JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
30 OUTUBRO 2004
Numa semana de bons pianos, François Bourassa, agora em estúdio, confirma
o seu estatuto de um dos melhores compositores e executantes do jazz actual.
Michael Marcus vence nos saxofones.
Em
busca do tempo indefinido
Depois da
obra-prima “Live”, um dos melhores álbuns editados em 2001, o pianista canadiano
François Bourassa regressa com um novo disco, agora com o saxofonista André
Leroux já plenamente integrado como membro oficial do quarteto. Dificilmente poderia
ser igualada a torrente de energia que brota do disco ao vivo e “Indefinite
Time” avança numa direção diferente. O que permanece é a incrível capacidade
destes quatro músicos para gerarem momentos de tensão/distensão em que a música
evolui numa metamorfose contínua de tempos e dinâmicas que tanto balançam no
hard-bop com swing a todo o vapor, como se extasiam em contemplações próximas
do silêncio ou rebentam em convulsões “free”. O saxofonista Dave Liebman disse um
dia que a evolução de um músico de jazz se processa em três etapas: Imitação,
afirmação e inovação. Se nos primórdios da sua carreira o canadiano prestou o seu
tributo a mestres como Bill Evans, McCoy Tyner e Wayne Shorter, 20 anos de
carreira levaram-no finalmente à plena inovação no seio da formação em quarteto
piano/sopros/contrabaixo/bateria. Bourassa consegue ter a delicadeza de um Bill
Evans e a furiosa emancipação de um Cecil Taylor. Do cluster que ecoa como um trovão,
à percussão cristalina, do “hard” pulsante à manipulação direta das cordas do
piano, Bourassa é um pianista completo. Leroux é o parceiro à altura. Já comparado
a Chris Potter, o seu fraseado por vezes lancinante (o seu soprano traz à
lembrança Steve Lacy) e uma segurança de aço tornam cada uma das suas intervenções
abrasiva, embora seja igualmente capaz de provar o poder expressivo nos
registos mais calmos. A descoberta melódica, essa, é uma constante. “Indefinite
time”, entre um tema de Ornette Coleman (“Check out time – loose take)”, uma
homenagem a Boubacar Traoré (“Boubacar”) e outra a Wayne Shorter (“Ws”) e as
intervenções tribais do convidado Aboulaye Kone, no djembé e tama, faz a
quadratura perfeita, com percussão que vai da avalanche ao tricô e um contrabaixista
cuja agilidade alguns já compararam ao virtuosismo de Scott LaFaro. Mais
cerebral e trabalhado ao nível dos contrastes e da pesquisa harmónica do que
“Live”, “Indefinite Time” é um daqueles discos que a cada momento permite novas
revelações e invenções, abrangendo todo o espaço entre as estrelas e um vulcão.
Outro pianista que gosta de se
apresentar em quarteto é Cecil Taylor, o “inimigo” do piano. Em “Incarnation”, gravado
em 1999 no “Total Music Meeting” de Berlim, tinha a seu lado Franky Douglas (guitarra,
voz), Tristan Honsinger (violoncelo) e o convidado Andrew Cyrille
(percussionista oficial de Taylor durante onze anos, bateria, timbalão). Se,
como alguém já disse a propósito de Taylor, “cada nota percutida é uma nota
vencida” não é menos verdade que, nos últimos tempos, o combate aplacou-se um pouco
e Taylor descobriu a ternura. Em três longos rituais de construção nas alturas
e sem rede – “Focus”, “Carnation”, “Cartouche” –, os quatro músicos vão colocando
uma sucessão de andaimes em redor de uma imensa peça de teatro em que cada som
busca incessantemente o seu lugar certo. A guitarra elétrica lança efeitos eletrónicos
bizarros, o violoncelo faz a fuga para a frente recusando o “cliché”
camarístico, mas não o “riff”, fazendo de cantor, “bulldozer” e serrote, enquanto
Cyrille segura as pontas soltas ao mesmo tempo que consegue fazer ouvir a sua
voz solística. Pode ser difícil penetrar neste bloco operatório onde o próprio silêncio
está carregado de ameaças (“Carnation”, as pausas entre cada golpe no timbalão,
em “Cartouche”, o mais interessante tema do álbum), uma vez lá dentro, porém,
torna-se impossível recuar. No final, “Cartouche”, a experiência torna-se
religiosa, com o piano extático a levar o espírito a encarnar finalmente na
matéria.
