04/08/2020

ECM à redescoberta dos 70's [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 6 NOVEMBRO 2004

Manfred Eicher, o produtor iluminado, criou o som ECM, para o melhor e para o pior. O relançamento, a preço especial, de uma série de 50 CD da década de 70 está aí para o/se provar.

ECM à redescoberta dos 70’s

A ECM tem estilo e uma estética própria. A ECM tem frio. A ECM tem detratores. A ECM tem uma imagem de marca. A ECM tem Manfred Eicher. A ECM tem admiradores. A ECM tem muitos discos, alguns deles não são de jazz. A ECM tem grandes discos de jazz.
            Hoje como há 30 anos, a ECM dá corpo a uma ideia, um conceito de música e de embalagem gráfica que fizeram história. Foi há 30 anos, em plenos anos 70, que se começou a falar do “som ECM”, nem sempre em termos elogiosos. Houve quem se referisse à emergência de um “neo cool” para classificar obras onde o apuro da produção e o cuidado no detalhe eram regra. O “som ECM”, seja o dos Art Ensemble of Chicago ou de Stephan Micus, é um som que cultiva o aproveitamento do espaço e a importância do silêncio. Onde a emoção jamais despreza a inteligência.
            Em 2004 é a própria editora a chamar a atenção para o seu acervo dos anos 70, lançando, sob o rótulo “ECM Discoveries”, e a “special price”, uma coleção de 50 CD de álbuns gravados nesta década. Escolhemos, como amostra, oito que ilustram a classe mas também a diversidade do catálogo.
            Nos primórdios da ECM, um inglês de 27 seguia na vanguarda do novo jazz que eclodia no seu país. Chamava-se David Holland, atraíra a atenção ao lado de Miles Davis e nos Spontaneous Music Ensemble e tocava contrabaixo de tal maneira que o compararam a Scott LaFaro. E gostava de observar todas as manhãs os pássaros que cantavam, cada um a sua melodia, à sua janela. “Conference of the Birds” (1973) é um dos seus grandes discos e foi gravado em quarteto com outros três grandes músicos, Sam Rivers (saxofones e flauta), Anthony Braxton (saxofones e flauta) e Barry Altschul (percussão e marimba). Puro deleite, acompanhar a interceção de “riffs” circulares e aventuras “free” dos dois saxofonistas em “Four winds”, a féerie de sons percussivos em “Q&A”, o chilrear das flautas sobre marimba no título-tema, a complexidade do solo de contrabaixo em “Interception”, a cortar momentos de pura “britishness” de uma sensibilidade quase pop (na altura os Soft Machine e os Nucleus atuavam do outro lado da barricada, mas é sempre possível trocar de lugar). E, sim, para a ECM, o momento da glaciação ainda não era chegado.
            Mas em 1975 já se esculpiam estátuas de gelo. Algumas delas para saborear como gelados. “Solstice”, de Ralph Towner, guitarrista dos Oregon, é uma delas. Cá está o som “neo cool” ou “neoclássico”, talvez porque tinham chegado os nórdicos – Jan Garbarek (saxes soprano e tenor) e Jon Christensen (bateria, percussão). O contrabaixista, Eberhard Weber, acabara de chegar do “krautrock” e de colaborações com Wolfgang Dauner e Volker Kriegel. “Solstice” é ambiental, etéreo numa faixa como “Visitation” (nem sequer falta o som de um fantasma…). Towner toca com a entoação hipnótica e as cristalizações de um Laraaji (“Nimbus”, com as suas escalas menores na flauta e modos indianos), outras com trejeitos de flamenco. No piano (“Drifting petals”) Towner é um romântico contemplativo, pelo que não espanta que Garbarek corra a fazer-lhe companhia. Nos antípodas de “Conference of the Birds”, “Solstice” tem o perfume da relva húmida de um jardim.
            No mesmo ano, um saxofonista, Dave Liebman, confessava logo de início que os tambores são a sua fonte de inspiração. “Drum Ode” faz-lhes a dedicatória. Eis outro disco que Manfred Eicher teve dificuldade em enfiar no congelador. Richard Beirach (piano elétrico), John Abercrombie (guitarras), Bob Moses (bateria), Barry Altschul (percussão) e Colin Walcott (outro elemento dos Oregon, tablas) são os principais protagonistas de um grupo alargado. Fusão, Liebman no papel ocasional de Roland Kirk, uma faixa, “Oasis”, cantada por uma senhora parecida com Norma Winstone mas menos estalactite. “The call” é jogo de duplos: duas baterias e o sax soprano em diálogo consigo próprio graças aos efeitos de “delay”. Belíssimo o tropicalismo suave de “Your lady”, com o piano elétrico a deslizar por entre as congas, sinos e contrabaixo, e um Liebman apuradíssimo. “Ode drum” tem início em África mas termina, em “Satya Dhwani”, na Índia.
