JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 23 OUTUBRO 2004
Na música livre, improvisada, vale tudo ou valem apenas os melhores? A
liberdade não se diz, experimenta-se e arrisca-se. Num esgar de sofrimento ou
numa saudável gargalhada.
Alterações
ao regulamento
Haverá uma diferença
real entre o “free jazz” e a “free music”, ou são designações paralelas para
uma idêntica forma de expressar a liberdade? “Free jazz” implica romper a
tradição, é uma “oposição a”, o direito ao contraditório. “Free music” pode ser
jazz e muito mais. Música de fusão, no sentido mais universal de incorporar
várias linguagens musicais num corpo unitário. Porém, não uma fusão “exterior”,
de estilos, géneros ou fórmulas, mas um enclave “interior”, cadinho espiritual onde
o músico, e só ele, se entrega à captação, síntese e manifestação de realidades
musicais díspares. Um grande executante de “free music” é aquele que,
tecnicamente apto, possui a capacidade de escuta transcendente. Ele é a antena que
recebe os sinais dos outros músicos, se for caso disso, mas também do próprio
fluxo cósmico da música. E entrega-se a este fluxo, domando-o com a sua própria
voz. Na “free music” cabe o que de algures vier: interferências clássicas, uma valsa,
etnicidades primordiais, o rock, a arquitetura abstrata, o grito, a gargalhada,
o choro. O melhor exemplo de “free music” que alguma vez presenciámos ao vivo
aconteceu na primeira atuação de um coletivo liderado por Michel Portal, se não
estamos em erro, nos anos 80, num pequeno cine-teatro em Sintra. O concerto
começou com Portal a arrastar cadeiras pelo chão e terminou na explosão de uma supernova.
E era música esse arrastar. E Portal literalmente chorou ao escutar um solo de um
seu companheiro. E o sagrado, mas também a loucura, aconteceram, levando a
música para uma lógica de sintonia absoluta entre a eternidade e o instante, o
silêncio e o fogo, a escuta e o ato interpretativo. Tudo foi improvisado e nada
foi aleatório. Tinha que ser assim, porque nas mais altas esferas é a música
que toca o músico e não o contrário.
Ao nível da receção, poderíamos ir
mais longe e assertar na hipótese de que é absurdo e sempre limitativo gravar em
disco um acontecimento musical ao vivo desta índole, ainda mais a improvisação,
irrepetível e irreproduzível. A editora FMP (Free Music Productions) de Berlim
confronta-se com esta questão, mas ultrapassa-a afirmando a necessidade do
testemunho e da descoberta. As suas “Unheard music series” recuperam mundos e
fundos dos anos 60, 70 e 80, quando o “free jazz” quis formatar a liberdade
alcançada numa ordem superior. Não já o caos, mas o tal espaço de unidade (mas
também de manobra) transcendental onde a grande música se revela.
O alemão Peter Brötzmann é
praticante desta religião. Em “Berlin Djungle”, gravado em 1984, no Festival de
Jazz de Berlim, reuniu num Clarinet Project uma improvável constelação de
estrelas. Nos clarinetes – seis – estavam, além do próprio Brötzmann, Tony Coe,
Louis Sclavis, John Zorn, Ernst-Ludwig Petrowski e J. D. Parran. Dois
trombones: Hannes Bauer e Alan Tomlinson, e um trompete, Toshinori Kondo. Mais
a secção rítmica de Cecil Taylor: William Parker, no contrabaixo, Tony Oxley,
na bateria. Uma única composição, “What a day”. Sobre, dentro, sob e fora dela,
um amplo encontro/desencontro onde os momentos solísticos, mais melodiosos,
desafiam a cacofonia do “ensemble”. Há uma procura de sobrevoo, mas a
insistência no grito pressupõe angústia e alguma impotência em encontrar o plano
superior. É de uma selva que realmente se trata. Já perto do final, Parker
encontra o cântico dos cânticos.
Em 2000, a FMP editou “Nipples”, uma
gravação de estúdio de 1969, com o sexteto de Brötzmann (sax tenor), Evan
Parker (saxes tenor e soprano), Derek Bailey (guitarra), Fred Van Hove (piano),
Buschi Niebergall (contrabaixo) e Han Bennink (bateria). Dos arquivos da
editora foi agora recuperado material adicional da mesma sessão, uma composição
do sexteto mais duas composições de um quarteto, sem Parker nem Bailey. Em
“More nipples”, o tema, Bailey impõe a sua geometria de estilhaços e Bennink é
o seu inspirado parceiro, percutindo “metal on metal” ao lado dos harpejos de
Van Hove. Brötzmann assina um solo explosivo, ponto de fuga incendiário na
contracorrente da implosão recorrente no resto da faixa. Nos outros dois temas,
com Parker e Bailey ausentes, Fred Van Hove abre claustros imensos, entrando em
diálogo dialético com os delírios do saxofonista. O mesmo Van Hove entra “na zona”,
em “Fat man walks”, num espiritual que obriga o próprio Brötzmann a depurar as
chagas até as transformar em oração. Sofrida até às últimas consequências.
É ainda Brötzmann que dá a cara em
“Brötzmann, Van Hove, Bennink” (1973), num trio, habitual, com os outros dois.
