CULTURA
QUARTA-FEIRA, 18 FEV 2004
Crítica
Música
Fórmula 1 sem competição
Carlos Nuñez
LISBOA
Grande Auditório do CCB.
2.ª
feira, às 21h. Sala cheia.
Um músico fabuloso pode dar
um mau concerto? Às vezes acontece. Aconteceu na passada segunda-feira, no
Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, onde Carlos
Nuñez fez nova demonstração do seu virtuosismo sem que tal fosse sufi ciente
para afastar o espetáculo, nalguns momentos, da vulgaridade.
Ponto assente: a tocar “tin whistle”, uma quantidade de flautas,
ocarina ou gaita galega, Carlos Nuñez é um assombro e, nesse capítulo, a sua apresentação
no CCB não fez mais do que confirmar as suas inegáveis capacidades de
intérprete. Nos “reels” irlandeses, nas modalidades galegas, nos tempos rápidos
(que no seu caso roçam a vertigem) ou nos lentos, Nuñez reafirmou a sua técnica
quase sobrenatural, aliada a um sentido inato do tempo e à capacidade em
extrair de cada tema a sua natureza mais íntima.
Mas Nuñez, sozinho, não pode fazer tudo. O quarteto que o acompanhou
no CCB, por mais entusiasmo e empenhamento postos na função, não conseguiu estar
à altura do solista. Pancho Alvarez, no bandolim, cumpriu sem brilhar, e Begoña
Riobó mostrou que o seu violino entra em “panne” a partir da quinta velocidade,
já para não falar da dificuldade em entrar no tom certo da única vez que foi
chamada a cantar, em “Cantigueiras”, de “A Irmandade das Estrelas”. Quanto ao baterista
Xuxo Nuñez, fez levantar uma vez mais a questão de saber até que ponto a
bateria enriquece ou não as danças tradicionais. Neste caso, não enriqueceu.
Os ritmos quadrados, a batida primária, podem chamar as
palmas mas enterram qualquer tipo de veleidade de fazer correr um “swing” de maior
complexidade. Xuxo também tocou – mas quase não se ouviu, por deficiente
amplificação, o “bodhran” – e tentou dar “show” num solo de percussão numa espécie
de txalaparta improvisada. Soou a circo.
Claro, a tudo isto, acrescido a um reportório escolhido para
agradar sem exigir, resvalando em certos temas para a folk-pimba, respondeu
Nuñez com intervenções de cortar o fôlego. Num dos solos de gaita, antecipado por
uma explicação didática e bem-humorada das diferenças entre as gaitas-de-foles
escocesa, irlandesa e galega, reproduziu na galega (mas como consegue ele arrancar
tais prodígios, apetece perguntar?) o timbre das “Highland pipes” escocesas
antes de se lançar, desvairado, num tempo do outro mundo, onde a música, as emoções
e os sentidos são arrastados para uma pista de corridas.
Houve surpresas. Com convidados portugueses. Lilia, uma das
vozes reveladas na Academia de Estrelas, da TVI, lançada às feras, cumpriu com gravidade
o papel que em “A lavandeira da noite”, do álbum “Os Amores Libres”, é
desempenhado por Noa. Paulo Marinho e José Manuel David, dos Gaiteiros de
Lisboa, fizeram de micro-Bagad, em “El ottro Finisterre” e no final apoteótico,
“Aires de Pontevedra”. Parte do público, que encheu o CCB, fez roda e invadiu o
palco (como já acontecera, sábado, no Rivoli do Porto) dançando, mas sem folia,
um “an dro” bretão mas, no final, nem sequer foram pedidos todos os “encores”
que o alinhamento previa.
No meio da festa que não chegou a acontecer – o palco imenso
do auditório do CCB afasta os músicos e arrefece os ânimos, neste tipo de
música –, cumpre salientar um momento onde tudo foi redimido pela devoção,
quando Nuñez homenageou Derek Bell, o harpista dos Chieftains falecido em
Outubro de 2002, com Xuxo Nuñez a recortar ao piano as notas de cristal de uma
harpa céltica.
Fez-se silêncio, a noite iluminou-se na despedida de um
“air” (“Women of Ireland”, original composto por Bell para a banda sonora de
“Barry Lyndon”) e Carlos Nuñez ergueu o “tin whistle”, soltando o eco das
últimas notas em direção ao céu.
EM RESUMO
Um músico fabuloso não chegou para fazer um bom concerto.
Mas a homenagem a Derek Bell roçou o sublime
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