cultura
SEXTA-FEIRA, 4 MAIO 1990
“Dança dos Escravos” é o mais recente
álbum gravado por Egberto Gismonti
O canto da sobrevivência
Egberto
Gismonti dança e avança pelos sons como os exploradores desbravando os medos do
sertão. Danças de academia, do interior das cabeças ou dos escravos presos só
por fora são outros tantos movimentos, do corpo e do espírito, fundidos no
caldeirão caótico da música e cultura brasileiras. Egberto demanda a
quintessência primordial.
O
seu trabalho é o de alquimista.
“Dança dos Escravos”
é o mais recente álbum gravado para a editora alemã ECM. “A música dos escravos
brasileiros expressa-se através de formas variadas. Para além de canto de
sobrevivência, constitui também um modo de libertação, uma fora de comunicação
com o sagrado”. A escolha da guitarra, único instrumento utilizado no disco,
prende-se a uma atitude muito especial de “ver” e ouvir os sons. “Já gravei
discos com toda a espécie de combinações instrumentais. A guitarra é, por
oposição ao aristrocático piano, mais romântica, ‘cantadora’ e, no caso do
Brasil, mais africana, daí a escolha. Procuro ainda desenvolver uma linguagem
guitarrística introduzida há trinta anos atrás por Baden Powell, vulgarmente
designada por ‘Afro Samba’”. Para o efeito, Egberto utiliza guitarras que vão
até às de 14 cordas. “O número de cordas é diretamente proporcional ao número
de vindas à Europa. Para a próxima o número de cordas aumentará ainda mais!...”
Trocas
A discografia de Gismondi estende-se
a 45 álbuns, bem contados, desde a música para crianças, “delírio de alguns
editores, que a etiquetaram como tal”, teatro, antigas colaborações com nomes
da MPB ou, mais recentemente, com Charlie Haden ou Jan Garbarek, até inúmeros
projetos a solo, dos quais só uma pequena parte chega à Europa, aquela que
Manfred Eicher, patrão da ECM, tem vindo cuidadosamente a registar. “A ECM
proporcionou-me um tipo de música que eu antes nunca tinha experimentado. Até
77/78, altura em que comecei a gravar para a editora, como solista. Até então
trabalhara sobretudo como arranjador e orquestrador. Em “Dança das Cabeças”,
primeiro da série alemã, descobri em mim próprio uma nova maneira de traduzir a
música do Brasil. Em “Sanfona” utilizei um grupo de músicos brasileiros e uma
aproximação, digamos que mais clássica, das origens. Ao mesmo tempo comecei a
gravar discos no Brasil, como “Alma”, próximos do conceito estético ECM. Houve
uma inversão, uma troca. Toda a minha música é uma constante troca, de técnicas
musicais que mutuamente se influenciam, de culturas, de diferentes maneiras de
sentir.”
Egberto Gismonti assimilou processos
e ensinamentos que vão desde Villa-Lobos, ou a cultura dos índios Xingu, entre
os quais viveu durante alguns anos, à literatura e música ocidentais
contemporâneas.
Acerca de Heitor Villa-Lobos,
Egberto desenvolve um curioso raciocínio: “Villa-Lobos significa quantidade e
não qualidade. Nós brasileiros só atingiremos a qualidade através da quatidade.
À partida não temos nenhuma forma estabelecida. No Brasil coexistem tribos
desconhecidas como a dos Xingu a par de problemas com centrais nucleares. É o
caos apocalíptico das origens e do fim. Vale tudo. A minha música reflete isto
mesmo, aproveito tudo, retendo o essencial e deitando fora o que não presta.
Sempre procurei dar um caráter sintético a tudo o que penso e faço. Creio que o
consegui nalguns casos, sempre a partir da quantidade, do maior número possível
de misturas”.
O método utilizado se em parte é
intuitivo (“O que eu sei é deixar impregnar-me pelos sons. Não tenho a menor
capacidade de organicidade”), não dispensa, todavia, o rigor da escrita direta
no computador ou uma perspetivação intelectual e cultural de todo o trabalho.
Essa auto-consciência e faculdade de
distanciação deve-a, segundo afirma, ao que aprendeu entre os Xingus, “saber
falar, executar e saber escutar. O momento fundamental desta aprendizagem
consistiu precisamente em saber dizer e escutar o silêncio”, mas também aos
ensinamentos recebidos na infância. “O meu pai é libanês e desde cedo
habituei-me a escutar os sons orientais. A minha mãe é italiana e fez-me ouvir
as árias de ópera. Ouvia as típicas ‘seresteiras” brasileiras, música de
bandas, tudo”. Para Egberto Gismonti qualquer som pode ser musical (“outro dos
meus mestres, Edgar, chefe de banda, disse-me coisas como ‘bata numa mesa,
sopre numa garrafa, isso é música também’”), perspetiva compartilhada com
Hermeto Pascoal, seu companheiro de aventuras em muitas ocasiões.
Música absoluta
Como Hermeto, também o autor de
“Corações Futuristas” utiliza a arte como uma forma de contestação não
panfletária, mas partindo do pressuposto estético de que a originalidade, por
ambos naturalmente cultivada, é, pela sua diferença, pelo criar de uma
realidade oposta à estabelecida, uma forma de contestação e afirmação de
liberdade. Liberdade que, em última instância se confunde já com uma
experiência religiosa, de ligação a um nível superior, transcendente, de
existência. “Em ‘Dança dos Escravos’ existe uma ligação íntima com formas de
religiosidade tradicionais como o espiritismo, o ‘Candomblé’... Tenho como
grande objetivo na minha vida a ligação a algo superior, que consigo sentir mas
não compreender”.
Quem já teve oportunidade de ver
Gismonti atuar ao vivo, agarrado à guitarra, um pouco à maneira do nosso Carlos
Paredes, perdido e totalmente imerso nessa superior forma de comunicação que é
a música, decerto compreenderá o sentido de tal liberdade. “Tocar é o momento
em que o intérprete, o instrumento e a música passam a ser um todo tocado por
alguma coisa que não consigo definir. Gravo os meus discos num estúdio em casa,
pra conseguir atingir esse estado de total recetividade”.
Recetividade que também não tem
faltado por parte do público português, às aventuras e viagens musicais deste
peregrino do Absoluto. “O meu grande projeto futuro é um trabalho global
baseado nas sistemáticas recolhas e estudo do folclore brasileiro levados a
cabo nos anos 20 pelo musicólogo Mário de Andrade, em que utilizarei o atual
grupo mais uma orquestra sinfónica com perto de cem elementos”. A obra, com
futuro discográfico ainda incerto, será apresentada em Novembro próximo e já
tem título: “Melodias Registadas Por Meios Não-Mecânicos”. Apoteose grandiosa
de um percurso exemplar.
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