JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 13 NOVEMBRO 2004
Se na semana passada falámos da ECM, editora do espaço e do silêncio, o
jazz desta semana enferma da falta deles. Tem outros atributos que à energia
pertencem: o fogo, o calor, a electricidade.
Como
um ferro em brasa
No ano do seu
50º aniversário, John Zorn continua a expandir os limites da sua música no contexto
de um jazz mais do que liberal e da assunção das suas origens judaicas, com os Electric
Masada, num novo álbum esotericamente intitulado 50 elevado à quarta potência. Desta
vez em octeto, com Marc Ribot (guitarra), Ikue Mori (“laptop”), Joey Baron
(bateria) e Cyro Baptista (percussão), entre outros, Zorn envereda por um
estilo de fusão que tanto recolhe elementos da música klezmer como radica no
“free” de Ornette Coleman ou nas experiências de Miles Davis no “jazz rock”.
“Idalah-abal” roça o progressivo e a guitarra de Ribot leva o tema para as
proximidades de um “hard rock” de contornos épicos. Sobre a massa instrumental,
Zorn espreme o seu saxofone alto até o fazer gritar de dor. É o Zorn mais
“funky” que se pode conceber. Também o mais acessível e próximo de uma
sensibilidade rock. Os 15 minutos de um dos temas mete na caldeira o “jazz rock”,
melodias “yiddish”, saxofone a soprar bom “free”, piano elétrico e vozes
alienígenas filtradas por computador, tudo muito “In a Silent Way” mas com
“silent” substituído por “highly energetic”.
Outro exemplar de jazz fusionista é
o curioso “Rhythmatism” do baterista Steve Reid, gravado em 1975. Pouco sensível
às liberdades “free”, Reid revela antes as suas raízes “soul” e o que ficou do
convívio com Martha Reeves and the Vandellas, Dionne Warwick e James Brown.
Reid também tocou com Miles Davis, Gary Bartz, Freddie Hubbard, Sam Rivers e
Archie Shepp. E, bem impressas as marcas, Fela Kuti. É “soul jazz” onde o mais importante
é a manutenção do “groove” em longas “jams” a permitir solos fluentes que nunca
ferem o ritmo base. Entre os sopradores encontramos Arthur Blythe, no sax alto,
que em “Rocks (for Cannonbal)” aproveita bem o tempo de antena num solo
circular, tão Cannonbaliano como Coltraniano, mas sempre plenamente integrado no
espírito. “Rhythmatism” agradará tanto aos apreciadores de Pharoah Sanders como
aos de Sly Stone ou do Herbie Hancock “funky”. É jazz bem balançado (simplista,
em “Center of the Earth”), mas sem grandes motivos de descoberta. O “groove” é
tudo.
Na mesma editora, Universal Sound, o
trompetista Marcus Belgrave também persegue o “groove”, mas aqui o campo de manobra
é mais vasto e vertical. Belgrave tocou com Mingus, McCoy Tyner, Clifford Brown
(a sua grande influência) e Sun Ra. Em “Gemini” (1974), típico objecto do jazz
dos anos 70, inspirado nas características do signo astrológico de Gémeos, a
primeira lição a tirar vem precisamente de Sun Ra, numa “Space odyssey” que
vive da manipulação cósmica de um sintetizador Moog. Apesar de a música, também
neste caso, não primar pela ousadia rítmica (o “jazz rock” não passou
impunemente por esta década…) e ceder pontualmente à facilidade do “funk”, o
trompetista consegue ser sufi cientemente imaginativo e fazer bom uso dos
próprios “clichés”. O tempo médio do “bluesy” e ambiental de “Odoms cave”, com
uma intervenção de Phillip Ranelin no trombone “muted”, estabelece um
interessante contraste com o resto do álbum.
