No Smoking Orchestra maiores que a vida
Y 21|JANEIRO|2005
música|reportagem
No Smoking Orchestra
maiores que a vida
A energia é a mesma dos filmes.
Uma força de auto-defesa contra um mundo que pretende apagar as minorias. O que
ouve é “punk” balcânico. O que se vê é circo. O que adivinha, uma “arte maior
que a vida”. Kusturica e a No Smoking Orchestra passaram por Lisboa como um
vendaval.
Afinal
de contas ninguém cometeu suicídio em palco durante o concerto da No Smoking Orchestra,
segunda-feira, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, como o cantor da banda, Dr.
Nele Karajilic, admitira. O niilismo punk que rodeia como uma auréola esta
orquestra que Dr. Nele fundou em 1980 funciona hoje como um rótulo de
provocação perfeitamente civilizada que tem tudo de espetáculo de circo mas
onde não ficaram perdidas de vistas as intenções intervencionistas que
estiveram na sua origem.
A energia é física, contagiante, mas
a sensação de perigo está ausente. Ou talvez esteja disfarçada.
A fúria balcânica continua a animar
os gestos e os sons desta pequena orquestra que hoje se apresenta nos palcos de
todo o mundo como um fenómeno da moda onde milita uma “movie star”, de seu nome
Emir Kusturica, o realizador politicamente desalinhado que toca guitarra elétrica
no grupo como “forma de terapia”. A energia, essa, diz Kusturica, é a mesma que
utilizou para filmar “O Tempo dos Ciganos” (1988), “Underground”, (1995) “Gato
Preto, Gato Branco” (1998) ou “A Vida é um Milagre” (2004) – os dois últimos
com banda sonora da No Smoking Orchestra, que substituiu Goran Bregovic como
comparsa musical do cineasta.
Dr. Nele tem unza unza no
sangue
Em
palco, no concerto lisboeta que marcou o encerramento da “Life is a Miracle
Tour”, Emir Kusturica é um dos mais calmos. “Sou o mais velho da banda, um old
punker (risos)”, reconhece ao Y, com um sorriso cansado, nos bastidores da
velha sala de Santo Antão, após o concerto. De tarde, durante os ensaios, ainda
ostentava a barba que era uma das suas imagens de marca. À noite, porém, o
rosto bem escanhoada dá-lhe uma outra aparência, rejuvenescida, do “guitar
hero” que nunca quis ser, embora “the show must go on” e também ele se entregue
de alma e coração a encenações que pouco têm a ver com a música, mas que têm o
condão de excitar ainda mais a multidão. Como fazer par com o violinista, “o
juiz”, e obrigar a sua guitarra a ranger contra uma corda estrategicamente
esticada no ar.
Dr. Nele Karajilic é a antítese de
Kusturica, o cromo irrequieto que enverga uma colorida camisa justa com
estampado Rorschach e não para um minuto quieto no palco ou nos banhos de
multidão a que se entrega durante o espetáculo. Karajilic é a bomba-relógio
prestes a explodir, o propagandista de megafone e o apresentador de serviço que
cita Frank Zappa e grita de cinco em cinco minutos, em português, a palavra “obrigado”,
só porque a vogal aberta “o” lhe parece quase comestível e porque pode ser
pronunciada durante bastante tempo. “Ooooooooobrigado!”. Dr. Nele tem indubitavelmente
“unza unza” no sangue, o remédio musical que a No Smoking Orchestra garante
fazer aumentar no organismo a proteína do amor.
Terminado o concerto, ao contrário
de Kusturica que parece prostrado, Dr. Nele continua eufórico. “Lisboa
apresentou uma das melhores audiências que alguma vez tivemos! E o lugar é
fantástico, a arquitetura parece do período shakespeareano, até por isso foi
engraçado tocarmos aqui ‘Romeu e Julieta’”. A Julieta em questão foi encontrada
entre a assistência, num dos camarotes laterais do Coliseu. “Julieta” foi
apenas uma das várias espontâneas que num ou noutro momento do concerto deram
corpo adicional à folia do grupo. Dr. Nele não esconde, aliás, o gosto em
ver-se rodeado de “groupies”, habituais nos espetáculos da banda. “Aparecem sempre,
umas vezes melhores, outras piores”, ria-se – “são como ‘cheerleaders’”, as raparigas
contratadas para animarem alguns espetáculos desportivos. “Eu sou o chefe das
‘cheerleaders’!”
