Y 3|DEZEMBRO|2004
música|samuel jerónimo
Os sons, minimais, entranham-se. “Redra ndra Endre de Fase”, de Samuel
Jerónimo, é Steve Reich em português. Ele prefere comparar-se a Keith Emerson e
venera Gentle Giant.
jerónimo, da tribo dos progressivos
O
computador foi a ferramenta utilizada para emular um piano e marimbas. Mais
umas fatias finas de eletrónica. O resultado é “Redra Andra Endre de Fase”,
três peças minimalistas, uma delas com 33 minutos, onde a imaginação e o vigor estão
sempre presentes. O seu autor, Samuel Jerónimo, estudou composição e tocou numa
banda rock, os Mystery of Grace. Cresceu a ouvir Debussy, travou conhecimento
com a escola minimalista, de Reich e Terry Riley, mas o grande amor é o rock
progressivo. “Redra...” terá mais a ver, diz o autor, com a influência dos
Tangerine Dream e Emerson, Lake & Palmer do que com quaisquer escolas e
erudição. Mas é nos Gentle Giant que vê a perfeição.
Traçar a génese de um trabalho deste
quilate, torna-se fundamental. É um álbum de estreia que queima de enfiada uma
série de etapas. Tudo começou com guitarras para acabar em programação. “Há
quatro anos andava deliciado com o álbum ‘Discipline’, dos King Crimson, com
aquela interligação das guitarras. Comecei a fazer exercícios nessa onda e pedi
ao meu professor um programa informático com o qual pudesse continuar a fazer
esses exercícios, de forma mais elaborada. A partir daí fui desenvolvendo
ideias com base no ‘multilayer’. O piano acabou por surgir como o melhor
veículo para as composições”.
O que espanta é ter criado uma
unidade a partir de influências tão díspares como a música clássica, o
minimalismo e o rock progressivo. Samuel diz que não foi difícil. Agiu como o
empresário esclarecido. “Defini um caminho, como uma empresa escolhe uma missão
entre várias hipóteses de bons negócios”. Em termos de forma, “Redra…” está
próximo da escola minimalista mas o autor baralha as pistas. “Tem mais a ver
com Emerson, Lake and Palmer. Há um ritmo ‘ostinato’ semelhante a um ritmo do
‘Tarkus’”. Mais inserido na estética do minimalismo está o tema “Endre de fase”,
baseado no conceito de Reich, de “change as a gradual process”.
“Fiz um estudo sobre esta teoria,
mas não procurei a cópia. Em vez do processo de ‘phasing’, com duas linhas
melódicas tocadas em velocidades ligeiramente desfasadas, aumentei o número de
vozes, seis, todas à mesma velocidade, só que nalguns compassos introduzi uma
pausa de meio tempo. E mais para a frente fui retirando notas para obter uma
sensação menos maquinal. Mais ‘chance’, como diria o John Cage”.
Há marimbas, piano e eletrónica.
Tudo no computador. “Uso-o para a composição mas nunca seria capaz de dar um
recital. O Ligeti também compôs uns estudos para piano e não tocava este
instrumento”. Um processo de clonagem que Samuel explica por motivos, afinal, prosaicos.
“Gravei assim porque me saiu mais barato. Não podia pagar ensaios a dois
pianistas e três percussionistas. Sairia caríssimo um disco que não sei se tem
mercado. Das duas uma, ou vai abrir portas ou nunca terá existido…”.
“Redra…” parece obra muito pensada,
mas há nela uma frescura que sugere boa dose de espontaneidade. “Foi como fazer
desenhos animados. Para fazer dez segundos, demorava horas. Tinha uma ideia
estrutural mas, chegado a meio, não sabia como iria ser daí para a frente.
Acabei por demorar dois anos a fazê-lo. Sempre tentando aplicar o conceito de
‘mudança’. As peças que o compõem são como a trilogia do ‘Star Wars’”.
“Redra”, “Andra”, termos estranhos.
