02/06/2020

Espíritos e estrelas [Jazz]


JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 16 OUTUBRO 2004

Há estrelas do espírito, da “FC” e do espectáculo. Três saxofonistas são quem brilha com maior fulgor.

Espíritos e estrelas

“Não é uma batalha nem uma competição, é sobre a alegria de tocarmos juntos”, diz Brecker, um dos três espíritos em ação. Os estilos são diferentes mas amigos, encaixando-se entre si de forma brilhante. Brecker, no tenor e kaval (flauta de madeira búlgara), ouve-se no canal direito. Liebman, no tenor e soprano e flauta indiana, sai pelo centro. À esquerda toca Lovano, no tenor, clarinete alto, tarogato (instrumento de sopro húngaro) e fl auta africana. Na secção rítmica estão Phil Markowitz (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Billy Hart (bateria). Um sétimo espírito paira sobre o coletivo: John Coltrane. De Trane são interpretados “India” e “Peace on Earth”, sendo o primeiro destes temas fulcral na economia deste “Gathering of Spirits”, com a sua entrada exótica de flautas e um espetacular “duelo” harmónico entre os saxofonistas, Lovano evoca as conversas de Coltrane com Pharoah Sanders levadas a cabo em “Om”. É como uma construção de cores e luzes. Markowitz pinta uma tela de piano fosforescente em “Tricycle”, composição de Liebman. Hart, considerado voz do drama, sabe criar tensão e estruturas capazes de levar os saxofonistas a registos excitantes. Na arte combinatória deste “Summit” de sensibilidades e forças que se equilibram e encontram no máximo múltiplo comum (será ainda Coltrane?) da criatividade, a soma é um paraíso e uma selva. Estrelado e luxuriante. Um grande disco de grande jazz.
            Quem gosta muito de viajar entre as estrelas é Chick Corea, teclista que nunca escondeu o gosto pelos universos do fantástico e da fantasia. Agora, ele e a sua Elektric Band apontaram a nave para os confins da galáxia, servindo-se para isso das instruções de “To the Stars”, uma novela de L. Ron Hubbard. No livro são abordadas questões da física da relatividade de Einstein, como a dilatação do tempo. “To the Stars”, o disco, viaja através do jazz rock e, apesar de alguns clichés a que é difícil escapar num género estafado como este, é um dos mais conseguidos álbuns da Elektric Band. Claro que pode não ser evidente a relação entre viagens pelo espaço à velocidade da luz e a música cubana, como acontece em “Mistress Luck – the Party”, mas o que pode parecer absurdo acaba por soar divertido. Há momentos, porém, de pura abstração eletrónica, muito “space rock”, quase “Kosmisch muzik”, ou muzak cósmico, como os vários segmentos de “Port view”. “The long passage”, por exemplo, tem tudo o que o típico jazz-rock costuma exibir: fulgor “flashy”, batida forte, energia elétrica e floreados de estilo. Num ou noutro momento, por entre as frases feitas e os rodriguinhos técnicos, até passa algum jazz menos condicionado, como em “Jocelyn – The commander”. Seja como for, este ensaio de música temperada por ficção científica cairá direitinho no goto dos que se pelam pelos Weather Report mais comerciais ou por anteriores trabalhos de Corea nesta área, como “Hymn of the Seventh Galaxy”.
            Mas o piano vinga-se nas mãos de um dos seus mestres, McCoy Tyner, figura histórica. Curiosamente, vemo-lo igualmente às voltas com a música cubana, em “Angelina”, um dos temas do seu novo disco, “Illuminations”. De Tyner, já se sabe, tira-se sempre algo de bom, neste caso, mais que não seja, a judiciosa escolha dos músicos que o acompanham, Gary Bartz (saxofones), Terence Blanchard (trompete), Christian McBride (contrabaixo) e Lewis Nash (bateria). Este não será o Tyner contemplativo e sideral que tocou com Coltrane, mas o brilho fulgurante de uma mão direita que não cessa de ornamentar mantém-se. É jazz bem dentro da tradição, mesmo que Bartz o tente empurrar para fora dos limites. Nada de novo por estas paragens senão a confirmação de um estatuto há muito adquirido...