Apetece questionar de onde vem esta entrega
quase sôfrega ao espetáculo desbragado... Dr. Nele é perentório: “Isso terá que
perguntar à minha mãe”. Como combustíveis garante que apenas se socorre “do
vinho e da cerveja”.
Uma digressão como “Life is a
Miracle Tour” já não é como as dos primeiros tempos em que o grupo andava “dois
e três meses na estrada, sem parar”. “Chegávamos ao fim, parecíamos máquinas”.
Hoje a orquestra faz dez espetáculos por mês, mas aproveita-os bem, mesmo que
às vezes nem sequer fixem os nomes das cidades por onde passam. O de Lisboa
certamente que não o vão esquecer. “É uma sala perfeita, gosto de sentir a
assistência perto de mim, mais de um ou dois metros já é demais”.
Durante duas horas Dr. Nele
Karajilic foi o compère de uma cerimónia tresloucada. Como as personagens dos
filmes de Kusturica, os músicos personificam gente tão incontrolável como a
vida. É o gosto pelo exagero, pela ilusão (os truques de ilusionismo com que a
Orchestra enfeita os seus “shows”), pela metamorfose contínua e inadiável. Há
um saxofonista que sopra no limite do paroxismo para logo a seguir se aquietar
sob melífluas melodias de casino. Há uma gigantesca tuba enrolada em torno de
um homem que persegue e dispara sobre Dr. Nele. Há um baterista sulfúrico que
não é o habitual (o habitual, Stribor Kusturica, filho do cineasta, ficou em
casa, aleijado num braço), um acordeonista compenetrado e há, é claro, o homem vestido
de escuro e sem o brilho Rorschach do vocalista, para onde todos os olhos se
voltam constantemente numa devoção não dissimulada. Ali está ele, Emir
Kusturica, que trocou o baixo pela guitarra elétrica, levando muito a sério o
seu segundo papel, de rocker.
Tudo somado e em corropio sem
pausas, a música, a encenação, o humor, os truques e até algum dramatismo têm o
colorido gordo do “maior que a realidade”. O mesmo realismo fantástico, ou
melhor, o mesmo fantástico realista que Kusturica filma e que Fellini já filmava
antes dele. Logo de início, numa das primeiras canções, Dr. Nele, afogado nos
braços da multidão, grita “umas vezes é em cima, outras é em baixo, umas vezes
é o paraíso, outras o inferno”. As palavras mal se ouvem numa montanha-russa
onde cabe um pouco de tudo. A vida, com os seus altos e baixos, as suas
personagens humanas que buscam o amor e a felicidade, por mais escondidos que estejam,
estão aqui presentes numa mini-fábula que ofusca na superfície.
“Isto é maior do que a vida”,
garante Dr. Nele. “Isto” são as duas horas de espetáculo da No Smoking
Orchestra que contagiam por completo, mais do que não seja pelo movimento e o
bulício, o público. “Tenho a certeza de que a minha mulher não ficaria
satisfeita ao ouvir-me dizer isto, mas a música é, realmente, mais importante
do que tudo o resto, mais importante até do que a família, tenho muita pena,
mas é assim”. A “Life is a Miracle Tour” terminou mas o merecido descanso será
sol de pouca dura. Já em Fevereiro iniciar-se-á nova digressão que levará a No
Smoking Orchestra a Israel, América do Sul, Letónia, Estónia e Lituânia, França
e Japão.
Para os membros da banda, são muitos
dias vividos juntos na estrada. Tão excitantes como os concertos? Nem por isso.
