ANTEVISÕES
SÉRGIO
GODINHO APRESENTA, EM NOVEMBRO, NOVO ÁLBUM, “LUPA”, EM LISBOA E NO PORTO
UM
MÚSICO USA TUDO, ATÉ UMA LUPA
PARA SÉRGIO GODINHO, O ÚLTIMO ÁLBUM E O ÚLTIMO ESPETÁCULO SÃO SEMPRE OS
PRIMEIROS. É ESTE O SEU SEGREDO E O SEGREDO DA ETERNIDADE. DAS PEQUENAS E
GRANDES HISTÓRIAS QUE O MÚSICO VEM CANTANDO HÁ QUASE 30 ANOS. NO PRINCÍPIO DE
NOVEMBRO, LISBOA E PORTO VÃO PODER OBSERVAR À “LUPA”, E EM PORMENOR, OS TEXTOS,
OS SONS E AS IMAGENS.
SÉRGIO GODINHO é o mais importante cantautor português
vivo. Que me perdoem José Mário Branco, Fausto, Vitorino e demais nomes da
mesma geração cuja relevância no desenvolvimento da música popular portuguesa
nas últimas três décadas é inquestionável. Mas nenhum deles apresenta uma obra
com a consistência, em termos de quantidade, qualidade e regularidade de
produção, da do autor de “Os Sobreviventes”.
Viajante
das palavras, sonoplasta das emoções, contador de histórias, cinéfilo dos sons,
artesão dos pequenos gestos íntimos, arquiteto das grandes catedrais do
sentimento, júri das estrelas, tão coerente nos princípios que defende com
independente na forma como, sobretudo, não se deixa prender a si próprio,
Sérgio Godinho caminha desde 1971, ano em que gravou o seu álbum de estreia,
“Os Sobreviventes”, ao nosso lado. As suas canções, com as histórias que nelas
passam a maior ou menor velocidade, têm sido as nossas, ordenadas segundo a
lógica desordenada da vida e arrumadas com todo o cuidado na vitrina através da
qual a alma olha para o lado de fora.
Sobrevivente permanente
Tem sido
sempre assim, ao longo dos 15 álbuns que o músico já gravou, nas centenas de
espetáculos dados em Portugal e no estrangeiro, em todos os projetos em que se
tem envolvido, ligados à música, ao cinema, ao teatro e à televisão. Sérgio
Godinho tem sido um dos caminhos mais percorridos pela música portuguesa nos
últimos 30 anos. Com múltiplos desvios. E chegadas a lugares de descoberta.
Nos
próximos dias 2, 3 e 4 de Novembro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e
no dia 10, no Coliseu do Porto, Sérgio Godinho fará a apresentação ao vivo do
seu mais recente álbum, intitulado “Lupa”.
Sérgio
Godinho integrava no início dos anos 70 o grupo de jovens compositores que
giravam em redor de José Afonso. Mas José Afonso não se considerava o centro de
coisa nenhuma e proclamava que eles, os novos, é que estavam a fazer coisas
diferentes e interessantes. Nessa época Sérgio chegou a escrever, a pedido do
próprio Zeca, uma letra para “Maio, maduro Maio” mas o autor de “Grândola”
esqueceu-se e a letra acabou por ir parar às mãos de José Mário Branco que lhe
deu um arranjo original.
Zeca,
entretanto, foi-se, deixando um lugar (ou vários lugares?) vagos na música
popular portuguesa. Ninguém poderia nem pôde preenchê-lo mas o mestre tinha
razão. Os novos souberam estar à altura, partindo cada um para a sua aventura
pessoal.
A aventura
de Sérgio foi, continua a ser, imprevisível. Forçado pela ditadura, partiu para
Paris, onde compôs as suas primeiras canções, influenciado pela “chanson
française” mas também pelo rock e pela pop que chegavam a França com rapidez
vindos do outro lado da Mancha. Com a edição de “Os Sobreviventes”, em 1971,
logo seguido, no ano seguinte, por “Pré-Histórias”, ambos gravados em França, a
MPP tomava novo rumo.
A partir daí
Sérgio Godinho cresceu. Mais do que o país, que parecia minguar. A costela
política à qual era impossível fugir nesses tempos de luta, de quem decidira
lutar, estava evidentemente presente nos discos, mas o panfleto era ofuscado
pelo outro lado. O lado de dentro de canções que falavam do lado de dentro das
pessoas.
Sérgio
inventou personagens e situações que se tornaram reais na nossa imaginação,
encontrando eco e refractando-se nas vivências pessoais de cada um. Falou do
país com ironia, algumas vezes com sarcasmo, desenfiando-lhe o barrete, mas
falou sobretudo dos pequenos e grandes dramas dos seus habitantes, tantos deles
errantes, tantos deles abandonados, tantos deles perdidos nas contradições de
uma sociedade também ela contraditória. Com humor e ternura. As palavras foram
atrás. Bem como os álbuns: “À Queima-Rupa” (1974), “De Pequenino se Torce o
Destino” (1976), “Pano Cru” (obra prima absoluta da música portuguesa, 1978),
“Campolide” (1979), “Canto da Boca” (1980), “Coincidências” (1983), “Salão de
Festas” (1984), “Na Vida Real” (1986), “Aos Amores” (1989), “Escritor de
Canções” (um dos grandes discos ao vivo de sempre da MPP, 1990), “Tinta
Permanente” (1993), “Domingo no Mundo” (1997). Todos indispensáveis. Mosaico e
caleidoscópio. Espelho e punhal. Luz e sombra. Confessionário e palco de
teatro. Holofote e bastidores. Quarto e sala de estar.
Conhece-se
o talento de Sérgio para fazer as palavras cantarem. É essa uma das marcas do
seu génio. A maneira como consegue tornar o português numa língua tão
“cantabile” como o italiano. Se José Mário Branco é o arranjador por
excelência, o manipulador de músicas e ideias que carrega sobre o si o peso do
drama de ser português e o peso das palavras que podem matar, Sérgio é o
observador-jogador que não se deixa tocar. Talvez por isso a sua música e as
suas palavras permaneçam hoje tão vivas e atuantes como sempre. Porque Sérgio
as solta, insuflando-lhes vida própria. José Mário Branco usa as palavras para
falar. Sérgio Godinho deixa que elas falem por si.
“Sou um
músico. E na música, englobo as palavras – nesse aspeto sou um poeta; englobo o
estar num palco – e nesse aspeto sou um cantor; e sou também um compositor,
porque também faço melodias e ritmos a partir de coisas que vou escolhendo. Um
músico usa tudo, as palavras, o palco, não consigo separar… diz de si próprio
Sérgio Godinho. As palavras falam por si.
Os
próximos dias 2, 3, 4 e 10 serão, portanto, uma vez mais, os “primeiros dias do
resto das nossas vidas”. É por isso que a última etapa da carreira de Sérgio
Godinho é sempre a primeira.
ARTES | sexta-feira, 13 outubro 2000
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