14/08/2020

Sal em jazz de água doce [Jazz]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 27 NOVEMBRO 2004

Os Spring Heel Jack voltam a surpreender, com um álbum mais introspectivo que os seus estrondosos antecessores. Na Suécia reza-se. Os Bad Plus divertem-se. Em Portugal a improvisação dá as mãos a Zeca Afonso.

Sal em jazz de água doce

Há discos que estão nas margens do jazz. Discos que empurram o jazz para fora das margens. A música dos Spring Heel Jack, desde que a dupla John Coxon e Ashley Wales decidiu desviar-se dos caminhos do drum ‘n’ bass e enveredar por uma abordagem jazzística radical, tem suscitado uma série de perplexidades, a menor das quais não será a dificuldade em traçar a sua genealogia e fazer a sua catalogação. Depois de “Amassed” e do álbum ao vivo, “The Sweetness of the Water” prossegue a saga de conciliar a eletrónica e o “sampling” com alguns dos melhores improvisadores da cena jazzística atual. Do “Live” para o novo álbum apenas ficou Evan Parker, juntando-se-lhe o trompetista, membro do AACM e da Creative Construction Company, com Anthony Braxton e Leroy Jenkins, Wadada Leo Smith, e uma secção rítmica formada por John Edwards (contrabaixo) e Mark Sanders (bateria) cuja colaboração já havia dado frutos em “Nisus Duets”.
            “The Sweetness of the Water” começa com aquecimento improvisacional, em dois quadros abstratos, “Track four” e “Quintet”. No primeiro desenrolam-se ângulos cortantes de guitarra elétrica por Coxon, taquicardias rítmicas e o desempenho atmosférico de Leo Smith no trompete, num tema onde a “gaiola de elevador” faz figura de instrumento musical. Parker deambula por ali, em “Quintet”, mostrando-se tão à vontade no contexto do circo eletrónico como no seu próprio Electro-acoustic Ensemble.
            Mas o primeiro grande momento acontece em “Lata”. Sobre um fundo eletrónico que sugere o balanço romântico-psicótico de “Chree”, dos Suicide, Evan Parker procede à dilaceração do tempo, com cada frase, por mais livre que seja, a encaixar-se de modo mágico na pulsação maquinal. “Duo” é um subtil trabalho de fi ligrana de Sanders, na bateria, com Coxon adicionando-lhe efeitos e “noise” a la Sonny Sharrock.
            “Track one” é outros dos temas belíssimos de “The Sweetness of Water”, ilustrando o lado mais meditativo do grupo, com simulacros de gongo, Wadada a pairar no topo do mundo e um Parker ternamente melódico no tenor. Eno encontra os Art Ensemble of Chicago num templo tibetano. As improvisações coletivas de “Inlet” e “Track two” reforçam o facto de este ser o álbum mais introspetivo dos Spring Heel Jack, o último tema a explorar as goelas do piano e um Smith perfeitamente extasiado.
            “Autumn” termina “The Sweetness of the Water” na mesma nota épica de “Live”, com eletrónica espacial/cósmica a servir de campo de manobras à oratória de trompete de Leo Smith, numa fusão de jazz astral com a selva digital de Jon Hassel. Os Spring Heel Jack voltaram a arriscar, já não com o ímpeto iconoclasta dos dois trabalhos anteriores, mas com a devoção de verdadeiros musonautas agora infiltrados nos meandros do silêncio.
            Outro álbum devocional que se afasta dos cânones do jazz tradicional é “In Winds, in Light” do contrabaixista sueco Anders Jormin, fundador, nos anos 70, dos progressivos Rena Rama e autor de uma discografia onde contou com “sidemen” como Arve Henriksen, Mats Gustafsson e Marc Ducret.
            O álbum é um ciclo de música sacra e tem como parceiros de Jormin a cantora folk Lena Willemark, Marilyn Crispell (piano), Karin Nelson (órgão de igreja) e Raymond Strid (percussão). Tudo se subordina à elevação e à espiritualidade, o que não quer dizer que tudo se reduza à oração. Em “Choral”, o órgão de igreja vai da beatitude de um Messiaen a explosões na cúpula de catedral, numa demencial fuga de Bach com Lena Willemark a abandonar o registo recitativo para se entregar a cânticos de extrema visceralidade. O curto intervalo de contrabaixo solo em “In Winds” prepara o terreno para novas litanias de demanda do desconhecido (o título original desta obra era “Além”) e um dos traços mais interessantes é o contraponto entre a faceta folk (por mais que ela a tente disfarçar) da cantora e o piano espartano de Marilyn Crispell, magnífico em “Flying”, luxuriante queda de água de notas contrapostas à solenidade do órgão de igreja.
            “In Winds, in Light” ficaria talvez melhor nas “new series” da editora. Enquanto “Jazz” é, tal como “Lux Aeterna”, de Terje Rypdal, um objeto adjacente, estranho a quaisquer noções tradicionais deste tipo de música. Todavia belo.
