14/08/2020

Miles de passagem [Miles Davis]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 20 NOVEMBRO 2004

Miles Davis dissecado ao pormenor em sete discos que abrangem dois anos de carreira, 1963 e 1964. Kind of Blue já ficara para trás. E.S.P. e Miles Smiles vinham a caminho.

Miles de passagem


Facto número um: o objeto. Mais uma antologia da Columbia correspondente a um período específico do músico, embalada de forma apelativa num grosso volume com a capa forrada a tecido e lombada em metal. Número de discos: sete. Convenientemente limpos de impurezas e remasterizados. Informação adjacente: profusa. Em forma de anotação que é quase um livro, com as suas 92 páginas divididas em cinco capítulos, “Introduction”, “Track listing”, “Discography”, “The complete 1963-64 Columbia recordings” e “Credits”. Tudo contado ao pormenor, faixa a faixa, segundo a segundo, para que fiquemos a saber que na faixa “x”, ao segundo “y”, ao meio-tom tocado pelo trompetista correspondeu uma inclinação do bocal do saxofonista de 2,5 graus, com emissão de um sol e um fá sustenido. Título da obra: “Seven Steps — The Complete Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964”.
            Músico principal – como é que adivinharam? –, Miles Davis. Captado em pormenor e visto à lupa nos anos de 1963 e 1964, maioritariamente ao vivo em locais como o Festival Mondial de Jazz Antibes, em França, o Philharmonic Hall de Nova Iorque, o Kohseinenkin Hall de Tóquio, Japão, e o Berlin Philharmonie, em Berlim, mas também em gravações nos estúdios da Columbia e sessões de rádio.
            Formações: George Coleman (sax tenor), Victor Feldman (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Frank Butler (bateria); Coleman, Carter, Herbie Hancock (piano) e Tony Williams (bateria); Hancock, Carter, Williams e Sam Rivers (sax tenor); Hancock, Carter, Williams e Wayne Shorter (sax tenor).
            O material aqui incluído, além dos ocasionais “takes” inéditos, está disperso pela discografia oficial do trompetista durante este período: “Seven Steps to Heaven”, “Quiet Nights”, “Miles Davis in Europe”, “My Funny Valentine”, “Four & More”, “Miles in Tokyo”, “Miles in Berlin”, “Directions” e “Miles Davis – Heard ‘Round the World”.
            Historicamente os anos de 1963 e 1964 correspondem a um período de transição, como muitos outros na carreira do músico. “Kind of Blue” já ficara para trás quatro anos. “E. S. P.” e “Miles Smiles” apareceriam, respetivamente, em 1965 e 1966.
            Miles era já nesta altura uma estrela que vestia roupa de marca e guiava um Ferrari. Mas era também vítima de maleitas que o atormentavam e, por vezes, impediam de tocar com maior regularidade. A uma personalidade musical inquieta juntava-se uma saúde frágil. Como alguém escreveu, o modo como tocava trompete foi um “flirt” com a morte. Não vamos tão longe, como Jean Wagner, que associou a essência mais profunda do “cool” a esta mesma morte. Preferimos notar a angústia existencial. Por detrás de cada nota que Miles emitia no trompete erguia-se o seu duplo, uma sombra de silêncio. Miles tocou sempre debruçado sobre o silêncio, não como espaço de apaziguamento, mas um silêncio tenso. Por vezes ameaçador. Mesmo quando, já em plena fase elétrica e do “jazz rock”, os sons que o rodeavam eram atordoadores, o trompetista se voltou sobre si mesmo, para uma caverna imensa que ia escavando cada vez mais fundo.
            George Coleman fora recomendado a Miles por John Coltrane. Melodista nato e bom improvisador, faltava no entanto a este saxofonista a energia e espiritualidade de Coltrane. Coleman abandonou o grupo precisamente quando a música arrancou de novo para um período de maior experimentação. Depois da interessante experiência com Sam Rivers, Wayne Shorter seria o homem indicado para ocupar o lugar de tenorista. Carter viera por sugestão de Paul Chambers, baixista de “Kind of Blue”, e Frank Butler foi rapidamente substituído pelo então jovem prodígio da bateria Tony Williams, com especial autorização de Jackie McLean. Victor Feldman, pianista e multinstrumentista que Miles citara como exemplo do bom jazz que se fazia fora dos Estados Unidos (o trompetista teve sempre um fraquinho pelos músicos ingleses), explorou bem o terreno antes da entrada em cena de Herbie Hancock, contribuindo, inclusive, com dois originais para o reportório do grupo, “Joshua” e “Seven steps to heaven”.
            Uma das mais interessantes verificações que a presente antologia proporciona, para além das comparações de ordem técnica que é possível estabelecer entre as várias interpretações de um mesmo tema, é a mudança radical que Sam Rivers provocou com a sua entrada para o grupo. Coleman, como já dissemos, era um perfeccionista avesso a riscos. Para ele arriscar e quebrar barreiras implicava poder cometer erros e isso era algo que não fazia parte do seu vocabulário (Tony Williams chegou a irritar-se com tamanho perfeccionismo…).
            Sam Rivers, pelo contrário, era um iconoclasta, mais próximo do “rhythm ‘n’ blues” do que dos floreados do “bop”. Compare-se a fluência elegante de Coleman com as abstrações harmónicas e os timbres guturais de Rivers num tema como “So what” (de “Kind of Blue”) e vejam-se as abissais diferenças. Para Carter, Hancock e Williams era a oportunidade de avançar e experimentar. Para Miles quase motivo para se divertir. Depois da experiência Sam Rivers, Wayne Shorter, mais “boppish”, devolveu ao quinteto um “swing” mais tradicional, aplanando os abismos que Rivers abrira. O mesmo “So what” perde violência, mas ganha coesão. O quinteto renova-se em unidade e sentido e a secção rítmica funciona como uma máquina que Rivers, mesmo involuntariamente, fazia dispersar. Hancock e Miles, na sua veia mais lírica, fazem dupla mágica na introdução de “Stella by starlight”.
            À laia de síntese, é forçoso reconhecer que 1963 e 1964 não terão sido anos “vintage” na carreira do trompetista, apanhando-o numa fase revisionista de temas antigos do seu reportório. E, se as inovações escasseiam desta vez, é preciso dizer que, no caso do trompetista, estas começaram sempre por ser interiores. Miles Davis cumpria-se a si próprio enquanto não (re)começava tudo de início. Tudo, não – era apenas a sua dor que encontrava novas formas de expressão.

Miles Davis
The Complete Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964
Columbia, distri. Sony Music
7 | 10

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