Y
01|DEZEMBRO|2000
dançachamas|música
gaiteiros de lisboa
chama viva
“Dançachamas”, é um álbum duplo ao vivo e, mesmo sem
canções originais, faz jus à criatividade do grupo. Na capa um pormenor do
“Jardim das Delícias” de Bosch. É tão bom que apetece usar o slogan de
Alexandre O’Neill: “Bosch é brom”.
E
PERGUNTAM VOCÊS em coro: “Porquê um disco ao vivo”? Boa pergunta. Porquê?
Carlos Guerreiro, um dos cinco Gaiteiros que responderam ao convite do “Y” para
falar do seu novo álbum “Dançachamas”, gravado ao vivo nos dias 19 e 20 de
Outubro no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, foi o
primeiro a responder. “De facto, apenas com dois discos de originais pode
parecer pretensioso fazer já um disco ao vivo. Digamos que resultou de uma
negociação com a editora no sentido de nos vermos livres uns dos outros”.
Só por isso? Calma! O compositor,
sanfonineiro e inventor dos “Túbaros de Orfeu” ainda não acabou: “Mas achámos
também que as pessoas que só conhecem os discos de estúdio poderiam encontrar
algo que desconhecem, e este álbum documenta a verdade do grupo neste momento”.
“Resumindo”, acrescenta José
Salgueiro, mestre-percussionista do grupo, “os Gaiteiros ao vivo são mais
emotivos”.
Das duas sessões, terá sido a segunda
a mais produtiva já que dos 20 temas que compõem “Dançachamas” apenas dois
foram gravados na véspera. Salgueiro realinhou posteriormente as canções de
forma diferente da que foram interpretadas no CCB, segundo a lógica do dj, “sem
necessidade de muitos ‘overdubs’ e com a preocupação de encadear os temas uns
nos outros. “O ambiente que uma deixa inspira a que vem a seguir”.
Em “Dançachamas”, por motivos
ligados à produção, o som da gaita-de-foles está mais em evidência do que
nunca. Neste ponto da conversa Paulo Marinho, gaiteiro-mor do grupo, lançou-se
numa longa dissertação sobre celtismo ou não celtismo dos Gaiteiros (eles
inclinam-se mais para a segunda escolha), concluindo Carlos Guerreiro que o
grupo tem mais pontos em comum com a música árabe e africana do que com as
sonoridades bárdicas do Norte. “Somos uma banda mediterrânica”, afirma com um
enorme ponto de exclamação, “ e mais, assumimo-nos como os criadores de uma
música neo-bárbara!”. Sentimo-nos obrigados a concordar deixando para já de parte
a sugestão para os Gaiteiros gravarem um dia um “reel”. Apesar de tudo
participaram há pouco tempo no mais recente álbum do grupo galego Chouteira,
“Folla de Lata”, mas a verdade é que da colaboração resultou uma notória
gaiteirização da música, o que só abona a favor da personalidade dos
portugueses. “A nossa preocupação é fazer coisas que nos deem gozo, se amanhã
pegarmos numa guitarra e acharmos que um acorde até é giro, não temos problema
em ir para a frente”, acrescenta o multi-instrumentista José Manuel David, numa
alusão a um possível rompimento com a exclusividade, mantida nos três primeiros
álbuns, das palhetas e percussões no som dos Gaiteiros. “Desde que esteja
dentro do espírito do grupo”.
Chave tripla. Como não podia deixar
de ser num álbum com estas características, os Gaiteiros chamaram para as
sessões de gravação um naipe de convidados. Sem surpresa, colaboram em
“Dançachamas” as Vozes da Rádio, Danças Ocultas, Tocá Rufar e José Mário
Branco, este último, com alguma estranheza, bastante apagado no seu papel de
elemento do coro. “Foi uma coisa íntima. Sentimos que era mais importante saber
que o José Mário estava connosco do que propriamente fazê-lo sobressair. Esteve
nos nossos corações”.
Em relação ao próximo trabalho de
estúdio, “já há ideias” e ninguém sente a mínima ponta de pressão. Até porque,
como Carlos Guerreiro garante na brincadeira, “já existe material de sobra para
lançar nos próximos tempos um triplo-álbum semanal”. Nos intervalos desta
“verve” criativa, Guerreiro continua a investir na sua faceta de construtor de
novos instrumentos, como os Túbaros de Orfeu, o orgaz ou o
cabeçadecompressorofone. “Estou permanentemente a pesquisar coisas, ainda não
houve foi uma que resultasse” (risos). Já pronta para entrar na fase de ensaios
está um novo modelo de harpa da sua autoria – “uma harpa fálica!”.
Se existe algo que jamais
desaparecerá da música e da atitude dos Gaiteiros de Lisboa é o sentido de
humor. “Dançachamas” esteve para se chamar “Uma Chama Viva onde quer que Viva”.
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