JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 27 NOVEMBRO 2004
Os Spring Heel Jack voltam a
surpreender, com um álbum mais introspectivo que os seus estrondosos antecessores.
Na Suécia reza-se. Os Bad Plus
divertem-se. Em Portugal a improvisação dá as mãos a Zeca Afonso.
Sal
em jazz de água doce
Há discos que
estão nas margens do jazz. Discos que empurram o jazz para fora das margens. A
música dos Spring Heel Jack, desde que a dupla John Coxon e Ashley Wales
decidiu desviar-se dos caminhos do drum ‘n’ bass e enveredar por uma abordagem jazzística
radical, tem suscitado uma série de perplexidades, a menor das quais não será a
dificuldade em traçar a sua genealogia e fazer a sua catalogação. Depois de
“Amassed” e do álbum ao vivo, “The Sweetness of the Water” prossegue a saga de
conciliar a eletrónica e o “sampling” com alguns dos melhores improvisadores da
cena jazzística atual. Do “Live” para o novo álbum apenas ficou Evan Parker, juntando-se-lhe
o trompetista, membro do AACM e da Creative Construction Company, com Anthony
Braxton e Leroy Jenkins, Wadada Leo Smith, e uma secção rítmica formada por
John Edwards (contrabaixo) e Mark Sanders (bateria) cuja colaboração já havia
dado frutos em “Nisus Duets”.
“The Sweetness of the Water” começa
com aquecimento improvisacional, em dois quadros abstratos, “Track four” e
“Quintet”. No primeiro desenrolam-se ângulos cortantes de guitarra elétrica por
Coxon, taquicardias rítmicas e o desempenho atmosférico de Leo Smith no
trompete, num tema onde a “gaiola de elevador” faz figura de instrumento
musical. Parker deambula por ali, em “Quintet”, mostrando-se tão à vontade no
contexto do circo eletrónico como no seu próprio Electro-acoustic Ensemble.
Mas o primeiro grande momento
acontece em “Lata”. Sobre um fundo eletrónico que sugere o balanço romântico-psicótico
de “Chree”, dos Suicide, Evan Parker procede à dilaceração do tempo, com cada
frase, por mais livre que seja, a encaixar-se de modo mágico na pulsação
maquinal. “Duo” é um subtil trabalho de fi ligrana de Sanders, na bateria, com
Coxon adicionando-lhe efeitos e “noise” a la Sonny Sharrock.
“Track one” é outros dos temas
belíssimos de “The Sweetness of Water”, ilustrando o lado mais meditativo do
grupo, com simulacros de gongo, Wadada a pairar no topo do mundo e um Parker ternamente
melódico no tenor. Eno encontra os Art Ensemble of Chicago num templo tibetano.
As improvisações coletivas de “Inlet” e “Track two” reforçam o facto de este
ser o álbum mais introspetivo dos Spring Heel Jack, o último tema a explorar as
goelas do piano e um Smith perfeitamente extasiado.
“Autumn” termina “The Sweetness of
the Water” na mesma nota épica de “Live”, com eletrónica espacial/cósmica a
servir de campo de manobras à oratória de trompete de Leo Smith, numa fusão de
jazz astral com a selva digital de Jon Hassel. Os Spring Heel Jack voltaram a
arriscar, já não com o ímpeto iconoclasta dos dois trabalhos anteriores, mas
com a devoção de verdadeiros musonautas agora infiltrados nos meandros do
silêncio.
Outro álbum devocional que se afasta
dos cânones do jazz tradicional é “In Winds, in Light” do contrabaixista sueco
Anders Jormin, fundador, nos anos 70, dos progressivos Rena Rama e autor de uma
discografia onde contou com “sidemen” como Arve Henriksen, Mats Gustafsson e
Marc Ducret.
O álbum é um ciclo de música sacra e
tem como parceiros de Jormin a cantora folk Lena Willemark, Marilyn Crispell
(piano), Karin Nelson (órgão de igreja) e Raymond Strid (percussão). Tudo se
subordina à elevação e à espiritualidade, o que não quer dizer que tudo se
reduza à oração. Em “Choral”, o órgão de igreja vai da beatitude de um Messiaen
a explosões na cúpula de catedral, numa demencial fuga de Bach com Lena
Willemark a abandonar o registo recitativo para se entregar a cânticos de
extrema visceralidade. O curto intervalo de contrabaixo solo em “In Winds”
prepara o terreno para novas litanias de demanda do desconhecido (o título
original desta obra era “Além”) e um dos traços mais interessantes é o
contraponto entre a faceta folk (por mais que ela a tente disfarçar) da cantora
e o piano espartano de Marilyn Crispell, magnífico em “Flying”, luxuriante
queda de água de notas contrapostas à solenidade do órgão de igreja.
“In Winds, in Light” ficaria talvez
melhor nas “new series” da editora. Enquanto “Jazz” é, tal como “Lux Aeterna”,
de Terje Rypdal, um objeto adjacente, estranho a quaisquer noções tradicionais
deste tipo de música. Todavia belo.
