14/07/2021

Convénio dos espíritos [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 15 JANEIRO 2005


 Uma orquestra de notáveis do jazz inglês provou que a saudade não é palavra vã. Quando a Dedication Orchestra homenageou em dois trabalhos de fundo a memória dos The Blue Notes sul-africanos.
 
Convénio dos espíritos
 
Em meados dos anos 60, chegou à Europa um grupo de músicos oriundos da África do Sul que, estabilizado em Inglaterra, viria a fertilizar o jazz que nessa década se fez nesse país. Chamavam-se The Blue Notes e eram constituídos por Mongezi Feza, Dudu Pukwana, Nick Moyake, Kohnny Dyani, Louis Moholo e Chris McGregor, aos quais se viria a juntar, já em Inglaterra, Harry Miller. Já morreram todos, à exceção de Moholo. Os The Blue Notes fizeram furor, entre 1966 e 1968, nas velhas instalações do clube de Ronnie Scott. Desfeitas as notas azuis, McGregor formaria a fenomenal “big band” Brotherhood of Breath, enquanto os restantes elementos se envolveriam em projetos pessoais. Pukwana com os Assagai e Zila, Dyani com os Witchdoctor’s Son, Moholo com os Viva La Black e Harry Miller com os Isipingo, enquanto Feza se juntava a Robert Wyatt, dos Soft Machine. Todos eles deixaram obra excitante gravada. Desaparecidos os músicos, os seus parceiros ingleses sentiram a necessidade de os homenagear, juntando-se para tal numa outra “big band”, a Dedication Orchestra ,que gravaria em 1992 o álbum “Spirits Rejoice”, ao qual se seguiria, dois anos mais tarde, o duplo “Ixesha”.
            A formação é de sonho: Phil Minton, Maggie Nichols, Julie Tippetts, Harry Beckett, Kenny Wheeler, Django Bates, Malcolm Griffiths, Radu Malfatti, Paul Rutherford, Neil Metcalfe, Lol Coxhill, Ray Warleigh, Elton Dean, Evan Parker, Alan Skidmore, Paul Rogers, Louis Moholo, Keith Tippett, entre outros, estando igualmente presentes, como arranjadores, Mike Westbrook e John Warren. Falta alguém?
            A música é igualmente monumental, evocando a grandeza da Brotherhod of Breath (ou, noutra medida, da experiência Centipede), com composições assinadas por Miller, Dyani, Pukwana, McGregor, Feza e – dos vivos – Moholo. Música luminosa, vívida, sumptuosa, característica do jazz inglês, com momentos de livre improvisação, a solo ou coletiva, enquadrados em estruturas composicionais perfeitamente delineadas. Tippett contrapõe os cristais afiados do seu piano às explosões quentes dos sopros, a cânticos de coloração étnica e espiritual. Duas curiosidades são a radical improvisação vocal a três de “Introduction to you ain’t gonna know me” e o arranjo, com largo espaço solístico para a flauta de Metcalfe, de “Sonia”, de Mongezi Feza, diferente daquele que consta de “Ruth is Stranger than Richard”, de Robert Wyatt. Os espíritos dos idos e dos presentes reuniram-se de facto nesta evocação de sons e afetos.
            “Ixesha” (“tempo”) é ainda mais ambicioso, repartindo-se por dois álbuns com, de novo, composições dos elementos dos The Blue Notes e arranjos repartidos. No “line up” as entradas mais sonantes são as de Bergin, também músico dos Viva La Black, e Henry Lowther. A música estende-se por solos mais longos, numa diversidade que incorpora as raízes africanas, a liberdade do “free” e as inovações do “bop”. Fascinante verificar como estas três vertentes se conjugam numa faixa como “The serpent’s kindly eye”, de Chris McGregor, com arranjo de John Warren. Julie Tippetts rubrica a vocalização, tão melancólica como a do seu próprio “rock bottom”, chamado “Sunset glow”, em “Lost opportunities”, de Harry Miller: “Near the end of lost dreams/There is a place to be found in the heart/Where experience gathering is torn apart”, canta como se chovesse. Apesar de escrito por sul-africanos, o melhor jazz inglês está aqui.
