TERÇA-FEIRA,
1 MAIO 1990 cultura
Sérgio Godinho canta aos amores e
desamores
Sérgio Godinho,
“escritor de canções”, iniciou na sexta-feira à noite, no Instituto
Franco-Português, uma série de espetáculos que continuará até 19 de Maio.
Excelente oportunidade para escutar, num ambiente diferente do habitual, as
canções do trovador dos nossos desamores.
Sala cheia e uma
enorma expetativa rodeavam a apresentação ao vivo de Sérgio Godinho no novo
desafio e desempenho que este se propôs encetar, devolvendo aos nossos
sentidos, memória e coração as canções que fizeram parte integrante da vida de
toda uma geração e que parecem querer seguir connosco pela vida fora. A música
de Sérgio Godinho tem essa capacidade única de conseguir transpôr vivências pessoais
para um contexto mais lato, em que cada um faz suas as experiências do poeta. É
também o espelho com que se confronta uma Lisboa marcada pela nostalgia do
tempo perdido, afogada em Fado e nevoeiros, copos e vielas de má fama, sonhos
de grandeza eternamente adiados na miséria do quotidiano. Circulando por entre
o labirinto de bairros e emoções da cidade, cada um procurando nos encontros
com a imagem (ou miragem) do Amor também perdido, a pausa de descanso, a ilusão
compartilhada, que por vezes “sabendo a tanto”, quase sempre “sabe a pouco”.
Guardar silêncio
Por isso e porque Sérgio, além de
saber construir palavras com música, sabe, como ninguém, cantá-las, com a voz,
o olhar, os gestos e, o que é mais difícil, o próprio silêncio, aqueles que
ainda conservam em si uma criança, sabem também, “com um brilhozinho nos
olhos”, comover-se e guardar silêncio.
A assistência desta noite, composta
por gente de todas as idades, reconheceu, compreendeu, vibrou, calou, riu, se
calhar chorou, ou simplesmente acompanhou, consoante o estatuto estário e
diferente grau de envolvimento, os pedaços de vida que Sérgio, como ator de um
passado presente, foi desfiando, ao longo de uma arrebatadora atuação,
sabiamente encenada até ao mais ínfimo pormenor.
Os vários aspetos que constituíram a
atuação do cantor foram estudados e postos em prática de molde a cumprir um
objetivo previamente definido: despojar as canções de todo e qualquer excesso
formal, despindo-as do artificialismo de arranjos e produções envernizadas, e
revelá-las na sua força e beleza originais. Como refere o compositor: “Quando
há coisas a mais, a linha do horizonte fica menos nítida”. Para o efeito, foram
escolhidos, como únicos acompanhantes, Nani Teixeira, no baixo elétrico, e
Manuel Faria, nas teclas. Toda a movimentação de palco e encenação dos temas
foi organizada e comandada, com mão de mestre, por Ricardo Pais. O cenário,
simultaneamente negro e ofuscante, jogando no par de opostos, escuridão/luz,
inseparável e indissociável da arte e da vida, foi imaginado por Paulo Graça. A
produção é de Paulo Pulido Valente.
Um espetáculo
diferente
Ao longo de mais de hora e meia de atuação,
o autor de discos brilhantes como “Sobreviventes”, “Pré-Histórias” ou “Pano
Cru”, marcos da moderna música portuguesa, declamou, conversou e sobretudo
cantou (por vezes acompanhando-se simplesmente à guitarra acústica) antigas e
recentes canções (estas do último álbum, “Aos Amores”), apresentando pela
primeira vez dois temas inéditos, “Circunvalação” e “Notícias Locais”, este já
num dos dois “encores” finais exigidos pelo público.
Sérgio Godinho arriscou um
espetáculo diferente e ganhou. Alternou momentos intimistas, desvelando mágoas
e alegrias, fugas e avanços na difícil arte de estar vivo, com explosões de
extroversão, dando espaço instrumental aos restantes músicos e aliviando
tensões e, quem sabe, culpas, entretanto acumuladas. Viagem por paisagens
exteriores e interiores que passou e culminou, nos últmos versos e acordes do
concerto, no tom de abandono e despojamento, angústia e acordar de todos os
sonhos, de “Alice no País dos Matraquilhos”. Depois o silêncio e o exorcismo
final expresso numa imensa e reconhecida salva de aplausos.
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