JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
16 OUTUBRO 2004
Há estrelas do espírito, da “FC” e do espectáculo. Três saxofonistas são
quem brilha com maior fulgor.
Espíritos
e estrelas
“Não é uma
batalha nem uma competição, é sobre a alegria de tocarmos juntos”, diz Brecker,
um dos três espíritos em ação. Os estilos são diferentes mas amigos,
encaixando-se entre si de forma brilhante. Brecker, no tenor e kaval (flauta de
madeira búlgara), ouve-se no canal direito. Liebman, no tenor e soprano e flauta
indiana, sai pelo centro. À esquerda toca Lovano, no tenor, clarinete alto,
tarogato (instrumento de sopro húngaro) e fl auta africana. Na secção rítmica estão
Phil Markowitz (piano), Cecil McBee (contrabaixo) e Billy Hart (bateria). Um
sétimo espírito paira sobre o coletivo: John Coltrane. De Trane são
interpretados “India” e “Peace on Earth”, sendo o primeiro destes temas fulcral
na economia deste “Gathering of Spirits”, com a sua entrada exótica de flautas
e um espetacular “duelo” harmónico entre os saxofonistas, Lovano evoca as
conversas de Coltrane com Pharoah Sanders levadas a cabo em “Om”. É como uma
construção de cores e luzes. Markowitz pinta uma tela de piano fosforescente em
“Tricycle”, composição de Liebman. Hart, considerado voz do drama, sabe criar
tensão e estruturas capazes de levar os saxofonistas a registos excitantes. Na
arte combinatória deste “Summit” de sensibilidades e forças que se equilibram e
encontram no máximo múltiplo comum (será ainda Coltrane?) da criatividade, a
soma é um paraíso e uma selva. Estrelado e luxuriante. Um grande disco de grande
jazz.
Quem gosta muito de viajar entre as
estrelas é Chick Corea, teclista que nunca escondeu o gosto pelos universos do
fantástico e da fantasia. Agora, ele e a sua Elektric Band apontaram a nave
para os confins da galáxia, servindo-se para isso das instruções de “To the
Stars”, uma novela de L. Ron Hubbard. No livro são abordadas questões da física
da relatividade de Einstein, como a dilatação do tempo. “To the Stars”, o
disco, viaja através do jazz rock e, apesar de alguns clichés a que é difícil
escapar num género estafado como este, é um dos mais conseguidos álbuns da
Elektric Band. Claro que pode não ser evidente a relação entre viagens pelo
espaço à velocidade da luz e a música cubana, como acontece em “Mistress Luck –
the Party”, mas o que pode parecer absurdo acaba por soar divertido. Há
momentos, porém, de pura abstração eletrónica, muito “space rock”, quase
“Kosmisch muzik”, ou muzak cósmico, como os vários segmentos de “Port view”.
“The long passage”, por exemplo, tem tudo o que o típico jazz-rock costuma
exibir: fulgor “flashy”, batida forte, energia elétrica e floreados de estilo.
Num ou noutro momento, por entre as frases feitas e os rodriguinhos técnicos, até
passa algum jazz menos condicionado, como em “Jocelyn – The commander”. Seja como
for, este ensaio de música temperada por ficção científica cairá direitinho no
goto dos que se pelam pelos Weather Report mais comerciais ou por anteriores
trabalhos de Corea nesta área, como “Hymn of the Seventh Galaxy”.
Mas o piano vinga-se nas mãos de um
dos seus mestres, McCoy Tyner, figura histórica. Curiosamente, vemo-lo
igualmente às voltas com a música cubana, em “Angelina”, um dos temas do seu
novo disco, “Illuminations”. De Tyner, já se sabe, tira-se sempre algo de bom,
neste caso, mais que não seja, a judiciosa escolha dos músicos que o
acompanham, Gary Bartz (saxofones), Terence Blanchard (trompete), Christian McBride
(contrabaixo) e Lewis Nash (bateria). Este não será o Tyner contemplativo e
sideral que tocou com Coltrane, mas o brilho fulgurante de uma mão direita que
não cessa de ornamentar mantém-se. É jazz bem dentro da tradição, mesmo que
Bartz o tente empurrar para fora dos limites. Nada de novo por estas paragens
senão a confirmação de um estatuto há muito adquirido...