            Gravado três anos antes de “Spirits Rejoice”, “Unlimited Saxophone Company” é outro bom exemplo de bom jazz inglês. A liderar o projeto está o saxofonista alto Elton Dean, que se notabilizara nos anos 70, nos Soft Machine. Os outros três saxofonistas são Paul Dunmall, dos Mujician (tenor e barítono), Simon Pickard (tenor) e Trevor Watts (alto), estando o ritmo a cargo de Paul Rogers (contrabaixo) e Tony Levin (bateria). Apesar de a gravação, registada ao vivo no Covent Garden Jazz Saxophone Festival, nem sempre ostentar a nitidez desejada, este conjunto de saxofones soa convenientemente poderoso e inventivo, a revelar a faceta menos fusionista de outros projetos do ex-Soft Machine (com quem tocou nos álbuns “Third”, “4th” e “5”) como Soft Heap e In Cahoots. Por vezes, o registo é um pouco o de uma “blowing session” casual (o contrário da Dedication Orchestra), mas composições como “Small strides” e “One three nine” repõem a ordem e o equilíbrio na desbunda saxofonística.
            Outras histórias são contadas pelo histórico Phil Woods em “Here’s to My Lady”, de 1989, recuperado em formato super áudio CD. Neste seu primeiro registo para a Chesky o saxofonista apresenta uma versão pessoal em temas deliberadamente curtos (três em clarinete) de “standards” de Count Basie ou Bill Evans (o aclamado “Waltz for Debbie”), ou dedicatórias a Johnny Hodges, influência assumida, e Charlie Parker, de quem era fervoroso admirador. Sem o ímpeto inovador dos anos 60, com a sua European Rhythm Machine, Woods cultiva aqui a sua veia mais terna, ao lado do seu velho companheiro dos tempos da Prestige, o pianista Tommy Flanagan. Exemplares da sua aproximação à balada são “Another love song”, “Butter” ou “Blue and sentimental”, onde cita as virtudes, menos conhecidas, de Lester Young, como clarinetista. “Não se trata de técnica”, diz, “mas da economia de notas”. “Here’s to My Lady” cinge-se ao essencial, na vertente “bop” mais contemplativa.
            Outro registo ao vivo, no Keystone Korner, em São Francisco, 1977, devolve-nos, em terceiro volume de recolhas, gravações ao vivo do trompetista Woody Shaw. Com Steve Turre (trombone), Mulgrew Miller e Larry Willis (piano, em faixas diferentes), Stafford James (contrabaixo) e Victor Lewis (bateria). Shaw é um instrumentista polivalente, pouco dado a excessos mas a sua mestria harmónica é notória, incorporando em “Teotiuacan” elementos de música mexicana antiga. “Organ grinder” é dedicado ao organista Larry Young e, no todo, este “Live Volume Three” não destoa na prateleira de um apreciador completista de pós-“hard bop”
            James Carter, saxofonista polivalente (soprano, tenor e barítono), soa moderno no seu registo de 2001 no Baker’s Keyboard Lounge, de Detroit. Aqui o jazz recupera “clichés” e maneirismos com os pés fincados no “rhythm‘n’blues” e no “funk”, que Carter espezinha para se divertir a solar divertida e desbragadamente por cima. Gerald Gibbs, no órgão, é mesmo “lounge” em “Soul street”, e se Carter se revela um bom soprano no “Tricotism” de Oscar Pettiford, é quando o convidado David Murray (quando calha a excessos também está sempre disponível...) se lhe junta no tenor, como em “Freedom jazz dance” que as coisas se incendeiam. A fechar, “Foot pattin’” é mesmo uma festa de tenores, com Carter, Murray, Franz Jackson e outro notável, Johnny Griffin, a swingarem como doidos.
 
The Dedication Orchestra
Spirits Rejoice
Ogun, distri. Trem Azul
9 | 10
 
The Dedication Orchestra
2xCD Ogun, distri.
Trem Azul
9 | 10
 
Elton Dean
Unlimited Saxophone Company
Ogun, distri. Trem Azul
7 | 10
 
Phil Woods
Here’s to my Lady
SACD Chesky, distri. Megamúsica
7 | 10
 
Woody Shaw
Live Volume Three
HighNote, distri. Zona Música
7 | 10
 
James Carter
Live at Baker’s Keyboard Lounge
Warner Bros., distri. Warner Music
7 | 10

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