29/09/2021

A melancolia pode ser uma bênção [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 5 MARÇO 2005
 
O pianista sueco Esbjorn Svensson é o mais abençoado dos músicos desta semana. Paul Motian tem o sabor da tradição, Galliano o da transgressão. E chegou mais jazz português.
 
A melancolia pode ser uma bênção
 
“Viaticum” é a bênção religiosa dada aos moribundos. Mas o E.S.T., trio do pianista Esbjorn Svenssson, está longe de dar o último suspiro. Mesmo assim “Viaticum” é um álbum pautado por uma melancolia difusa, invernal, o menos efusivo, se quisermos, da discografia do trio. Keith Jarrett é influência assumida, mas aqui outras músicas se atravessam no caminho. A música brasileira em “The well-wisher”, o rock progressivo em “The unstable table & the infamous fable”, com algo eletrónico e de Steve Hackett a imitar uma guitarra elétrica que não consta da ficha técnica. É um dos grandes temas do disco de um grupo tão eclético que não se envergonha de citar e misturar Pat Metheny, Deep Purple, Radiohead, Brad Mehldau e os Sweet, também como influências.
            Entre a generalidade de temas melancólicos e jarrettianos, destaca-se pela sensibilidade pop e pelo trabalho hipnótico, quase krautrock, da bateria – “Letter from the leviathan”. “A picture of Doris travelling with Boris” é outra faixa que responde por uma atitude progressiva e onde, uma vez mais, o pianista faz bom uso da eletrónica. Mas o mais estranho de tudo são os vinte minutos, intercalados por um largo período de silêncio, de “What though the way may be long” que na parte final se espraia por uma ambiente de eletrónica e piano ambientais e minimalistas dignos de um Brian Eno, com toques de guitarra meio orientalizantes meio Terje Rypdal. “Viaticum” é, provavelmente, apesar de triste, o mais belo dos discos dos E. S. T.
            Introspetivo e a ligar bem com “Viaticum” é “I Have the Room above Her”, de Paul Motian, secundado por Bill Frisell e Joe Lovano. Aqui não é propriamente tristeza, mas uma serena visão das cores de um céu, diurno ou noturno, que se observa através de uma janela aberta. Lovano respira amplamente no tenor como só ele sabe, Motian revela-se um baterista completo, quem desenha as esquadrias dentro das quais se vão inscrever as melodias. Bill Frisell – suspiro – acrescenta as suas notas esparsas não destoando do ambiente geral de contemplação. Há nesta música uma sabedoria subjacente e esta vem, indubitavelmente, das lições, das muitas lições de história que o baterista deu e recebeu ao longo da sua extensa carreira, com etapas importantes em Coleman Hawkins, Lennie Tristano, Thelonious Monk, George Russell, Paul Bley, Keith Jarrett, Carla Bley e Bill Evans. O tempo e o tema gerais são as baladas, não há grandes revoluções, mas sim a tal justeza de tom que se mantém inalterável do princípio ao fi m. Se os E.S.T. são devedores de outras músicas que não o jazz, Paul Motian e os seus dois companheiros tudo devem ao jazz e à tradição. Claro que uma olhadela mais apressada pode lançar pela janela o anátema “som ECM”, mas mesmo neste caso a rotulação não adquire um sentido pejorativo. É jazz a três, interligado com amor e com um enorme amor pelo que existe entre todos os sons — o silêncio. Às vezes como, em “Osmosis, pt.1” a música cai como chuva, noutras, como em “Dance”, levanta-se alguma poeira do chão.
            Além de Bill Frisell, outro dos nossos ódios de estimação é o acordeão. No jazz. Não que Richard Galliano seja um executante hediondo deste instrumento, que não é – a sua técnica está mesmo acima de qualquer suspeita e “Ruby, my Dear” é até um álbum que se ouve com agrado, sobretudo para os apreciadores de qualquer coisa que está entre o “bal musette”, Piazzolla e o jazz.
