio, fogo. O contrabaixo de Kowald era um animal mitológico, organismo mágico e mutante que da música do outro fazia janela, porta e espelho. Retire-se a senha com qualquer um dos nomes citados. Ver-se-á que Kowald se ajusta aos seus tempos e aos seus mundos sem perder a personalidade própria. Ouça-se, por exemplo, o que ele faz com Galas ou o que Galas faz com ele. Se ela é a feiticeira, o seu contrabaixo é a varinha do mago. Ela “scata” no inferno, como é seu hábito; ele responde com um zumbido de vespa assassina, o ferrão pronto a espetar-se. No Jazz? Mas é jazz, isto? Que importam os rótulos? Kowald não age como um “jazzman”, mas como um conspirador, xamã, ladrão e cavalheiro. Procurem lugares ermos mas não pensem em descortinar fronteiras. A “Global Village” que Kowald criou em vida era a sua pátria. E, lá, todos os que a visitavam sentiam-se livres.
            E já que falamos em duos, Joe McPhee e Evan Parker estão à altura um do outro, em “Chicago Tenor Duets”. Ao ecletismo intuitivo do primeiro responde o conceptualista dos Spontaneous Music Ensemble com uma visão mais intelectualizada, mas também mais frenética. O contexto é simples no enunciado – onze duetos de saxofone tenor – resultando a complexidade da complementaridade, mais do que da soma. Como seria de esperar, recorrem ambos as técnicas extensivas, nomeadamente o “ataque” à palheta e a respiração circular, como no “Duet 4”. Música de vísceras mas também de chamamento (“Duet 7”), vive tanto da concentração como da interrogação sobre a estabilidade que resulta do choque entre dois combatentes. Na prática, porém, é mais pacífico do que parece.
            Retornemos ao conforto da Nagel Hayer e à sua inesgotável reserva de jazz bem escorado na tradição. “Real Life Stories” (2001), de Donald Harrison, saxofonista alto, arrisca pouco, contando com uma secção rítmica competente que tira o melhor partido da inspirada contribuição de Eric Reed, ao piano. Jazz arreigado às convenções mas, definitivamente, bem tocado e sentido. Tem um tema de Sonny Rollins (“Oleo”), outro de Dizzy Gillespie (“A night in Tunisia”), outro ainda de  Paul Desmond (“Take five”, servido por um alto à altura do original). Três ultraclássicos que reforçam a veia tradicionalista destas histórias da vida real. Harry “Sweets” Edisom, trompetista principal da “big band” de Count Basie, entre 1938 e 1950, parceiro de Ben Webster e Art Tatum, falecido em 1999, após uma vida bem recheada de jazz, volta a swingar na nossa memória numa sessão ao vivo de 1986, no Quasímodo de Berlim, “There Will Never be Another You”. A guitarra de Giorgio Crobu tem métrica fluente e instinto, Hendrik Meurkens espalha colorido com gama alta de reverberação no vibrafone e Torsten Zwingenberger (atualmente elemento do grupo de Lyambiko, leia-se o texto da semana passada) acentua com alguma graça os contratempos. “Sweets” faz o resto, com o seu trompete sem arestas afiadas, atinado nas surdinas, em temas de Gillespie, Ellington, Gordon, Gershwin ou Jobim (numa “Wave” dispersa pelo caricatural e a genuína melancolia da bossa-nova).

PETER KOWALD
Duos 2
FMP, distri. Multidisc
8 | 10

EVAN PARKER & JOE McPHEE
Chicago Tenor Duets
Okka, distri. Ananana
7 | 10

DONALD HARRISON
Real Life Stories

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