Para recarregar as baterias de
músculo e suor, há bom remédio. Basta tomar uma dose de “Give” dos The Bad
Plus, o “power trio” de piano/baixo/bateria que em “These are the Vistas” já havia
dado nas vistas.
Os Bad Plus tentam tocar jazz mas a
métrica e a rítmica, com a bateria a espancar os tempos fortes, tombam mais
para o lado do rock. Há influências de “gospel”, música latina, “honky tonk”, Ethan
Iverson, no piano, faz de Monk e soletra a primeira letra do seu abecedário e,
para desassossegar ainda mais, não faltam versões de “Street woman”, de Ornette
Coleman, “Velouria”, dos Pixies, e “Iron man” dos… Black Sabbath. Para um aficionado
de jazz-jazz, será talvez forçar a nota em demasia. O que para os The Bad Plus
é indiferente. Acima de tudo, eles divertem-se.
Em Portugal, o jazz também vai
longe. Por vezes onde menos se espera. O contrabaixista José Eduardo, por
exemplo, “foi-se” à música de José Afonso e o que poderia ser trabalho redundante
acaba por ser mais uma dedicatória que honra a obra do cantautor, abordando-a
sob a dupla perspetiva de “consciência” e “património”.
Por outras palavras, o que o trio
José Eduardo, Jesus Santadreu (sax tenor) e Bruno Pedroso (bateria) procuram
traduzir é a música (ou a música das músicas) que está para além delas (as
palavras), acabando “A Jazzar” por ser, neste aspeto, um disco revolucionário. Nunca
“Grândola, vila morena” imaginou poder ser dita através de um lancinante solo
de saxofone, em versão pautada por alguma ironia, nem que o que fazia falta a
“O que faz falta” fosse um longo solilóquio de contrabaixo. Santadreu está
igualmente bem e forte em “Coro da Primavera”, qual Sonny Rollins voltado mais
para a frente. “A Jazzar no Zeca” é mais um filme do que um retrato,
inscrevendo-se nessa “música imaginária” tão cara ao contrabaixista. Zeca nunca
imaginaria…
Editado mais recentemente pela Clean
Feed, o novo trabalho dos Lisbon Improvisation Players (LIP) chama-se “Motion” e
tem como intervenientes Rodrigo Amado (saxes barítono e tenor), Steve Adams (saxes
sopranino e tenor), Ken Filiano (contrabaixo) e Acácio Salero (bateria). Na música
improvisada tem-se em conta a ligação, os elos, o saber ouvir e o saber interrogar
o desconhecido. Não basta tocar por tocar, é necessário guiar (ou ser guiado)
com um propósito em mente.
Os LIP têm um corpo sólido e um
discurso eloquente. O modo como os saxofones de Amado e Adams se dão as mãos para
seguir juntos nas descobertas (“Motion”, “All the things we are”, “Wrist
action” nunca são caminhada solitária) é um dos pontos a favor deste “Movimento”,
que parte do “free” à descoberta de uma outra ordem, ainda que esta já tenha
sido encontrada (uma ordem, ou a sua subversão…) por gente como Peter
Brötzmann, influência detetável. A combinação saxofonística de “Wrist action” é
para ser devorada, tal a suculência do som e a sucessão de soluções de
pergunta/resposta encontradas.
“Shipping news” completa em arco o
ambiente inquisitivo do tema inicial “Perpetual explorers”, com Salero a fazer
detonar o tempo e Filiano a arrumá-lo. A exploração continua. Faltam,
porventura, portas de saída a este jazz que não receia ser solidário.
No limite mais afastado do “mainstream”,
“Quartets”, de Manuel Mota, procura apanhar os estilhaços de uma música que se
pulveriza em gestos onde o silêncio se inscreve numa quadrícula. Mota, como
Derek Bailey ou o Fred Frith mais sarcástico (de “Guitar Solos”), arranca da
sua guitarra elétrica ruídos e eletricidade pura. Tem a seu lado Fala Mariam,
no trombone, companheira habitual de Sei Miguel, Margarida Garcia, no baixo, e,
num interessante complemento tímbrico que no entanto se esgota quando cessa o
efeito surpresa, César Burago, no carrilhão.
Os temas não se diferenciam o sufi
ciente uns dos outros para manter acesa a atenção e a insistência na contenção
levada ao extremo acaba por se tornar cansativa. “Downstairs” parece ter sido
cortado aos bocados e “Good eve” condescende com o ambiental. “Menos é mais” ou
há algo mais escondido nesta música que o ouvido não apanha?
Spring Heel Jack
The Sweetness
of the Water
Thirsty Ear, distri. Trem Azul
8 | 10
Anders Jormin
In Winds, in
Light
ECM, distri. Dargil
7 | 10
The Bad Plus Give
Columbia, distri. Sony Music
6 | 10
Zé Eduardo Unit
A Jazzar no
Zeca
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10
Lisbon Improvisation
Players
Motion
Clean Feed, distri. Trem Azul
7 | 10
Manuel Mota
Quartets
Ed. e distri. Headlights
5 | 10
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