            Na embalagem do digipak, é dito que Galliano é um explorador que “toca musette num tempo africano”, com o “espírito be-bop”, a “gravidade do blues”, a “pulsação de um clássico, latino”, o “romantismo de Monk”, a “profundidade de Pettiford” e a “modernidade envolvente de Erik Satie”. É preciso fazer um certo esforço da imaginação para aceitar tudo isto, apesar de o álbum incluir composições, precisamente, de Monk, Pettiford e Satie, mas o que impressiona acima de tudo é a técnica, um balanço constante e uma respiração dos foles que respeita tanto as tradições do jazz como da música popular de raiz mais popular. Mas temos que reconhecer que nos faz uma certa impressão escutar uma “Gnossienne” de Satie tocada em acordeão. Há músicas que parecem ter impressos na sua alma o som de um instrumento, neste caso o piano, e esta é uma delas. O necessário silêncio que inunda cada melodia esotérica do compositor impressionista está ausente. “Ruby, my dear” é agradável mas não impressionante, muito menos importante.
            E vamos a mais uma fornada de jazz português. Miguel Amado, músico que já esteve envolvido nos grupos de Pedro Madaleno e Ficções, lidera no baixo um quarteto composto ainda por Guto Lucena (saxofone), Ruben Alves (teclados) e Vicky (bateria). Estamos no domínio do jazz de fusão, doce, com – uma vez mais, e no que parece ser recorrente em músicos portugueses ligados a esta escola – a influência do jazz rock de Canterbury dos anos 70, de bandas como os Gilgamesh ou os Gong mais tardios. No título-tema o baixo dá o “groove”, em “Terra firme” dá tudo certo com um “riff” dos Soft Machine e “One last day” rima com os National Health. Não que Amado seja exatamente Richard Sinclair ou que Ruben Alves vista a pele do malogrado Alan Gowen, mas é impossível não pensar no jazz progressivo que qualquer das bandas citadas fazia na década de 70. Mais afastados desta área, estão o funky “Mr. Groove box” e a fusão mais convencional, com Guto Lucena em bom plano, de “O vírus”.
            “The Sound of Places”, de Pedro Madaleno, começa por dar nas vistas pelas belíssimas fotografias (de paisagens – lugares) inclusas. Depois é o discurso de Madaleno, sempre suave, que se impõe, tendo por companhia Wolfgang Fuhr (sax tenor), Nelson Cascais (contrabaixo) e Dejan Terzic (bateria). Os temas são narrativos, sem grandes contrastes, construídos sobre “riffs” e motivos em discreta mutação. O terreno é mais escarpado, graças ao saxofone de Fuhr, em “Montanhas” nesta coleção de lugares com som que incluem ainda “Campo”, “Água”, “Faróis na noite” (belíssima balada com a guitarra e o saxofone em sentido diálogo), “Deserto”, “Em órbita” (o jazz mais avançado, aqui com Madaleno em efeitos Sputnik) e “Igrejas” (o tema mais longo, com ar de “jam” pausada).
            Outro guitarrista, Afonso Pais, estreia-se com “Terranova”, ao lado de Carlos Barretto (contrabaixo) e Alexandre Frazão (bateria). Pais tem um som mais clássico, afirmativo e voluntarioso que Madaleno. “Terranova” ostenta um swing mais trabalhado, menos óbvio, para o qual muito contribui a eficácia da dupla Barretto/Frazão. “Domo da metazona” é um chorinho carioca que serve de demonstração de vários compassos diferentes, e o tema final, “Momentum”, é um original de Monk, executado com total empenhamento e boa dicção e gosto pela ação pelos três músicos, ainda aqui com um arranjo que lhe confere um cheirinho brasileiro e – lá está – um naco do fator Canterbury.
 
E.S.T.
Viaticum
Act, distri. Dargil
8 | 10
 
Paul Motian
I Have the Room Above her
ECM, distri. Dargil
7 | 10
 
Richard Galliano
Ruby, My Dear
Dreyfus, distri. Megamúsica
6 | 10
 
Miguel Amado
Mensagens de Fumo
Escutar, distri. Trem Azul
7 | 10
 
Pedro Madaleno
The Sound of Places
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10
 
Afonso Pais
Terranova
Clean Feed, distri. Trem Azul
6 | 10

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