A religião de Abdullah Ibrhaim,
Dollar Brand, é, em “The Journey” – gravação em estúdio de 1977 agora restaurada
digitalmente e com a mesma capa do original na editora Chiaroscuro, entretanto
desaparecida –, a alegria (“Jabulani”, título de um dos três temas). Apoiado numa
formação larga de saxofones, oboé, clarinete e o trompete de Don Cherry, esta é
uma viagem, como muitas outras do pianista (e aqui também saxofonista soprano),
com raízes na música da África do Sul mas as cores são tão fortes e
diversificadas como as do arco-íris da contracapa. Há momentos a raiar o
brilhantismo como as intervenções no barítono, de Hamiet Bluett, de Cherry, com
a sua estranha mistura de “free” com étnico e o percussivo solo de contrabaixo
de Johnny Akhir Dyani. “Hajj” tem um “riff” de piano absolutamente irresistível
e uma majestosa secção de sopros muito “jazz inglês”, de senhores como Gibbs e Westbrook.
Juntamente com “Voice of Africa”, “Water from an Ancient Well” e “African
River”, é um dos melhores álbuns de Ibrahim que já ouvimos.
Outro salto sobre o abismo para cair
na Ayler Records e escutar um grande momento de música improvisada oferecido
por Michael Marcus (sax alto e clarinete baixo), William Parker (contrabaixo) e
Dennis Charles (bateria). Gravado em 1993, metade ao vivo na Knitting Factory, metade
em estúdio, “Ithem”, o título-tema, e “Here at!”, com um “drone” em brasa de
Parker e Marcus em elevação Coltraniana, farão as delícias dos apreciadores do “power
trio”. Além de Coltrane, também os nomes de Dolphy e Ornette vêm à baila neste
exercício com a solidez de um rochedo.
A semana dá finalmente a conhecer um
jazz mais calmo e (mais ou menos) próximo do “mainstream”. Mais calmo e
baladeiro do que no seu anterior trabalho, o octogenário tenorista de Chicago
Von Freeman pauta a música do seu quarteto, em “The Great Divide”, com Jimmy
Cobb (bateria), Richard Wyands (piano) e John Webber (contrabaixo) pelo “blues
(e o “hard” apontado ao R&B), traçando a linha divisória entre Coleman Hawkins,
Lester Young (há mesmo um “Blue Pres”) e Charlie Parker (“Never fear, jazz is
here”).
No selo Camjazz, o cinema parece por
fim deixar de ser objeto único de predileção. Apagado o ecrã de Fellini, em
“Fellini Jazz”, ficou a presença de um dos bons pianistas italianos (e
europeus) de hoje, Enrico Pieranunzi, que em “Doorways” se faz acompanhar por
Paul Motian (bateria) e o convidado especial Chris Potter (saxofones).
Pieranunzi é um pianista-camaleão, capaz de mudar de registo facilmente de
disco para disco. “Doorways” mostra acentos de Bill Evans (claramente detetáveis
em “Double Excursion”) com mais carne em cima e um virtuosismo que transcende o
conservatório. De Chris Potter, saxofonista muito em cena na cena atual,
presente apenas em alguns temas, mas de maneira cortante, apetece dizer que as
suas intervenções pecam por escassas, valendo como exemplo de criatividade o
que faz em “Anecdote”. Passatempo interessante: compare-se este tema com a
música de François Bourassa/André Leroux. Universos irmãos? Para os que
quiserem explorar ainda mais fundo a personalidade deste italiano, recomenda-se
ainda o mais focado, em trio clássico piano/contrabaixo/bateria, “Infant Eyes”,
onde Pieranunzi “plays the music of Wayne Shorter”.
Fora dos parâmetros do jazz “made in
USA” está também “Where do we go from here?”, por um duo formado pelo
trompetista canadiano Kenny Wheeler e o pianista inglês John Taylor,
colaboradores de longa data, no excelente “Pause, and think again” ou na
discografia dos Azimuth. Possuidor de uma técnica muito própria, aqui com o som
bastante bem temperado pelas técnicas de estúdio, Wheeler revela-se um
romântico, tanto no trompete como no fliscórnio, o mesmo se podendo dizer de
John Taylor, pianista da escola de Paul Bley. Um e outro dialogam em perfeita
sintonia lírica, não tocando uma nota a mais ou a menos do que o necessário para
nos tocar profundamente. A melancolia pode rimar com a certeza.
François Bourassa
Quartet
Indefinite Time
Effendi
9 | 10
Cecil Taylor Quartet
Incarnation
FMP
7 | 10
Abdullah Ibrahim
The Journey
Downtown Sound
8 | 10
Michael Marcus
Trio
Ithem
Ayler
8 | 10
Von Freeman
The Great
Divide
Premonition
7 | 10
Enrico Pieranunzi
& Paul Motian
Doorways
Camjazz
8 | 10
Kenny Wheeler
& John Taylor
Where do we go
from here?
Camjazz
7 | 10
Todos distri. Multidisc
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