            Combinação inusitada é aquela que nos é oferecida por Benny Green e Russell Malone, respetivamente no piano e na guitarra. Jim Hall e Bill Evans poderiam servir de modelo. Mas não. O suporte começa por ser o “blues”, mas o tom geral é de descontração, como um “divertissement” a dois, simples e feliz. Green e Malone iniciaram a sua cumplicidade no discipulado de Ray Brown. Green tocou com Brown, Art Blakey e Diana Krall. É um pianista leve e ágil, sem angústia. Malone, antigo companheiro de Jimmy Smith e membro da orquestra de Harry Connick Jr., move-se num quadrado compreendido por Grant Green, Kenny Burrell, Django Reinhardt e Pat Martino. Dos diálogos entre ambos ressalta o prazer do salto, da nota picotada, de um balanço ligeiramente “retro” onde a ligeireza de uma canção como “You are the sunshine of my life” contracena com a distante melancolia de “Flowers for Emmett Lill”. Bom astral.
            Não se lhes peça, porém, o que se percebe, logo às primeiras notas, ter o trio Geri Allen (piano), Dave Holland (contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria), vindos os três de uma participação no álbum “Feed the Fire”, de Betty Carter: paixão. Inspirada por Herbie Hancock, Geri mostra-se inventiva, progressiva e impulsiva no forte encadeado harmónico dos temas. O ataque é soberbo, por vezes violento e, aparentemente, pouco feminino, em que as notas são percutidas sem piedade, como flores esmagadas num desejo de entrega. Porque “The Life of a Song” é, nas palavras da pianista, “Give and take and give”. Ouça-se “Lush life” e a sua investida perante a vida, as teclas agudas marteladas até se lhes extrair a última gota de sangue e sumo. “In appreciation: A celebration song”, pelo contrário, tem o toque caloroso da “soul” da Tamla Motown e a devoção de um “gospel”. Dave Holland e DeJohnette são os parceiros a grande altura, a cidade de múltiplas avenidas ao longo das quais o piano inventa os seus “blues” e os seus vermelhos. Jazz a correr sempre em frente, sem contemplações. Nem medo de olhar e parar para se enternecer num “Inconditional love”.
            Eletrónico, urbano, diluviano. Assim se traça a introdução da mais recente aventura de um saxofonista querido do “Show business”, Courtney Pine – “Devotion”. Promete ser interessante. Mas depois entra na fogueira do “rhythm ‘n’ blues” e dá mostras de querer viajar por muitos sítios. É fusão, é confusão. De “R&B” com reggae, no título-tema, de variedades com canção “soul”, em “Bless the weather”, de “hip hop” com ritmos das Caraíbas, em “Interlude: The saxophone song”, de pop com música indiana em “Translusance”. Mas também há funk e África em “Osibisa”, mais cheiro a “R&B” comercial e, acima de tudo, há o desejo de ir a todas. Como disco de jazz, é para esquecer. Como entretenimento, pode funcionar. Se Pine continua a ser um bom saxofonista? Nem dá para perceber.

Michael Brecker, Dave Liebman, Joe Lovano
Saxophone Summit: Gathering of Spirits
Telarc
8 | 10

Chick Corea Elektric Band
To the Stars
Stretch
6 | 10

McCoy Tyner
Illuminations
Telarc
6 | 10

Benny Green & Russell Malone
Bluebird
Telarc
6 | 10

Geri Allen, Dave Holland, Jack DeJohnette
The Life of a Song
Telarc
7 | 10

Courtney Pine
Devotion
Telarc
5 | 10

Todos distri. Andante

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