Y 24|OUTUBRO|2004
música|fado
Aconteceu é uma mais madura etapa. Mas o grande Fado
ainda está à espera.
ana moura
à porta, à espera
ANA MOURA
Aconteceu
2xCD
ed. e distri. Universal
6|10
Ana
Moura é mais uma das novas fadistas que vieram dar um rosto e uma voz novos ao
fado. Ou melhor, mais do que apenas engrossar o lote, ela é “uma”. Uma voz
diferente das outras, quente e sensual (alguns furos mais grave que a da
generalidade das suas colegas) que agora se apresenta no seu segundo álbum, “Aconteceu”,
depois de no ano passado ter gravado “Guarda-me a Vida na Mão”. Alguém com influência
no além deve tê-la ouvido e atendido ao seu pedido. “Aconteceu” tem uma mão com
vários trunfos, a começar pela voz, mais trabalhada e maturada, e a terminar
num reportório bem escolhido e conduzido. O CD é duplo e divide-se em dois
discos, o primeiro, “À porta do fado”, preenchido por fado musicado, o segundo,
“Dentro de casa”, dedicado ao fado tradicional. Ana Moura navega livremente no primeiro,
sobre poemas de Sophia de Mello Breyner (“Através do teu coração”) ou Natália
Correia (“Creio”) e música de Tózé Brito, Jorge Fernando, João Pedro Pais ou do
“jazzman” italiano Arrigo Cappelletti, mas o seu coração dispara com o segundo,
num fado da meia-noite, num fado corrido ou num fado Acácio.
Ana Moura não é – não quer ser? –
fadista de grandes arrebatamentos ou dolorosos extremos. A sua voz e o seu
canto preferem o embalo doce, o sussurro ao ouvido, os tempos médios que
hipnotizam e fazem suavemente sobressair o sentido das palavras. (… a
poesia/Não é só caligrafia/São coisas do sentimento”) canta em “Ao poeta
perguntei”, de Alberto Janes. E, no mesmo poema: “Como a expressão e os
jeitos/Que pr’a cantar/Se vão dando à voz”. Percebe-se que é uma intuitiva que
se entrega à emoção e ao sentimento, sem resistências, e por isso com a
naturalidade e a fluência de quem canta como respira. Ou com o rasto exótico
que ficou dos tempos em que cantava música pop com o grupo Sexto Sentido, a
infiltrar-se por entre as sílabas e as interjeições de “Amor de uma noite”,
“Creio” e “Através do meu coração”.
No segundo CD o sentido interior
muda e escurece. “Hoje tudo me entristece” mostra uma fadista a trabalhar a
tragédia, mas ainda a rondar do lado de fora da dor, embora já com a imaginação
e a cor do sangue. Fadista e não cantora de fados, a separação e opção são
dela. “Passos na rua” dá a ver ornamentações de ave, a prometer voos mais
altos. Há ainda “Dentro da tempestade” onde “há restos de verdade/A que a dor
tirou sentido”, com a guitarra a golpear uma voz que se despede. “Aconteceu”
mostra uma fadista a caminho. O que, para já, aconteceu, chega para nos
acariciar e fazer acreditar num futuro promissor. Falta a solidão que torna
único o fado de quem o canta.
fado ou fadistas? Ana Moura nasceu
em Santarém, há 24 anos. Ribatejana, como Cristina Branco. Também como Cristina
Branco, a Holanda, onde se encontra em digressão, é ponto importante do seu
roteiro de viagem. A transição do poprock para o fado foi rápida e passou por
um convite de Maria da Fé para cantar no “Senhor Vinho”. Nessa altura o seu
reportório e experiência eram curtos mas os amigos (Jorge Fernando, Manuel
Martins, a própria Maria da Fé) ajudaram. Depois de em “Guarda-me a Vida na
Mão” ter contado com uma composição de Pedro Ayres de Magalhães e a guitarra de
Pedro Jóia, “Acontecendo” impôs-lhe a necessidade de gravar um CD inteiro só de
fados tradicionais. Os fados musicados estão no outro disco porque algumas
pessoas, já lhos tinham oferecido. Acabou por sair um disco duplo.
“Em estúdio senti que era difícil
escolher. Achámos engraçado separar os dois géneros”. Uma das faixas de “À
porta do fado”, “Através do meu coração”, leva um violoncelo, experiência
instrumental única fora das normas. “Então no fado tradicional, nem sequer com
contrabaixo toco, é só guitarra portuguesa, guitarra e baixo”.
“Novo fado” é expressão que para Ana
Moura não tem razão de existir. Novos fadistas, sim. “Não faz sentido falar em
‘novo fado’. Assim como aconteceu com a geração da Amália, quando se dizia que
ela também cantava novo fado, por causa dos poetas que cantou, também neste
momento há letras de poetas que são intemporais, mas há outras não podem ser
cantadas por esta geração. O que de novo tentamos trazer ao fado é a
interpretação e uma ou outra novidade ao nível dos arranjos musicais”.
Insiste em que um fado apenas faz
sentido e pode ser cantado com o coração quando a letra é totalmente
interiorizada. “Há coisas que eu sei que ainda não sinto”, reconhece com a
sinceridade de quem assume que só agora a estrada se começou a revelar, “pode
ser que daqui a uns anos…”. Os versos de Natália Correia, em “Creio” – “é como
se fosse uma oração” – esses adora-os e canta-os como se fossem seus: “Creio em
amores lunares/Com piano ao fundo/Creio nas lendas/Nas fadas, nos atlantes”.
Não é oração fácil de rezar. E se ontem foi na pop que acreditava, hoje o fado
apoderou-se de todo o seu espaço e roubou-lhe todo o seu tempo.
“O fado passou a fazer parte da
minha vida”. Demorou quatro anos até essa assunção tomar conta dela a cem por
cento. “Mudou por completo a minha vida, eu estava a estudar durante o dia,
aguentei a escola durante um ano, entretanto passei a viver mais durante a noite
do que de dia e abandonei os estudos. A minha vida passou a ser literalmente
fado”.
Estranha forma de vida, dirão
alguns. Numa casa de fados ou numa sala de espetáculos. “É diferente, nas casas
de fado há a proximidade das pessoas, é uma coisa muito íntima, de improviso,
enquanto que nas salas é um espetáculo, com um alinhamento mais ou menos feito”.
“Mais ou menos” porque o humor muda e Ana Moura só canta “o que lhe apetece”.
“Se me apetecer cantar outra coisa, eu canto, altero”. Em qualquer dos casos,
“o fado acontece”. Como uma coincidência. Aliás, a sua vida tem sido assim, a
vida e a carreira, “feitas de coincidências”.
Como coincidentes são a voz com a
imagem glamorosa do seu corpo como aparece retratado na capa e nas imagens de
promoção, onde veste um decotado vestido vermelho sobre fundo verde de
vegetação escura. Poderia passar por uma capa dos Roxy Music se Ana não
explicasse o seu fundamento. “Gosto muito do vermelho. O vermelho e preto são
as minhas cores preferidas. O sítio das fotos foi o palácio da Pena em Sintra,
lugar que adoro”. Lugar ideal para se cantar o “astral mais puro”, dito nos
versos de Natália Correia. O que mais irá acontecer a Ana Moura, só o fado o
dirá.
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