Combinação inusitada é aquela que
nos é oferecida por Benny Green e Russell Malone, respetivamente no piano e na guitarra.
Jim Hall e Bill Evans poderiam servir de modelo. Mas não. O suporte começa por
ser o “blues”, mas o tom geral é de descontração, como um “divertissement” a
dois, simples e feliz. Green e Malone iniciaram a sua cumplicidade no
discipulado de Ray Brown. Green tocou com Brown, Art Blakey e Diana Krall. É um
pianista leve e ágil, sem angústia. Malone, antigo companheiro de Jimmy Smith e
membro da orquestra de Harry Connick Jr., move-se num quadrado compreendido por
Grant Green, Kenny Burrell, Django Reinhardt e Pat Martino. Dos diálogos entre
ambos ressalta o prazer do salto, da nota picotada, de um balanço ligeiramente “retro”
onde a ligeireza de uma canção como “You are the sunshine of my life”
contracena com a distante melancolia de “Flowers for Emmett Lill”. Bom astral.
Não se lhes peça, porém, o que se
percebe, logo às primeiras notas, ter o trio Geri Allen (piano), Dave Holland
(contrabaixo) e Jack DeJohnette (bateria), vindos os três de uma participação
no álbum “Feed the Fire”, de Betty Carter: paixão. Inspirada por Herbie
Hancock, Geri mostra-se inventiva, progressiva e impulsiva no forte encadeado
harmónico dos temas. O ataque é soberbo, por vezes violento e, aparentemente, pouco
feminino, em que as notas são percutidas sem piedade, como flores esmagadas num
desejo de entrega. Porque “The Life of a Song” é, nas palavras da pianista,
“Give and take and give”. Ouça-se “Lush life” e a sua investida perante a vida,
as teclas agudas marteladas até se lhes extrair a última gota de sangue e sumo.
“In appreciation: A celebration song”, pelo contrário, tem o toque caloroso da
“soul” da Tamla Motown e a devoção de um “gospel”. Dave Holland e DeJohnette são
os parceiros a grande altura, a cidade de múltiplas avenidas ao longo das quais
o piano inventa os seus “blues” e os seus vermelhos. Jazz a correr sempre em
frente, sem contemplações. Nem medo de olhar e parar para se enternecer num
“Inconditional love”.
Eletrónico, urbano, diluviano. Assim
se traça a introdução da mais recente aventura de um saxofonista querido do
“Show business”, Courtney Pine – “Devotion”. Promete ser interessante. Mas
depois entra na fogueira do “rhythm ‘n’ blues” e dá mostras de querer viajar
por muitos sítios. É fusão, é confusão. De “R&B” com reggae, no
título-tema, de variedades com canção “soul”, em “Bless the weather”, de “hip
hop” com ritmos das Caraíbas, em “Interlude: The saxophone song”, de pop com
música indiana em “Translusance”. Mas também há funk e África em “Osibisa”, mais
cheiro a “R&B” comercial e, acima de tudo, há o desejo de ir a todas. Como
disco de jazz, é para esquecer. Como entretenimento, pode funcionar. Se Pine continua
a ser um bom saxofonista? Nem dá para perceber.
Michael
Brecker, Dave Liebman, Joe Lovano
Saxophone
Summit: Gathering of Spirits
Telarc
8 | 10
Chick Corea Elektric
Band
To the Stars
Stretch
6 | 10
McCoy Tyner
Illuminations
Telarc
6 | 10
Benny Green &
Russell Malone
Bluebird
Telarc
6 | 10
Geri Allen,
Dave Holland, Jack DeJohnette
The Life of a
Song
Telarc
7 | 10
Courtney Pine
Devotion
Telarc
5 | 10
Todos distri. Andante
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