“’Redra’ significa cavar a vinha, é um termo do Norte”. Foneticamente lembra
“Phaedra”, dos Tangerine Dream. Faz sentido. “O ‘Phaedra’ foi grande influência
na segunda peça, o começo. ‘Andra’ é um termo nórdico que significa ‘mudança’.
‘Redra’ é arrancar as ervas daninhas para vitalizar o processo. Também me
inspirei nos textos do ‘I-Ching’ sobre a mudança. A mudança introduz a atividade.
‘De fase’ leva-nos para o ‘phasing’ do Steve Reich.
descoberta ou nostalgia? Antes de “Redra...”
e da computação o músico de Valado dos Frades já tinha composto uma peça de
meia-hora para grupo rock. Foi feita para os Mystery of Grace, em 1998, “uma
coisa a puxar para o rock progressivo, com baixo, teclados e bateria”. “Redra”,
o tema, dura 33 minutos. Nada mau para um estreante. “Podia ser pior!”, ri-se,
“tinha 43, mas reduzi, para ficar mais coeso. O Mike Oldfield fez o ‘Amarok’
com uma hora e quatro segundos” (risos).
Oldfield, Tangerine Dream, King
Crimson, Emerson, Lake and Palmer. Tantas referências ao progressivo fazem
pensar. “Redra…” está a ser bem recebido pelos dois lados da barricada. “E as
pessoas do rock progressivo estão a reagir bem. Numa entrevista, o Paul
McCartney, sobre o ‘Mull of Kintyre’, dizia que as pessoas ou iriam achar
antiquado ou então o pessoal dos Beatles iria agarrar aquilo. Foi um sucesso.
No meu caso, acho que o álbum está mais voltado para o Progressivo. Fui muito
influenciado pelo Keith Emerson, muito mais do que pelo Rick Wakeman, que sempre
achei bombástico”.
Mas como chegou um jovem de 25 anos
ao rock progressivo dos anos 70? Samuel admite que é acusado de “revivalista”.
“Como é que um puto chegou ao rock progressivo, não é?” (risos) ‘Foste à
discografia do teu pai?’ (risos). Nada disso. O que gostei sempre no rock
progressivo foi de haver tempo para desenvolver as coisas. Também tem a ver com
uma forma de estar na vida. Depois comecei a comprar discos, procurando edições
em vinilo. Da música atual gosto de Massive Attack. Não sou nostálgico. Quando
compro um disco dos aos 60, 70 ou 80, para mim é descoberta. Tudo me soa a fresco.
Um disco dos anos 90, dos Oasis ou do ‘grunge’, que ouvi quando andava no Ciclo
e no Preparatório, isso sim, soa-me datado”.
Os gostos dirigem-se aos Pink Floyd,
King Crimson, Van Der Graaf Generator e Gentle Giant. “’Octopus’ é uma
obra-prima, os Gentle Giant tratavam cada peça como uma sinfonia, a maneira
como jogam com os instrumentos é inigualável, em cinco minutos metiam tudo”. Diga-se,
de passagem, que Samuel já compôs uma versão de “Raconteur troubadour”, tema de
“Octopus”, precisamente.
Dos minimalistas, cita Reich, “Music
for 18 Musicians”, “Different Trains”. De Terry Riley elege “In C”, “peça onde
se aprende muito, nunca é tocada da mesma maneira, podemos acrescentar o nosso
próprio ‘input’”. Já na música clássica, um nome salta de imediato: Claude
Debussy. “Derreto-me no sofá a ouvi-lo”.
“Redra, Andra, Endre de Fase” vai
ser apresentado ao vivo. Contará em palco com músicos. “Não faz sentido estar à
frente de um computador e saírem de lá sons orgânicos. Se ‘Redra…’ é um ‘statement
of art’ então vamos levá-lo às últimas consequências”.
É cedo para se avaliar o impacte de
“Redra, Andra, Endre de Fase” na música portuguesa não comercial. Para já os
mil exemplares editados pela Thisco vendem a bom ritmo. Para um álbum com três
longas peças de uma música não imediatamente apreensível, é obra. Samuel
continua otimista: “Sim, as peças são longas, mas então o Wagner não compôs ‘O
Anel dos Nibelungos’”?
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