04/08/2020

MARTIN CARTHY - Waiting For Angels


5|NOVEMBRO|2004 Y
discos|roteiro

martin carthy, o anjo da folk

MARTIN CARTHY
Waiting for Angels
Topic, distri. Megamúsica
9|10

O homem canta e toca de forma imperial. Chama-se Martin Carthy e é o maior mito da folk inglesa contemporânea. Após um interregno de seis anos, “Signs of Life”, de 1998, encontrou um sucessor. O antigo elemento dos Albion Country Band e fundador dos Brass Monkey está melhor do que nunca e aos talentos de cantor e guitarrista junta agora o de arranjador. “Waiting for Angels”, ao contrário de outras obras suas marcadas pelo despojamento, prima pela inclusão de sonoridades variadas que vão do violoncelo, oboé, trompete e trombone à “slide guitar” de Martin Simpson e ao órgão de foles e rabeca da filha e produtora do disco, Eliza Carthy. A voz traz o paraíso. Uma voz cuja amplitude torna cada canção tradicional num salmo de proporções épicas. Esse é um dos sinais do génio de Carthy, a capacidade de fazer de cada história uma narrativa intemporal onde os sentimentos de gente concreta, de cortes antigas ou do mar, mas também entidades etéreas das lendas, são ampliados de modo a ecoarem dentro de nós com uma força que se confunde com a glória.
            A música e o canto de Carthy nunca são ambíguos, o seu mistério é o da revelação. Como se ainda não chegasse, há um “swing” sem igual. Logo nas primeiras notas de “The foggy dew” sente-se o balanço. Martin canta como nenhum outro, juntando a genuinidade e a técnica vocal da música tradicional a uma religiosidade que encontramos na música antiga sacra. O canto eleva-se na melodia principal – sempre judiciosamente escolhida do melhor cancioneiro, de Walter Pardon ou dos Copper Family – mas também nas subtis ornamentações ou nas ligeiras alterações tímbricas que interpõem ao veludo pedaços de um tecido mais áspero. “The foggy dew” é uma interpretação fabulosa, mas é apenas a primeira procissão, com percussão ritual e um violino tão sensual como um acto de amor. Carthy desvenda o segredo: “Existe algo em aprender uma canção de a ouvir cantar por uma pessoa, em vez de a lermos numa página impressa. Há uma diferença enorme. Refi ro-me a ouvir pessoas a quem chamaria os ‘velhos cantores à moda antiga’, que estão habituados a cantar sem mais adornos do que os da sua própria imaginação, comunicando toda a espécie de variações internas, pausas, etc e deixando o ritmo das palavras ser o ditador absoluto”.
            É isso mesmo que Carthy vem fazendo e a que neste disco acrescenta “novos horizontes”. Será então esse contacto íntimo com a alma que nos faz exaltar. Lamentos de reis, navios trazendo novas do mundo, elegias, guerras e jardins, saúde aos amigos e a saudade atravessam-nos como facas de luz, ao ouvirmos esta voz que parece transportar a sabedoria de séculos sem que uma nota soe antiquada.
            Em “Young Morgan” a bateria, tão funda como um poço escavado no granito, torna ainda mais pungente o gemido vocal. De novo a bateria majestosa e uma guitarra eléctrica de deuses antigos tornam “A ship to old England came” numa marcha solene que transcende tudo o que os Brass Monkey e os Albion Band fizeram neste domínio. O título-tema é um instrumental de folk de câmara de prece aos anjos enquanto outro instrumental, “The royal lament”, cria uma suave neblina entre a guitarra acústica (na qual Carthy se confirma como mestre) e a “slide” de Simpson. O terceiro instrumental, “Bloody fields of Flanders/MacGregor of Rora”, será o único obstáculo a que “Waiting for Angels” seja obra-prima.
            Mas o fim compensa-nos, oferecendo-nos, nos dez minutos de “Famous flower of serving men”, outra vocalização de antologia. “Waiting for Angels” é o testemunho de um génio e uma lição de vida. São álbuns como este que nos fazem amar a “folk”.

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