CULTURA
DOMINGO, 14 NOV 2004
Crítica
Música
Boa noite de jazz inglês com
Kenny Wheeler
Kenny Wheeler com “big band”
LISBOA Culturgest
Dia 12
Sala a dois terços
Kenny Wheeler é
canadiano, mas o jazz inglês é o seu “habitat” natural. Sexta-feira, na Culturgest,
numa das extensões a Sul do Guimarães Jazz (onde tinha tocado na véspera), o
trompetista dirigiu a “big band” que em anteriores ocasiões teve a chefiá-la
Michael Gibbs, Maria Schneider, Bob Mintzer e Gianluigi Trovesi.
Wheeler deu-lhe a típica coloração do jazz inglês que no
passado assumiu foros de pioneirismo. É um jazz caracterizado pela disciplina,
mas não dirigido com mão de ferro, e por notas de melancolia que, no caso de
Wheeler, ganharam pinceladas peculiares.
No início, a música de Wheeler teve o formato de septeto,
com a pianista Nathalie Loriers a criar o ambiente e o trompetista a passeá-lo
com os seus timbres de veludo. Atrás deles a bateria entretinha-se em jogos de
miniatura com a percussão, e Bernardo Moreira soltava com segurança e boa
articulação as notas graves do contrabaixo. Nguyen Lê, o guitarrista, esteve
também em ação neste início do concerto, desta vez muito mais discreto do que
no ano passado com Trovesi.
Foram-se as explosões eletrónicas de Jimi Hendrix para ficar
um discurso mais contido, reminiscente do suave torpor de John Scofield. Julian
Argüelles mostrou no sax tenor o significado do termo “secura”. Tudo pausado e
um pouco triste. Depois juntou-se-lhes a convidada Norma Winstone. Não é a
melhor cantora do mundo, mas vale a pena escutá-la num álbum como “Edge of
Time” (e não “I’m the One” como anteriormente escrevemos, mil perdões, esse é
de Annette Peacock...) e a voz começou por mostrar-se ainda mais fria do que o
habitual. Norma cultiva a articulação e uma certa luminosidade velada em
detrimento da expressividade emocional.
A espiritualidade e a força do blues são conceitos que lhe
são alheios e tudo se passa ao nível de tessituras milimetricamente urdidas no
cérebro. A emoção vem com as palavras, e nas impercetíveis modulações, bem como
dos tons escolhidos pelo compositor. Foi bonito ouvi-la cantar “Everybody’s
song but my own”, mas tanta tristeza tinha que acabar. Mesmo que para isso
fosse necessário esquecer as indicações dadas por Wheeler. O homem pode ter pulmão
para soprar com brilho no trompete, mas a falar pareceu estar prestes a ir
desta para melhor.
Finalmente os restantes elementos da orquestra apareceram e
a música aqueceu. As cores espalharam-se pela sala e sucederam-se curtos solos
de quase todos. Mais tenores, alto, flauta e trombones vieram à boca de cena
fazer as suas intervenções, mas foram todas solos de pouca dura.
A peça de resistência foi uma longa “suite” na qual Wheeler
mostrou a gama completa das suas virtudes e influências como compositor. Norma,
a voz já mais lubrificada e a soltar-se com agilidade no “scat”, cantou “a
capella” em modo quase oriental e a fazer lembrar a sua participação nos
Azimuth, houve uma secção “free” que não deixou de evocar o trabalho do
trompetista com a Globe Unity Orchestra e, num dos melhores momentos da noite,
os cinco saxofonistas entregaram-se a uma construção contrapontística
matemática digna de Anthony Braxton, outro dos companheiros de estrada de
Wheeler.
A preencher esses picos o som do coletivo esteve pujante, em
crescendo, e dominado pelo tal balanço inglês que tem pouco a ver com o “swing”
das grandes formações de músicos negros. Kenny Wheeler desenhou o concerto como
um sólido edifício, dos alicerces até à cúpula, num todo coeso mas que só na
parte final chegou a ser entusiasmante. Todavia, o público não pediu “encore”.
EM RESUMO
O bom jazz inglês em formato grande teve em Kenny Wheeler um
bom maestro e compositor.
A voz de Norma Winstone, mais do que um sentimento, foi uma
ideia
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