31/12/2014

Um músico usa tudo, até uma lupa [Sérgio Godinho]



ANTEVISÕES

SÉRGIO GODINHO APRESENTA, EM NOVEMBRO, NOVO ÁLBUM, “LUPA”, EM LISBOA E NO PORTO

UM MÚSICO USA TUDO, ATÉ UMA LUPA

PARA SÉRGIO GODINHO, O ÚLTIMO ÁLBUM E O ÚLTIMO ESPETÁCULO SÃO SEMPRE OS PRIMEIROS. É ESTE O SEU SEGREDO E O SEGREDO DA ETERNIDADE. DAS PEQUENAS E GRANDES HISTÓRIAS QUE O MÚSICO VEM CANTANDO HÁ QUASE 30 ANOS. NO PRINCÍPIO DE NOVEMBRO, LISBOA E PORTO VÃO PODER OBSERVAR À “LUPA”, E EM PORMENOR, OS TEXTOS, OS SONS E AS IMAGENS.

SÉRGIO GODINHO é o mais importante cantautor português vivo. Que me perdoem José Mário Branco, Fausto, Vitorino e demais nomes da mesma geração cuja relevância no desenvolvimento da música popular portuguesa nas últimas três décadas é inquestionável. Mas nenhum deles apresenta uma obra com a consistência, em termos de quantidade, qualidade e regularidade de produção, da do autor de “Os Sobreviventes”.
            Viajante das palavras, sonoplasta das emoções, contador de histórias, cinéfilo dos sons, artesão dos pequenos gestos íntimos, arquiteto das grandes catedrais do sentimento, júri das estrelas, tão coerente nos princípios que defende com independente na forma como, sobretudo, não se deixa prender a si próprio, Sérgio Godinho caminha desde 1971, ano em que gravou o seu álbum de estreia, “Os Sobreviventes”, ao nosso lado. As suas canções, com as histórias que nelas passam a maior ou menor velocidade, têm sido as nossas, ordenadas segundo a lógica desordenada da vida e arrumadas com todo o cuidado na vitrina através da qual a alma olha para o lado de fora.

Sobrevivente permanente

            Tem sido sempre assim, ao longo dos 15 álbuns que o músico já gravou, nas centenas de espetáculos dados em Portugal e no estrangeiro, em todos os projetos em que se tem envolvido, ligados à música, ao cinema, ao teatro e à televisão. Sérgio Godinho tem sido um dos caminhos mais percorridos pela música portuguesa nos últimos 30 anos. Com múltiplos desvios. E chegadas a lugares de descoberta.
            Nos próximos dias 2, 3 e 4 de Novembro, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e no dia 10, no Coliseu do Porto, Sérgio Godinho fará a apresentação ao vivo do seu mais recente álbum, intitulado “Lupa”.
            Sérgio Godinho integrava no início dos anos 70 o grupo de jovens compositores que giravam em redor de José Afonso. Mas José Afonso não se considerava o centro de coisa nenhuma e proclamava que eles, os novos, é que estavam a fazer coisas diferentes e interessantes. Nessa época Sérgio chegou a escrever, a pedido do próprio Zeca, uma letra para “Maio, maduro Maio” mas o autor de “Grândola” esqueceu-se e a letra acabou por ir parar às mãos de José Mário Branco que lhe deu um arranjo original.
            Zeca, entretanto, foi-se, deixando um lugar (ou vários lugares?) vagos na música popular portuguesa. Ninguém poderia nem pôde preenchê-lo mas o mestre tinha razão. Os novos souberam estar à altura, partindo cada um para a sua aventura pessoal.
            A aventura de Sérgio foi, continua a ser, imprevisível. Forçado pela ditadura, partiu para Paris, onde compôs as suas primeiras canções, influenciado pela “chanson française” mas também pelo rock e pela pop que chegavam a França com rapidez vindos do outro lado da Mancha. Com a edição de “Os Sobreviventes”, em 1971, logo seguido, no ano seguinte, por “Pré-Histórias”, ambos gravados em França, a MPP tomava novo rumo.
            A partir daí Sérgio Godinho cresceu. Mais do que o país, que parecia minguar. A costela política à qual era impossível fugir nesses tempos de luta, de quem decidira lutar, estava evidentemente presente nos discos, mas o panfleto era ofuscado pelo outro lado. O lado de dentro de canções que falavam do lado de dentro das pessoas.
            Sérgio inventou personagens e situações que se tornaram reais na nossa imaginação, encontrando eco e refractando-se nas vivências pessoais de cada um. Falou do país com ironia, algumas vezes com sarcasmo, desenfiando-lhe o barrete, mas falou sobretudo dos pequenos e grandes dramas dos seus habitantes, tantos deles errantes, tantos deles abandonados, tantos deles perdidos nas contradições de uma sociedade também ela contraditória. Com humor e ternura. As palavras foram atrás. Bem como os álbuns: “À Queima-Rupa” (1974), “De Pequenino se Torce o Destino” (1976), “Pano Cru” (obra prima absoluta da música portuguesa, 1978), “Campolide” (1979), “Canto da Boca” (1980), “Coincidências” (1983), “Salão de Festas” (1984), “Na Vida Real” (1986), “Aos Amores” (1989), “Escritor de Canções” (um dos grandes discos ao vivo de sempre da MPP, 1990), “Tinta Permanente” (1993), “Domingo no Mundo” (1997). Todos indispensáveis. Mosaico e caleidoscópio. Espelho e punhal. Luz e sombra. Confessionário e palco de teatro. Holofote e bastidores. Quarto e sala de estar.
            Conhece-se o talento de Sérgio para fazer as palavras cantarem. É essa uma das marcas do seu génio. A maneira como consegue tornar o português numa língua tão “cantabile” como o italiano. Se José Mário Branco é o arranjador por excelência, o manipulador de músicas e ideias que carrega sobre o si o peso do drama de ser português e o peso das palavras que podem matar, Sérgio é o observador-jogador que não se deixa tocar. Talvez por isso a sua música e as suas palavras permaneçam hoje tão vivas e atuantes como sempre. Porque Sérgio as solta, insuflando-lhes vida própria. José Mário Branco usa as palavras para falar. Sérgio Godinho deixa que elas falem por si.
            “Sou um músico. E na música, englobo as palavras – nesse aspeto sou um poeta; englobo o estar num palco – e nesse aspeto sou um cantor; e sou também um compositor, porque também faço melodias e ritmos a partir de coisas que vou escolhendo. Um músico usa tudo, as palavras, o palco, não consigo separar… diz de si próprio Sérgio Godinho. As palavras falam por si.
            Os próximos dias 2, 3, 4 e 10 serão, portanto, uma vez mais, os “primeiros dias do resto das nossas vidas”. É por isso que a última etapa da carreira de Sérgio Godinho é sempre a primeira.




ARTES | sexta-feira, 13 outubro 2000

Sem comentários: