13/02/2020

Fórmula 1 sem competição [Carlos Nuñez]


CULTURA
QUARTA-FEIRA, 18 FEV 2004

Crítica Música

Fórmula 1 sem competição

Carlos Nuñez
LISBOA Grande Auditório do CCB.
2.ª feira, às 21h. Sala cheia.

Um músico fabuloso pode dar um mau concerto? Às vezes acontece. Aconteceu na passada segunda-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, onde Carlos Nuñez fez nova demonstração do seu virtuosismo sem que tal fosse sufi ciente para afastar o espetáculo, nalguns momentos, da vulgaridade.
Ponto assente: a tocar “tin whistle”, uma quantidade de flautas, ocarina ou gaita galega, Carlos Nuñez é um assombro e, nesse capítulo, a sua apresentação no CCB não fez mais do que confirmar as suas inegáveis capacidades de intérprete. Nos “reels” irlandeses, nas modalidades galegas, nos tempos rápidos (que no seu caso roçam a vertigem) ou nos lentos, Nuñez reafirmou a sua técnica quase sobrenatural, aliada a um sentido inato do tempo e à capacidade em extrair de cada tema a sua natureza mais íntima.
Mas Nuñez, sozinho, não pode fazer tudo. O quarteto que o acompanhou no CCB, por mais entusiasmo e empenhamento postos na função, não conseguiu estar à altura do solista. Pancho Alvarez, no bandolim, cumpriu sem brilhar, e Begoña Riobó mostrou que o seu violino entra em “panne” a partir da quinta velocidade, já para não falar da dificuldade em entrar no tom certo da única vez que foi chamada a cantar, em “Cantigueiras”, de “A Irmandade das Estrelas”. Quanto ao baterista Xuxo Nuñez, fez levantar uma vez mais a questão de saber até que ponto a bateria enriquece ou não as danças tradicionais. Neste caso, não enriqueceu.
Os ritmos quadrados, a batida primária, podem chamar as palmas mas enterram qualquer tipo de veleidade de fazer correr um “swing” de maior complexidade. Xuxo também tocou – mas quase não se ouviu, por deficiente amplificação, o “bodhran” – e tentou dar “show” num solo de percussão numa espécie de txalaparta improvisada. Soou a circo.
Claro, a tudo isto, acrescido a um reportório escolhido para agradar sem exigir, resvalando em certos temas para a folk-pimba, respondeu Nuñez com intervenções de cortar o fôlego. Num dos solos de gaita, antecipado por uma explicação didática e bem-humorada das diferenças entre as gaitas-de-foles escocesa, irlandesa e galega, reproduziu na galega (mas como consegue ele arrancar tais prodígios, apetece perguntar?) o timbre das “Highland pipes” escocesas antes de se lançar, desvairado, num tempo do outro mundo, onde a música, as emoções e os sentidos são arrastados para uma pista de corridas.
Houve surpresas. Com convidados portugueses. Lilia, uma das vozes reveladas na Academia de Estrelas, da TVI, lançada às feras, cumpriu com gravidade o papel que em “A lavandeira da noite”, do álbum “Os Amores Libres”, é desempenhado por Noa. Paulo Marinho e José Manuel David, dos Gaiteiros de Lisboa, fizeram de micro-Bagad, em “El ottro Finisterre” e no final apoteótico, “Aires de Pontevedra”. Parte do público, que encheu o CCB, fez roda e invadiu o palco (como já acontecera, sábado, no Rivoli do Porto) dançando, mas sem folia, um “an dro” bretão mas, no final, nem sequer foram pedidos todos os “encores” que o alinhamento previa.
No meio da festa que não chegou a acontecer – o palco imenso do auditório do CCB afasta os músicos e arrefece os ânimos, neste tipo de música –, cumpre salientar um momento onde tudo foi redimido pela devoção, quando Nuñez homenageou Derek Bell, o harpista dos Chieftains falecido em Outubro de 2002, com Xuxo Nuñez a recortar ao piano as notas de cristal de uma harpa céltica.
Fez-se silêncio, a noite iluminou-se na despedida de um “air” (“Women of Ireland”, original composto por Bell para a banda sonora de “Barry Lyndon”) e Carlos Nuñez ergueu o “tin whistle”, soltando o eco das últimas notas em direção ao céu.

EM RESUMO
Um músico fabuloso não chegou para fazer um bom concerto. Mas a homenagem a Derek Bell roçou o sublime


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