Aqui a “free music” faz jus à fusão de que falávamos no início. Fred Van Hove
cria na celesta ambiências de “nursery rhyme”. Brötzmann imita um apito de
chamar pássaros (como Zorn costumava fazer…) e solta onomatopeias e Van Hove
toca… rock‘n’roll sobre gargarejos de gigante. Na “bricolage” percussiva,
Bennink é, como de costume, brilhante. Desta vez, são miniaturas onde tudo pode
acontecer, desde lições de piano a batuques e aventuras no espaço. O gozo de
quem toca é imenso. O de quem ouve, também.
Mas em 1960 a tradição ainda não era
letra morta. Antes de se dedicar ao teatro, George Gruntz (piano e líder de
orquestra suíço) participou em 1960 na banda sonora de um estranho projeto,
“Mental Cruelty”, filme do seu compatriota Hannes Schmidhauser. Schmidhauser,
ex-jogador de futebol, farto de desempenhar papéis de camponês em fitas de
segunda, resolveu realizar ele próprio o seu filme, ao estilo “nouvelle vague”.
Um casal apaixona-se, casa e divorcia-se. Divorciam-se alegando o quê? “Mental
Cruelty”, precisamente. A música é fina e swingante, “bluesy” e dentro dos
cânones da nova vaga posta em som, em tons ligeiros, mas com a inestimável
participação do interessantíssimo saxofonista francês Barney Willen. Kenny
Clarke mostra-se bom rapazinho na bateria e Gruntz, mais do que um pianista
boppish, é aqui um pianista poppish. A música está longe de ser cruel.
Já o mesmo não se poderá dizer da do
pianista/clarinetista/trompetista holandês Kees Hazevoet e do seu quarteto,
liderança partilhada com o saxofonista alto Kris Wanders. O baterista é o
sul-africano Louis Moholo. Editado originalmente em pequena quantidade em capa
feita à mão, “Pleasure” apresenta-se em estado de combustão permanente, mas de
uma forma mais desorganizada (e desorganicizada, apesar de o holandês ter
abandonado a música para se dedicar à zoologia...) e superficial do que a de
Brötzmann, por exemplo. Aposta-se em criar e aliviar tensões, sem que de tal
dinâmica resulte uma chave que abra outras dimensões. Música física, do corpo,
suor e músculo, ganharia em olhar para cima. Assim, o horizonte é horizontal.
Bem mais interessante é “Open”
(1977) do trio Gerd Dudek (flauta, shenai, saxes soprano e tenor), Buschi Niebergall
(contrabaixo) e Edward Vesala (bateria). Dudek tocou com Manfred Schoof nos
anos 60, Niebergall, já falecido, alinhou ao lado de Alexander Von
Schlippenbach e Brötzmann e Vesala andava pelas avenidas do “free” antes de se
tornar “atmosférico” na ECM. “Open”, gravado ao vivo no Workshop Freie Musik,
da Academia das Artes em Berlim, é saxofone para a frente, em longos e ditirâmbicos
solos, nos quais Dudek dá ênfase à dinâmica e à cor, incorporando no discurso uma
certa veia ascética. “Free” sem rodriguinhos e com ideias bem alicerçadas no
que está para trás.
Não há “para trás” em “Voila Enough”,
gravações de 1979 a 1981 de um quarteto cuja lista de nomes dá desde logo indicações
do que se poderá esperar. São ingleses, excêntricos e davam pelo nome de Alterations.
Steve Beresford, Terry Day, Peter Cusack e David Toop. Tocam guitarras, feedback,
“possible clarinet”, balões, bandolim, sintetizador de bolso, “palheta em
chávena”, euphonium, caixa de música, órgão de brinquedo automático, sirene,
caixa de galinha, gira-discos de brinquedo, microfones, apitos para chamar
cães, trompa animal, violino africano, etc., a par de artefactos jazzísticos mais
convencionais. Surpresa permanente. Como se, de súbito, fôssemos atirados para
o interior de uma oficina de reparações dirigida por lunáticos. Vale tudo.
Improvisa-se com tudo. A música é um jogo de obliterações e gestos surpreendentes
que procuram arrancar dos objetos a sua essência musical. Os Alterations são
equivalentes dos Art Ensemble of Chicago, mas o seu humor é tipicamente
britânico, na pose “nonsense”, na piada lançada no momento mais sério. Poesia
do ruído, citações “ragtime”, uma atitude “punk”. Mais tarde, em 1985, atolados
em novas tecnologias, os Alterations fecharam as portas, quando se esgotou, dizem,
a sua veia humorística. Está tudo dito. Mas muito fica para se ouvir.
Brötzmann Clarinet
Project
Berlin Djungle
7 | 10
The Peter Brötzmann
Sextet/Quartet
More Nipples
7 | 10
Brötzmann, Van Hove,
Bennink
Brötzmann, Van
Hove, Bennink
8 | 10
George Gruntz
Mental Cruelty
7 | 10
Kees Hazevoet Quartet
Pleasure
6 | 10
Dudek, Niebergall,
Vesala
Open
7 | 10
Alterations
Voila Enough!
8 | 10
Todos FMP/Unheard Music Series, distri. Ananana
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