            Um disco onde o “som ECM” faz maravilhas é “Hotel Hello”. De Gary Burton (vibrafone, órgão, marimba) em duo com Steve Swallow (contrabaixo, piano). Burton, provavelmente, em termos técnicos, o maior vibrafonista vivo, consegue neste disco uma maior empatia do que num outro dueto, com o piano de Chick Corea, em “Crystal Silence”. Onde Corea entrava em colisão, Swallow, mesmo ao piano, cria lugares com possibilidades ilimitadas de coabitação. “Inside in”, de Mike Gibbs, é uma oferta a quem gosta dos Gentle Giant embora faça também lembrar um pouco Stomu Yamashta de “Floating Music”. Entre os temas não assinados pela dupla está ainda “Vashkar”, de Carla Bley, diálogo de contrabaixo e órgão, com o tipo de melancolia de funeral característica desta teclista americana mas que também não fi caria mal em “Rock Bottom”, de Robert Wyatt.
            Cheguemo-nos de novo a Eberhard Weber, desta vez para receber “Yellow Fields”, de 1976, juntamente com “The Colours of Chloe”, um belíssimo exemplar de jazz progressivo onde o fator “som ECM” funciona de forma positiva. Rainer Brüninghaus (outro krautrocker, ex-Eilliff) enche o espectro estereofónico com os seus teclados, incluindo o sintetizador, abusando talvez um pouco do efeito sedativo das “strings” sintéticas. Charlie Mariano (sax soprano, shenai, nagaswaram) pende, como Liebman, para o lado “world”, em particular a Índia (gravaria mais tarde um álbum inteiro, “Jyothi”, dedicado à música indiana). A introdução, com pizzicato de contrabaixo e o mesmo “portamento” de sintetizador que Jan Hammer utiliza em “The First Seven Days”, é magnífica, prosseguindo com Mariano no monte shenai, instrumento de timbre entre o oboé e a bombarda. Colorido como um vitral.
            Mas não foi só no campo do paisagismo que a ECM se destacou nos anos 70. Também o experimentalismo teve o seu lugar. Em 1976 surgiu “Mountainscapes”, de Barre Phillips, criação de um coletivo que se pode considerar uma extensão dos The Trio, com Phillips (baixo), John Surman (saxes soprano e barítono, clarinete baixo, sintetizador) e Stu Martin (bateria, sintetizador) aos quais se juntaram Dieter Feichtner (sintetizador) e, como convidado no último tema, John Abercrombie (guitarra). Entre o jazz e a eletro-acústica, “Mountainscapes” poderia passar por um manual de instruções para aprendizes de pós-jazz como os Chicago Underground. As “drones”, apontamentos minimalistas (em “VII” a sequenciação eletrónica é do mesmo tipo que a que Surman usou e abusou na sua fase inicial a solo na ECM) e jazz livre transformam-se continuamente, com a eletrónica a modificar as formas e os timbres dos vários instrumentos.
            O senhor ECM é, indubitavelmente, Keith Jarrett. A sua discografia nesta editora é extensa e, devemos reconhecê-lo, desequilibrada. Temos ainda de confessar que gostamos de o ouvir como o multinstrumentista que é e não apenas como o pianista que chegou ao topo do mundo. Em “The Survivors’ Suite”, de 1977, não se trata, porém, de obras sacras para órgão ou clavicórdio, mas de uma “suite” em que Jarrett, além do piano, toca sax soprano, flauta de bisel baixo, celesta e tambores Osi. Tem como parceiros de luxo Dewey Redman (sax tenor, percussão), Charlie Haden (contrabaixo) e Paul Motian (bateria, percussão). Obra evolutiva, avança lentamente e por fases distintas, com momentos de percussão e flauta, pianismos vários, paroxismos “free” e embalos de “jazz rock” encimados pelo sax de Redman ou um encantatório dueto de contrabaixo e celesta.
            O estatuto de segundo senhor ECM, em termos de produtividade, deve ser atribuído a Jan Garbarek. “Places”, de 1977, é um dos seus bons álbuns, antes de se tornar piegas. Com Bill Connors (guitarra), John Taylor (órgão, piano) e Jack DeJohnette, criou misticismo sério, obra de elevação onde os instrumentos oram e respiram como no interior de uma catedral. O órgão é litúrgico e todo o ambiente faz lembrar algumas obras do mesmo período de Terje Rypdal, como “Odyssey” e “After the Rain”. O estilo do saxofonista terá mudado pouco de então para cá, com as suas inflexões “folk” e o inconfundível vibrato. Pena terem embarcado todos (mesmo DeJohnette!) no ritmo de saldos de “Entering”. É preciso cuidado para não adormecer durante a meditação.

Dave Holland Quartet
Conference of the Birds
9 | 10

Ralph Towner
Solstice
8 | 10

Dave Liebman
Drum Ode
8 | 10

Gary Burton & Steve Swallow
Hotel Hello
9 | 10

Eberhard Weber
Yellow Fields
7 | 10

Barre Phillips
Mountainscapes
8 | 10

Keith Jarrett
The Survivors’ Suite
8 | 10

Jan Garbarek
Places
7 | 10

Todos ECM, distri. Dargil

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