13|JUNHO|2003 Y
ciclo|cinema
requiem pela dama de negro
Warhol viu nela o escândalo. Garrel a beleza
da tragédia. Nico passou pela vida e pela obra de ambos da mesma maneira que a
sua música marcou os Velvet Underground e deixou cicatrizes dentro de cada um
de nós. Não se adora a lua impunemente. Para adorar, na Cinemateca, este mês.
Nico, cantora e atriz – diz o mini-ciclo na
Cinemateca Portuguesa. Nico, mulher fatal. Philippe Garrel, cineasta. Ele
afirmou um dia que fazia filmes para não se suicidar. Ela tomava comprimidos
para dormir, comprimidos para acordar e comprimidos para viver. Costumava
desfalecer sem razão aparente. Estavam destinados a encontrar-se e a viver um
com o outro. Assim aconteceu até ao dia em que ela morreu, a 18 de Julho de 1988,
às oito horas da noite, no hospital de Nisto, em Cannes, aos 50 anos, vítima de
uma hemorragia cerebral provocada por uma queda de bicicleta, ao esbarrar
contra uma árvore quando dava um passeio por Ibiza.
Ele
nunca se conseguiu libertar do fantasma e continua a filmar como se ela
continuasse presente – a esfinge. A deusa da lua, como lhe chamavam. Nico e
Philippe Garrel. Como antes tinham sido Nico e Fellini, Nico e Brian Jones,
Nico e Alain Delon, Nico e Bob Dylan, Nico e Andy Warhol, Nico e Lou Reed e
John Cale, Nico e Jackson Browne. Nico e Warhol é igual a Chelsea Girls (vai ser exibido no dia 18, às 21h30). Nico e Garrel é igual a La Cicatrice Intérieure (dia
25, às 21h30) e a Les Hautes Solitudes
(dia 26, às 21h30).
Nico
e a morte. Morte que cada um podia ver a brilhar nos seus olhos azuis de
cristal, na sua voz de mármore, na sua música de orgasmos gelados. Nico foi a
lápide erigida ao rock dos anos 60 que sobreviveu pela década seguinte como uma
máscara de cera mantida viva artificialmente por alguns dos homens que a
veneraram como se venera a noite. John Cale, produtor de álbuns como “The End”
e “Drama of Exile”, que fez dela a diva petrificada da new wave, do gótico e da
eletrónica zombie. E Garrel, claro, que com ela viveu, com ela enlouqueceu e
com ela filmou “La Cicatrice Intérieure” (1972), “Athanor” (1972), “Les Hautes
Solitudes” (1974), “Un Ange Passe” (1975), “Le Berceau de Cristal” (1976), “Voyage
au Jardin des Morts” (1978), “Le Bleu des Origines” (1979) e, já como presença
fantasmática, post-mortem, “J’Entends plus la Guitarre” (1991) ou “Sauvage
Innocence” (2001).
serei o teu espelho. E, no entanto,
Nico era outra. Quem, não se sabe. Não se soube nunca. Apenas que era loura mas
que ficou imortalizada como morena, cor mais adequada às feiticeiras. Ou
“another cooler Dietrich for another cooler generation”, como alguém a
caracterizou, adivinhando-lhe o carisma de mulher fatal, sem saber até que
ponto este “fatal” seria levado à letra. Apenas que não se chamava Nico mas
Christa Päffgen (foi um fotógrafo que, aos 15 anos, em Ibiza, lhe pôs este
nome, em homenagem a uma namorada morta, Nico Papatakis, a morte, sempre a
morte). Apenas que não era cantora mas que a sua voz, vinda sabe-se lá de que
abismos do ser, não teve paralelo em nenhuma outra intérprete da música
popular. Apenas que não era música mas que a música que nos deixou, composta
embora por outros, nos arrepia. Como um romance de Lovecraft em que uma
personagem louca desenterra o “Necronomicon” para insuflar vida aos mortos.
