24/12/2014

Estripadora de palavras [Anabela Duarte]



MÚSICAS

ANABELA DUARTE APRESENTA “MÁQUINA LÍRICA” NO MUSEU DE SERRALVES, NO PORTO

ESTRIPADORA DE PALAVRAS

COM O CORAÇÃO DIVIDIDO ENTRE A ELETRÓNICA E O CANTO LÍRICO, ANABELA DUARTE CULTIVA ACIMA DE TUDO O HUMOR E A TEATRALIDADE DAS PALAVRAS. NO CONCERTO DE QUINTA-FEIRA SERÁ A INTERPRETAÇÃO A IMPOR-SE, NA COMPANHIA DE UM PIANO, PARA CANTAR PULENC, SATIE, KURT WEILL E BORIS VIAN.

DEPOIS DA EDIÇÃO, o ano passado, do álbum “Delito”, que recupera canções eletrónicas gravadas ao vivo em 1991, a antiga cantora dos Mler Ife Dada regressa ao registo acústico num concerto a que chamou “Máquina Lírica”, dois termos que designam os extremos do seu universo musical.
            A “Máquina Lírica” será posta em funcionamento na próxima quinta-feira no auditório do Museu de Serralves, no Porto, acionada, além de Anabela Duarte, pela pianista jugoslava Vera Prokic.
            Na primeira parte Anabela Duarte interpretará composições de Francis Poulenc, incluindo “L’Histoire de Babar”, com texto de Jean de Brunhoff, traduzido para português por Helder Moura Pereira (cuja poesia, juntamente com a de Paulo da Costa Domingos, a cantora utilizou no livro-disco “O Horizonte Basta”, editado em 1997), “Deux poèmes de Louis Aragon”, sobre poemas deste escritor surrealista e “Toreador”, com texto de Jean Cocteau. Completa esta primeira parte uma composição de Erik Satie, “Ludions”.
            Depois do intervalo a cantora dará voz a “My ship”, “Speak low”, “Surabaya Johnny”, “Nanna’s lied” e “Youkali”, de Kurt Weill, concluindo com seis canções de Boris Vian, “Je bois”, “Valse carrée”, “Je suis snob”, “Blouse du dentiste”, “Rock and roll-mops” e “La danse du chat”. O vestido (como o da foto) tem a assinatura do estilista portuense Dino Alves.
            Anabela Duarte está nervosa, até porque esta será, para si, uma ocasião importante, “numa das principais salas de música do país”. “Uma pessoa está sempre a tentar não descarrilar mas às vezes saem coisas engraçadas, quando se está sob pressão”, desabafa.
            Ainda este ano sairá um novo álbum da cantora, na sequência dos anteriores trabalhos a solo, “Lisbunah” (1988), o EP “Subtilmente” (1991), “O Horizonte Basta” (1997) e “Delito” (1999). Com músicos dos Cool Hipnoise, Alexandre Camarão, Alex Effects e “mais uma ou duas pessoas para fazer as remisturas”. Um álbum de “coisas atualíssimas” que passará, inclusive, por incursões na música de dança, embora numa perspetiva “esotérica”. “Está a dar-me muito gozo, mexer na samplagem, nos computadores…”, diz Anabela Duarte, para quem o outro lado, o da canção lírica, tem mais a ver com o desejo de um apuro constante da interpretação. Na sua opinião “é este choque de influências e de culturas que é interessante”. Um processo de criação que, além da leitura, passa pela consulta através da Internet, na procura de informação mas também pelo aproveitamento do material cuja natureza a cantora prefere não divulgar, “para não ter a polícia à perna”, confessa, com um sorriso enigmático nos lábios.
            Curiosamente, a ligação à eletrónica, ao aproveitamento da fonética da linguagem e da sua teatralidade, fazem pensar em Diamanda Galas, cantora do excesso e da provocação levada até às últimas consequências. Mas Anabela Duarte, para quem a expressão dramática é igualmente importante, prefere não ir tão longe, demarcando-se da autora de “Litanies of Satan”: “Ela é uma cantora muito mais desregrada, com uma atitude mais punk, agressiva. E os poetas que escolhe, como Baudelaire, apontam para uma coisa mais satânica. A imagem dela tem só a ver com isso, embora inteligente é limitada. Em mim, além desse lado, têm que passar outras coisas, jogo mais com a diversidade”.
            Mas o mais importante, mesmo, para Anabela Duarte, é o humor, “um humor crítico, um humor negro na linha do Surrealismo, a gente ri-se mas há sempre algo mais sobre o qual se pode pensar”.
            Anabela Duarte recorda os jogos fonéticos destes diletantes da loucura e cita os nomes do dadaísta Tristan Tzara e dos portugueses Mário Cesariny e Pedro Oom mas sobretudo o de António Maria Lisboa, de quem interpretará um poema no seu novo álbum.
            Tudo junto contribui para dar ao percurso artístico de Anabela Duarte um sentido que a própria considera um “processo de globalização”, aglutinador de vetores só aparentemente contraditórios que Hélder Moura Pereira, no seu texto de apresentação de “Máquina Lírica”, resume da seguinte forma: “Anabela situa-se num intervalo que evita nomenclaturas (…) a cantora sabe que a voz comporta perigos – ela pode ser, pelo virtuosismo, um elemento branqueador de diferenças, espaço à mercê de todas as facilidades – por isso, e certamente sem inocência, tem ela atuado sobre a palavra poética como matéria moldável, aberta à interpretação, escolhendo da possibilidade histórica (e sendo dela cúmplice) autores que estiveram também em intervalos ou que, de uma forma ou outra, os provocaram. Lorca, Vian, Satie, Poulenc, todos eles capazes de honrar a infância, capazes do amor intenso e do comprometimento”.

ANABELA DUARTE
Porto, Museu de Serralves, dia 11, 21h30
Bilhetes a 1500 escudos


ARTES | sexta-feira, 5 maio 2000

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