5|NOVEMBRO|2004 Y
discos|roteiro
martin carthy, o anjo da
folk
MARTIN CARTHY
Waiting for Angels
Topic,
distri. Megamúsica
9|10
O
homem canta e toca de forma imperial. Chama-se Martin Carthy e é o maior mito
da folk inglesa contemporânea. Após um interregno de seis anos, “Signs of
Life”, de 1998, encontrou um sucessor. O antigo elemento dos Albion Country
Band e fundador dos Brass Monkey está melhor do que nunca e aos talentos de cantor
e guitarrista junta agora o de arranjador. “Waiting for Angels”, ao contrário
de outras obras suas marcadas pelo despojamento, prima pela inclusão de
sonoridades variadas que vão do violoncelo, oboé, trompete e trombone à “slide
guitar” de Martin Simpson e ao órgão de foles e rabeca da filha e produtora do
disco, Eliza Carthy. A voz traz o paraíso. Uma voz cuja amplitude torna cada
canção tradicional num salmo de proporções épicas. Esse é um dos sinais do
génio de Carthy, a capacidade de fazer de cada história uma narrativa
intemporal onde os sentimentos de gente concreta, de cortes antigas ou do mar,
mas também entidades etéreas das lendas, são ampliados de modo a ecoarem dentro
de nós com uma força que se confunde com a glória.
A música e o canto de Carthy nunca
são ambíguos, o seu mistério é o da revelação. Como se ainda não chegasse, há
um “swing” sem igual. Logo nas primeiras notas de “The foggy dew” sente-se o
balanço. Martin canta como nenhum outro, juntando a genuinidade e a técnica
vocal da música tradicional a uma religiosidade que encontramos na música antiga
sacra. O canto eleva-se na melodia principal – sempre judiciosamente escolhida
do melhor cancioneiro, de Walter Pardon ou dos Copper Family – mas também nas
subtis ornamentações ou nas ligeiras alterações tímbricas que interpõem ao
veludo pedaços de um tecido mais áspero. “The foggy dew” é uma interpretação fabulosa,
mas é apenas a primeira procissão, com percussão ritual e um violino tão
sensual como um acto de amor. Carthy desvenda o segredo: “Existe algo em
aprender uma canção de a ouvir cantar por uma pessoa, em vez de a lermos numa
página impressa. Há uma diferença enorme. Refi ro-me a ouvir pessoas a quem
chamaria os ‘velhos cantores à moda antiga’, que estão habituados a cantar sem
mais adornos do que os da sua própria imaginação, comunicando toda a espécie de
variações internas, pausas, etc e deixando o ritmo das palavras ser o ditador
absoluto”.
É isso mesmo que Carthy vem fazendo
e a que neste disco acrescenta “novos horizontes”. Será então esse contacto
íntimo com a alma que nos faz exaltar. Lamentos de reis, navios trazendo novas
do mundo, elegias, guerras e jardins, saúde aos amigos e a saudade
atravessam-nos como facas de luz, ao ouvirmos esta voz que parece transportar a
sabedoria de séculos sem que uma nota soe antiquada.
Em “Young Morgan” a bateria, tão
funda como um poço escavado no granito, torna ainda mais pungente o gemido
vocal. De novo a bateria majestosa e uma guitarra eléctrica de deuses antigos tornam “A ship to old England came” numa marcha solene
que transcende tudo o que os Brass Monkey e os Albion Band fizeram neste
domínio. O título-tema é um instrumental de folk de câmara de prece aos anjos
enquanto outro instrumental, “The royal lament”, cria uma suave neblina entre a
guitarra acústica (na qual Carthy se confirma como mestre) e a “slide” de
Simpson. O terceiro instrumental, “Bloody fields of Flanders/MacGregor of
Rora”, será o único obstáculo a que “Waiting for Angels” seja obra-prima.
Mas o fim compensa-nos,
oferecendo-nos, nos dez minutos de “Famous flower of serving men”, outra
vocalização de antologia. “Waiting for Angels” é o testemunho de um génio e uma
lição de vida. São álbuns como este que nos fazem amar a “folk”.
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