“São chatos!”. Lá está a vida real a espreitar e sem, como nos filmes, o
milagre da alegria para oferecer. “Mas adoro viajar, é aliás uma das coisas
melhores que há em ser-se músico”. Dr. Nele já ultrapassou os 40 anos mas
evidencia a vitalidade de um garoto. As tropelias de palco são inevitáveis. “Não
consigo agir de outra maneira, uma vez punk, punk para sempre!”. Apesar de
punk, não é um troglodita, não se escusando a fazer mais um número, o da
cortesia, em resposta às solicitações da comitiva VIP da embaixada da Sérvia e
Montenegro que no final veio cumprimentar a banda aos camarins...
no pequeno mundo de Emir
Alguns
metros a seu lado, em silêncio e pouco dado a conversações, Emir Kusturica
largara finalmente a guitarra que raramente desatara da cintura. Tem fama de fugir
aos jornalistas e um jeito especial de voltar as costas sempre que lhe apontam
uma câmara fotográfica. Mas agora que tudo está consumado, a timidez ou o
receio abrem uma brecha. Parece esgotado. A energia que pusera na sua atuação
elétrica é a mesma que ilumina os seus filmes? “Absolutamente!”, responde. E a
música, “desenhada exatamente da mesma maneira” que os filmes – “um ponto de
cruzamento de muitos estilos diferentes, disciplinado por um pulso e uma
dinâmica muito firmes, dinâmica e tempos que absorvem muitos dos estilos e a história
da região dos Balcãs. Belgrado não é como Londres, é uma cidade onde se cruzam vários
ventos”, explica.
Kusturica aproveita ao máximo o prazer
que lhe proporciona tocar ao vivo para uma multidão – o prazer da “troca” e da
“comunicação”. Uma comunicação “bem disposta”, como “alguém que viaja num comboio
sem travões – uma maravilha!”. Também para o cineasta a arte é bem maior do que
a vida, onde o “estilo tem que ser o de lutar por uma identidade própria”.
“Porque sentimos a pressão do grande
mundo e que estamos em risco de a perder. A pressão que se faz sentir no modo como
estão a destruir as pequenas nações e culturas locais”.
Em momento algum, mesmo quando o
circo das aparências deixa pouco mais para ser visto, Kusturica abandona uma
perspetiva política. Algo de absoluto de que não prescinde. Mas os jovens que
do outro lado pulam e vibram e riem quando “o juiz” toca violino com ar sisudo,
envergando um vestido de mulher, estarão suficientemente atentos ao essencial para
compreender a mensagem? É uma questão de tempo. “Se não estão, acabarão por
aprender”. Kusturica – que abandonou Sarajevo, onde nasceu, para se instalar em
Belgrado, atraindo desde modo ainda mais a antipatia do governo bósnio –
continuará a tocar com a No Smoking Orchestra, “de vez em quando”, principalmente
nas “cidades grandes”. “É uma honra para mim poder continuar a pertencer a este
mundo de defesa de uma identidade própria, um mundo protegido”. Mas é numa
cidade pequena e ideal que ele próprio construiu para albergar a produção de “A
Vida é um Milagre” que a vida decorre como um conto de fadas, imune às pressões
do “grande mundo”. Em Küstendorf, completa com uma igreja e uma escola, não
existe perseguição nem separação. É nesta cidade-paraíso construída de raiz que
Kusturica – bósnio de origem muçulmana que durante a guerra nunca escondeu a
sua simpatia pelo lado sérvio, a favor de uma Jugoslávia unificada – se defende
das agressões exteriores.
Para trás ficou a colaboração com
Goran Bregovic, que assinara as primeiras bandas sonoras. “Foi uma amizade que
ficou exausta”. Com a No Smoking Orchestra, para onde ele próprio compõe alguma
da música, é “fácil” trabalhar. “Assobiamos, tocamos frases, juntamos tudo,
fazemos as correções e vamos para estúdio. É um bom trabalho”. E sempre sem o
receio de exagerar. “Se queremos que a arte seja de facto maior que a vida, tem
que ser assim”. No fim de contas, diz, a sua arte, além de auto-defesa e campo
de preservação, pretende ser “terapêutica”. Para o público e para si. Bastam
algumas gotas de “unza unza” por dia para fazer um homem feliz.
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