JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 20 NOVEMBRO 2004
Miles Davis dissecado ao pormenor em sete discos que abrangem dois anos de carreira,
1963 e 1964. Kind of Blue já ficara
para trás. E.S.P. e Miles Smiles vinham a caminho.
Miles
de passagem
Facto número
um: o objeto. Mais uma antologia da Columbia correspondente a um período
específico do músico, embalada de forma apelativa num grosso volume com a capa
forrada a tecido e lombada em metal. Número de discos: sete. Convenientemente limpos
de impurezas e remasterizados. Informação adjacente: profusa. Em forma de
anotação que é quase um livro, com as suas 92 páginas divididas em cinco
capítulos, “Introduction”, “Track listing”, “Discography”, “The complete
1963-64 Columbia recordings” e “Credits”. Tudo contado ao pormenor, faixa a
faixa, segundo a segundo, para que fiquemos a saber que na faixa “x”, ao segundo
“y”, ao meio-tom tocado pelo trompetista correspondeu uma inclinação do bocal
do saxofonista de 2,5 graus, com emissão de um sol e um fá sustenido. Título da
obra: “Seven Steps — The Complete Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964”.
Músico principal – como é que
adivinharam? –, Miles Davis. Captado em pormenor e visto à lupa nos anos de
1963 e 1964, maioritariamente ao vivo em locais como o Festival Mondial de Jazz
Antibes, em França, o Philharmonic Hall de Nova Iorque, o Kohseinenkin Hall de
Tóquio, Japão, e o Berlin Philharmonie, em Berlim, mas também em gravações nos
estúdios da Columbia e sessões de rádio.
Formações: George Coleman (sax
tenor), Victor Feldman (piano), Ron Carter (contrabaixo) e Frank Butler (bateria);
Coleman, Carter, Herbie Hancock (piano) e Tony Williams (bateria); Hancock,
Carter, Williams e Sam Rivers (sax tenor); Hancock, Carter, Williams e Wayne
Shorter (sax tenor).
O material aqui incluído, além dos
ocasionais “takes” inéditos, está disperso pela discografia oficial do
trompetista durante este período: “Seven Steps to Heaven”, “Quiet Nights”,
“Miles Davis in Europe”, “My Funny Valentine”, “Four & More”, “Miles in
Tokyo”, “Miles in Berlin”, “Directions” e “Miles Davis – Heard ‘Round the
World”.
Historicamente os anos de 1963 e
1964 correspondem a um período de transição, como muitos outros na carreira do
músico. “Kind of Blue” já ficara para trás quatro anos. “E. S. P.” e “Miles Smiles”
apareceriam, respetivamente, em 1965 e 1966.
Miles era já nesta altura uma
estrela que vestia roupa de marca e guiava um Ferrari. Mas era também vítima de
maleitas que o atormentavam e, por vezes, impediam de tocar com maior
regularidade. A uma personalidade musical inquieta juntava-se uma saúde frágil.
Como alguém escreveu, o modo como tocava trompete foi um “flirt” com a morte.
Não vamos tão longe, como Jean Wagner, que associou a essência mais profunda do
“cool” a esta mesma morte. Preferimos notar a angústia existencial. Por detrás
de cada nota que Miles emitia no trompete erguia-se o seu duplo, uma sombra de
silêncio. Miles tocou sempre debruçado sobre o silêncio, não como espaço de
apaziguamento, mas um silêncio tenso. Por vezes ameaçador. Mesmo quando, já em
plena fase elétrica e do “jazz rock”, os sons que o rodeavam eram atordoadores,
o trompetista se voltou sobre si mesmo, para uma caverna imensa que ia
escavando cada vez mais fundo.
George Coleman fora recomendado a
Miles por John Coltrane. Melodista nato e bom improvisador, faltava no entanto
a este saxofonista a energia e espiritualidade de Coltrane. Coleman abandonou o
grupo precisamente quando a música arrancou de novo para um período de maior
experimentação. Depois da interessante experiência com Sam Rivers, Wayne
Shorter seria o homem indicado para ocupar o lugar de tenorista. Carter viera
por sugestão de Paul Chambers, baixista de “Kind of Blue”, e Frank Butler foi
rapidamente substituído pelo então jovem prodígio da bateria Tony Williams, com
especial autorização de Jackie McLean. Victor Feldman, pianista e multinstrumentista
que Miles citara como exemplo do bom jazz que se fazia fora dos Estados Unidos
(o trompetista teve sempre um fraquinho pelos músicos ingleses), explorou bem o
terreno antes da entrada em cena de Herbie Hancock, contribuindo, inclusive,
com dois originais para o reportório do grupo, “Joshua” e “Seven steps to heaven”.
Uma das mais interessantes verificações
que a presente antologia proporciona, para além das comparações de ordem
técnica que é possível estabelecer entre as várias interpretações de um mesmo
tema, é a mudança radical que Sam Rivers provocou com a sua entrada para o
grupo. Coleman, como já dissemos, era um perfeccionista avesso a riscos. Para
ele arriscar e quebrar barreiras implicava poder cometer erros e isso era algo que
não fazia parte do seu vocabulário (Tony Williams chegou a irritar-se com
tamanho perfeccionismo…).
Sam Rivers, pelo contrário, era um
iconoclasta, mais próximo do “rhythm ‘n’ blues” do que dos floreados do “bop”.
Compare-se a fluência elegante de Coleman com as abstrações harmónicas e os
timbres guturais de Rivers num tema como “So what” (de “Kind of Blue”) e vejam-se
as abissais diferenças. Para Carter, Hancock e Williams era a oportunidade de
avançar e experimentar. Para Miles quase motivo para se divertir. Depois da experiência
Sam Rivers, Wayne Shorter, mais “boppish”, devolveu ao quinteto um “swing” mais
tradicional, aplanando os abismos que Rivers abrira. O mesmo “So what” perde
violência, mas ganha coesão. O quinteto renova-se em unidade e sentido e a
secção rítmica funciona como uma máquina que Rivers, mesmo involuntariamente, fazia
dispersar. Hancock e Miles, na sua veia mais lírica, fazem dupla mágica na
introdução de “Stella by starlight”.
À laia de síntese, é forçoso reconhecer
que 1963 e 1964 não terão sido anos “vintage” na carreira do trompetista, apanhando-o
numa fase revisionista de temas antigos do seu reportório. E, se as inovações
escasseiam desta vez, é preciso dizer que, no caso do trompetista, estas começaram
sempre por ser interiores. Miles Davis cumpria-se a si próprio enquanto não
(re)começava tudo de início. Tudo, não – era apenas a sua dor que encontrava
novas formas de expressão.
Miles Davis
The Complete
Columbia Recordings of Miles Davis, 1963-1964
Columbia, distri. Sony Music
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