04/12/2014

Numa alcatifa voadora [Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland]



Numa alcatifa voadora

FOI MARAVILHOSO, lindo, doce. De uma delicadeza insuperável. Uma autêntica viagem num tapete – melhor, uma alcatifa – das mil e uma noites, o concerto dado pelo trio Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland na noite de segunda-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Três anjos acabados de sair do Paraíso, bem instalados no alto da sua virtude.
            Música ditada pelo desejo de agradar, de não ofender minimamente as regras de coisa nenhuma, de bem-aventurança. Uma visão pacifista, integracionista e new age da música. “Ali-Bá-Bá” das Doce, em registo intelectual.
            Não sabemos que mais destacar de um concerto em que nada esteve fora do lugar. Se as notas arrumadas com cuidado na pauta da Academia, se as melodias que todos podiam cantarolar com enlevo, se o atestado de bom comportamento passado a dois ingleses e um tunisino fartos da inquietação do jazz (os ingleses) e da ascese erótica da música árabe (o tunisino). Ou seria ao contrário?
            O jazz não ganhou por ter presente no palco bem iluminado e sonorizado do CCB (tudo esteve catita, nesta noite de mil e um encantamentos) dois dos seus mais antigos praticantes. Na prática ignoraram-na. A música árabe andou sempre longe das suaves dedilhações com que Anouar Brahem afagava o seu “ud”. Na prática preferiu o enfeite e a ornamentação vazia à elevação e ao derrame de sangue. Foi melhor assim (terá sido?) – não houve mortos nem feridos e toda a gente saiu feliz a voar na alcatifa voadora.
            Mas, é curioso, durante todo o tempo sentimos uma ligeira, muito ligeira, impressão de gratuitidade. Como se em vez da grande música que nos tira, a nós e aos músicos, do sítio, estivéssemos a assistir a uma pacata sessão de canasta, sem o picante do “bluff” e com as cartas marcadas.
            John Surman e Dave Holland são músicos tecnicamente impecáveis. Sobre isso na restam dúvidas. Já Anouar Brahem, comparando com o que dele se conhecia dos álbuns que gravou para a ECM, permitiu alguma desconfiança. Lembrámo-nos do concerto de Rabih Abou-Khalil, há alguns anos, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, onde a chama do “taqasim” (improvisação) brilhou a grande altura. Olhando para Brahem apenas se vislumbravam cinzas. E no lugar da luz, verniz.
            O inglês soprador dispensou o saxofone barítono (do qual é exímio executante) para se concentrar no soprano e no clarinete baixo. Acomodou-se à melodia para mandar aos amigos em postal ilustrado, arabizou-se sem fazer perigar o seu estatuto de clássico, solou com disciplina. Sem uma cotovelada, quanto mais um golpe de asa. O outro inglês, contrabaixista, ainda tentou o diálogo sem rede, procurando arrancar a música da modorra, mas sem sucesso. Quando, a meio de um solo, teve a ousadia de, por uma unha negra, se entusiasmar, erguendo os pés do solo durante três segundos e dois acordes, pareceu falta de respeito. Era proibido acordar o bebé. E o bebé não acordou, embalado por hora e meia de “muzak” que trocou a criatividade e a busca – do mal ou do bem, mas busca, do certo ou do errado, mas aventura – pela pintura de parede. Depois do concerto de Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland as paredes do CCB ficaram, decerto, mais bonitas e macias.

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