Nico
foi, acima de tudo, uma personagem. Um molde. Um silêncio adequado à construção
do mito. Com “Bitter dreams are made of this” afixado em cartaz.
Garrel
fez dela uma presença (ou uma ausência) de luz negra, personificação daquela
eternidade que os poetas românticos Holderlin e Novalis encaravam como a
dissolução final nas trevas, na grande noite universal, mãe dos sonhos e das
quimeras. Em “Le Bercaeu de Cristal” a única voz que se ouve é a dela,
declamando um poema, sobre a música do guitarrista Manuel Gottsching, dos Ash Ra
Tempel (a BSO está disponível em CD numa belíssima edição da Spalax),
designação então já encurtada para Ashra, de cuja formação fazia parte, precisamente,
Lutz Ulbricht, amigo e empresário da cantora e antigo elemento do grupo de
“krautrock”, Agitation Free.
Podemos
encadear algumas peças soltas. O que Gottsching/Ashra compõe é um mantra de
sonoridades cósmicas que, progressivamente, coloca o espectador em transe, num
cume mental a que o final do filme põe termo de forma abrupta, como uma ressaca
instantânea.
São
as “altas solidões” de que Nietzsche fala na sua obra poético-filosófica e são
deste filme as imagens que ilustram a capa de “The End...”, álbum de 1974, com
produção de John Cale, de cujo alinhamento faz parte uma versão, ainda mais agonizante
que o original, de “The end”, de Jim Morrison que, por sua vez, travou
conhecimento com a germânica em moldes que a câmara de Oliver Stone filmou – em
“The Doors- O Mito de uma Geração”, biografia ficcionada dos The Doors – de forma
pouco católica, elipse que subentende uma sessão de sexo oral entre os dois,
num elevador. Dificilmente representável como ícone sexual ou erótico,
independentemente das sugestões de necrofilia que a sua figura pode induzir (há
quem jure ter visto o seu rosto transformar-se numa caveira, durante um
concerto realizado numa catedral em França nos anos 70) restava, ainda neste
caso, a representação pela ausência ou pela redução à sexualidade despojada de
qualquer sentimento. Nico, ainda e sempre, a pedra tumular sob a qual se
escondem segredos insondáveis.
a vida amarga. Christina Päffgen, ou
Päfgens, ou Pfäffen, nasceu em Budapeste, em 1938, filha de mãe espanhola e pai
jugoslavo (morto num campo de concentração nazi). Começou por ser costureira e,
aos 13 anos, vendeu “lingerie”. Um ano mais tarde já trabalhava como modelo em
Berlim. Participou pela primeira vez como atriz numa cena, filmada em Capri, de
“For the First Time”, de Rudolph Maté, com Mario Lanza. Conheceu Ibiza e por lá
ficou. A lua buscando a proteção do sol.
De
férias, em 1959, num “palazzo” em Roma, um amigo convidou-a para figuração em
“La Dolce Vita”, de Fellini. Passeou-se no “plateau” com um candelabro nas
mãos, numa festa. O realizador reparou nela (quem não repararia?) e convidou-a
para participar no filme. Nascia o mito.
Depois
de assistir a aulas de representação no Actor’s Studio, de Nova Iorque, na
mesma classe de Marilyn, conseguiu um dos principais papéis em “Strip-Tease”,
de Jacques Poitrenaud. Gravou com Serge Gainsbourg o título-tema mas o single
não foi editado, surgindo em seu lugar uma outra versão, por Juliette Gréco.
Em
1964 conheceu Brian Jones, dos Stones, que a apresentou a Andrew Loog Oldham,
então produtor do grupo. Gravou para o selo Immediate o single “I’m not
sayin’”, composição de Gordon Lightfoot, com o guitarrista Jimmy Page, que se
viria a notabilizar nos Led Zeppelin, e produção de Oldham.