            Para recarregar as baterias de músculo e suor, há bom remédio. Basta tomar uma dose de “Give” dos The Bad Plus, o “power trio” de piano/baixo/bateria que em “These are the Vistas” já havia dado nas vistas.
            Os Bad Plus tentam tocar jazz mas a métrica e a rítmica, com a bateria a espancar os tempos fortes, tombam mais para o lado do rock. Há influências de “gospel”, música latina, “honky tonk”, Ethan Iverson, no piano, faz de Monk e soletra a primeira letra do seu abecedário e, para desassossegar ainda mais, não faltam versões de “Street woman”, de Ornette Coleman, “Velouria”, dos Pixies, e “Iron man” dos… Black Sabbath. Para um aficionado de jazz-jazz, será talvez forçar a nota em demasia. O que para os The Bad Plus é indiferente. Acima de tudo, eles divertem-se.
            Em Portugal, o jazz também vai longe. Por vezes onde menos se espera. O contrabaixista José Eduardo, por exemplo, “foi-se” à música de José Afonso e o que poderia ser trabalho redundante acaba por ser mais uma dedicatória que honra a obra do cantautor, abordando-a sob a dupla perspetiva de “consciência” e “património”.
            Por outras palavras, o que o trio José Eduardo, Jesus Santadreu (sax tenor) e Bruno Pedroso (bateria) procuram traduzir é a música (ou a música das músicas) que está para além delas (as palavras), acabando “A Jazzar” por ser, neste aspeto, um disco revolucionário. Nunca “Grândola, vila morena” imaginou poder ser dita através de um lancinante solo de saxofone, em versão pautada por alguma ironia, nem que o que fazia falta a “O que faz falta” fosse um longo solilóquio de contrabaixo. Santadreu está igualmente bem e forte em “Coro da Primavera”, qual Sonny Rollins voltado mais para a frente. “A Jazzar no Zeca” é mais um filme do que um retrato, inscrevendo-se nessa “música imaginária” tão cara ao contrabaixista. Zeca nunca imaginaria…
            Editado mais recentemente pela Clean Feed, o novo trabalho dos Lisbon Improvisation Players (LIP) chama-se “Motion” e tem como intervenientes Rodrigo Amado (saxes barítono e tenor), Steve Adams (saxes sopranino e tenor), Ken Filiano (contrabaixo) e Acácio Salero (bateria). Na música improvisada tem-se em conta a ligação, os elos, o saber ouvir e o saber interrogar o desconhecido. Não basta tocar por tocar, é necessário guiar (ou ser guiado) com um propósito em mente.
            Os LIP têm um corpo sólido e um discurso eloquente. O modo como os saxofones de Amado e Adams se dão as mãos para seguir juntos nas descobertas (“Motion”, “All the things we are”, “Wrist action” nunca são caminhada solitária) é um dos pontos a favor deste “Movimento”, que parte do “free” à descoberta de uma outra ordem, ainda que esta já tenha sido encontrada (uma ordem, ou a sua subversão…) por gente como Peter Brötzmann, influência detetável. A combinação saxofonística de “Wrist action” é para ser devorada, tal a suculência do som e a sucessão de soluções de pergunta/resposta encontradas.
            “Shipping news” completa em arco o ambiente inquisitivo do tema inicial “Perpetual explorers”, com Salero a fazer detonar o tempo e Filiano a arrumá-lo. A exploração continua. Faltam, porventura, portas de saída a este jazz que não receia ser solidário.
            No limite mais afastado do “mainstream”, “Quartets”, de Manuel Mota, procura apanhar os estilhaços de uma música que se pulveriza em gestos onde o silêncio se inscreve numa quadrícula. Mota, como Derek Bailey ou o Fred Frith mais sarcástico (de “Guitar Solos”), arranca da sua guitarra elétrica ruídos e eletricidade pura. Tem a seu lado Fala Mariam, no trombone, companheira habitual de Sei Miguel, Margarida Garcia, no baixo, e, num interessante complemento tímbrico que no entanto se esgota quando cessa o efeito surpresa, César Burago, no carrilhão.
            Os temas não se diferenciam o sufi ciente uns dos outros para manter acesa a atenção e a insistência na contenção levada ao extremo acaba por se tornar cansativa. “Downstairs” parece ter sido cortado aos bocados e “Good eve” condescende com o ambiental. “Menos é mais” ou há algo mais escondido nesta música que o ouvido não apanha?

Spring Heel Jack
The Sweetness of the Water
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
8 | 10

Anders Jormin
In Winds, in Light
ECM, distri. Dargil
7 | 10

The Bad Plus Give
Columbia, distri. Sony Music
6 | 10

Zé Eduardo Unit
A Jazzar no Zeca
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Lisbon Improvisation Players
Motion
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10

Manuel Mota
Quartets
Ed. e distri. Headlights
5 | 10

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