E já que falámos de Sun Ra e de John
Zorn, eles fazem parte do imaginário de um dos atuais reis do jazz de Chicago, de
seu nome Ken Vandermark. “Elements of Style… Exercises in Surprise” (belo
título!) é a mais recente proposta do seu quinteto (Job Bishop, no trombone, Tim
Daisy, na bateria, Kent Kessler, no baixo, Dave Kempis, no saxofone) e vem cheia
de dedicatórias, como a John Gilmore (“sideman” de Sun Ra), Jean-Michel
Basquiat, Glenn Gould e… Zu (já lá iremos). Vandermark volta a exibir as suas
singularidades, angulosidades e visceralidade, sem se esquecer de trazer o
“swing” na bagagem. Um arquiteto para quem o discurso livre não dispensa o
extremo cuidado posto na organização e definição do “corpo”. O fluxo de ideias
que é todo um contrapoder à lógica expressionista de muito do jazz negro faz
pausa no extático “Intagliamento”, trabalho de tempos e lugares todo ele entregue
à secção rítmica. A ausência do piano torna ainda mais carnal esta música que talvez
corra apenas o risco de se deixar enredar no seu próprio, e novo, academismo.
Dito de outra forma, o “som Vandermark” tornou-se o somatório de certezas e
poucas ou nenhumas dúvidas. “Gylenne”, uma marcha, e os 20 minutos, bons para
comparar com o andamento dos Electric Masada (quem se aventura mais, Zorn, o
furacão do instante, ou Vandermark, o conceptual instantâneo?), de “Six of
one”, chegam a pedir autorização à tradição para se afastarem dela. O
futuro-presente dos Vandermark 5 tem história.
Tudo se torna mais claro e as águas
separam-se em “Radiale”, ainda com Vandermark como principal protagonista. O disco
divide-se em duas partes distintas. Na primeira o norte-americano junta-se ao
trio italiano Zu, em quatro originais que contemplam a veia mais gritante de
Zorn, com o mesmo tipo de energia concentracionária e a mesma densidade de ação.
Vandermark encontra em Luca T. Mai (sax barítono) uma alma gémea e, como
consequência, a música por nenhum instante deixa de estar em brasa. Na segunda parte
o quarteto recebe Hamid Drake (bateria) e Nate McBride (baixo) e transforma-se em
Spaceways Inc, numa homenagem óbvia ao maestro de Saturno que, no final, se concretiza
numa versão de “We travel the spaceways/Space is the place”. Dos restantes
temas, dois têm a assinatura de George Clinton e um a dos Art Ensemble of
Chicago. Se a música não perde a sua dimensão selvática, sai, porém, ainda mais
reforçada a sua espessura. Duas baterias e dois baixos, mais dois saxofonistas incandescentes,
são fogo posto a cada instante e apenas no tema de Sun Ra é autorizada a entrada
do silêncio. Os Material e os Massacre não andavam longe destas paragens,
apenas lhes faltava a autoridade de um saxofonista que sabe onde termina a loucura
e começa a ordem.
Herb Robertson, um dos inovadores do
trompete das últimas décadas, às vezes parece não saber. “Certifi ed”, de 1991,
outra das recuperações da sua discografia na JMT, irritantemente embalada na
habitual caixa gorda com rótulo a martelo, é certamente um dos seus discos menos
acessíveis e dependentes da livre improvisação. Por vezes tão esotérica que
chega a ser árida. Felizmente, à terceira faixa, dizem-nos “Don’t be afraid we’re
not like the others”. A secção rítmica formada por Ed Schuller e Phil Haynes
permite então estruturas mais diversificadas, mas Robertson continua o mesmo
homem que gosta de tocar desenfreadamente e de desestruturar o compasso. Onomatopeias,
gritos, curtas sequências microtonais, induzem novos métodos de improvisação, com
a inclusão de sons concretos e timbres acusmáticos na ironicamente intitulada
“Seeking seeds in the blues bazar”, 17 minutos de jazz eletro-acústico que,
como as “Ghostsongs” seguintes, lembram vagamente algumas estratégias dos Art
Ensemble of Chicago recuperando como instrumentos musicais toda a espécie de
objetos sonoros. A anedota conta que Herb Robertson se interessou pela
atonalidade ao ouvir o pai assobiar canções da rádio completamente desafinado.
Certo, “Certified” arranha igualmente o ouvido, nem sempre pelas razões certas.
Electric Masada
50.4
Tzadik. Distri. Ananana
8 | 10
Steve Reid
Rhytmatism
Universal Sound, distri. Sabotage
7 | 10
Marcus Belgrave
Gemini
Universal Sound, distri. Sabotage
8 | 10
The Vandermark Five
Elements of
Style… Exercises in Surprise
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10
Zu/Spaceways Inc.
Radiale
Atavistic, distri. Ananana
8 | 10
Herb Robertson
Certified
Winter & Winter, distri. Ananana
6 | 10
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