Uma
relação amorosa com o ator Alain Delon, da qual nasceu um filho, Ari (há uma
canção dedicada a ele, em “The Marble Index”) antecipou outro encontro, desta
feita com Bob Dylan, que lhe ofereceu “I’ll keep it with mine” (mais tarde
incluída no álbum de estreia da cantora, “Chelsea Girl”) e lhe dedicou “Visions
of Johanna”, do álbum “Blonde on Blonde”. É Dylan quem, por intermédio do poeta
Gérard Malanga, a conduziu à boca do lobo e da glória, Andy Warhol, que a
convocou para participar nos seus filmes experimentais, como “The Chelsea Girls”
(1966, mítico jogo de bobines intermutáveis das quais a cantora alemã protagoniza
as marcadas com número de série 1, “Nico in kitchen”, e 12, “Nico crying”),
“Screen Tests” (1964-66), “The Velvet Underground & Nico (A Symphony of
Sound” (1966), “I, a Man” (1967, este com assinatura, na realização, de Paul
Morrisey) ou “Imitation of Christ”.
A
sua vontade de fazer carreira como cantora, leva Warhol a integrá-la no espetáculo
multimédia Exploding Plastic Inevitable e, consequentemente, nas gravações do
mítico “álbum da banana” dos Velvet Underground, onde vocaliza três memoráveis
composições de Lou Reed, “Femme fatale”, “All tomorrow’s parties” e “I’ll be
your mirror”. Ao vivo, canta em clubes como o Blue Angel, acompanhada, além de Reed,
Cale e Sterling Morrison, por futuros ilustres como Tim Hardin, Tim Buckley e
Jackson Browne, com quem manterá uma curta relação e que lhe oferece as canções
“These days” e “The fairest of the seasons”, ambas incluídas no disco solo de
estreia.
Mas
os Velvet, no meio de disputas entre Cale e Reed provocadas pelo ciúme, não
suportam a pressão de se verem ofuscados pelo brilho da estátua e despedem-na.
É Cale, porém, quem relança a sua carreira a solo, ao produzir “The End...”
(1974), já depois da cantora ter lançado em 1969 o que poderá ser considerado a
sua obra-prima, “The Marble Index”, seguido do surreal “Desertshore” (1970), em
cuja fotografia da capa se pode ver Nico numa cena do filme de Garrel, “La
Cicatrice Intérieure”, que se estrearia dois anos mais tarde.
o abandono. Após um interregno de sete
anos, durante os quais assombra os palcos na companhia do seu “harmonium” (a
sua imagem, de pé, hirta, atrás deste instrumento, é um dos primeiros
paradigmas gráficos do “gótico”), do álcool e da heroína, compondo dedicatórias
aos amigos mortos, reaparece com “Drama of Exile” (1981), já aureolada com o estatuto
de “punk goddess”, concluindo-se a sua discografia a solo com “Camera Obscura”
(1985), tentativa de reciclagem, novamente a cargo de John Cale, destinada a
apresentá-la num novo formato eletrónico. Além destes álbuns, circulam no
mercado quantidades consideráveis de “bootlegs”, coletâneas e arquivos ao vivo.
Faltava esperar pelo fim.
“Ibiza
é o meu local favorito, é lá que hei-de morrer”, afirmou numa entrevista. O
destino e uma árvore, contra a qual esbarrou durante o tal passeio fatídico de
bicicleta, fizeram-lhe a vontade. Ela que também dissera: “Tenho o hábito de
abandonar os sítios nas alturas erradas, precisamente quando algo de bom está
prestes a acontecer-me”.
O
seu corpo repousa ao lado do de sua mãe, num cemitério na floresta de
Grunewald, numa das margens do rio Wannsee, em Berlim. Pode lá ir-se, num velho
autocarro que parte de hora a hora da estação de metro de Wannsee. De Inverno o
cemitério fecha cedo. Conta-se que, durante o enterro, um grupo de amigos
tocava “Desertshore” num gravador de cassetes. Quase juraríamos que a faixa
final, “Le petit chevalier”. Onde Nico é conduzida pela voz de uma criança.
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