Numa
alcatifa voadora
FOI MARAVILHOSO, lindo, doce. De
uma delicadeza insuperável. Uma autêntica viagem num tapete – melhor, uma
alcatifa – das mil e uma noites, o concerto dado pelo trio Anouar Brahem, John
Surman e Dave Holland na noite de segunda-feira, no Grande Auditório do Centro
Cultural de Belém, em Lisboa. Três anjos acabados de sair do Paraíso, bem
instalados no alto da sua virtude.
Música
ditada pelo desejo de agradar, de não ofender minimamente as regras de coisa
nenhuma, de bem-aventurança. Uma visão pacifista, integracionista e new age da
música. “Ali-Bá-Bá” das Doce, em registo intelectual.
Não
sabemos que mais destacar de um concerto em que nada esteve fora do lugar. Se
as notas arrumadas com cuidado na pauta da Academia, se as melodias que todos
podiam cantarolar com enlevo, se o atestado de bom comportamento passado a dois
ingleses e um tunisino fartos da inquietação do jazz (os ingleses) e da ascese
erótica da música árabe (o tunisino). Ou seria ao contrário?
O
jazz não ganhou por ter presente no palco bem iluminado e sonorizado do CCB
(tudo esteve catita, nesta noite de mil e um encantamentos) dois dos seus mais
antigos praticantes. Na prática ignoraram-na. A música árabe andou sempre longe
das suaves dedilhações com que Anouar Brahem afagava o seu “ud”. Na prática
preferiu o enfeite e a ornamentação vazia à elevação e ao derrame de sangue.
Foi melhor assim (terá sido?) – não houve mortos nem feridos e toda a gente
saiu feliz a voar na alcatifa voadora.
Mas,
é curioso, durante todo o tempo sentimos uma ligeira, muito ligeira, impressão
de gratuitidade. Como se em vez da grande música que nos tira, a nós e aos
músicos, do sítio, estivéssemos a assistir a uma pacata sessão de canasta, sem
o picante do “bluff” e com as cartas marcadas.
John
Surman e Dave Holland são músicos tecnicamente impecáveis. Sobre isso na restam
dúvidas. Já Anouar Brahem, comparando com o que dele se conhecia dos álbuns que
gravou para a ECM, permitiu alguma desconfiança. Lembrámo-nos do concerto de
Rabih Abou-Khalil, há alguns anos, no Teatro S. Luiz, em Lisboa, onde a chama
do “taqasim” (improvisação) brilhou a grande altura. Olhando para Brahem apenas
se vislumbravam cinzas. E no lugar da luz, verniz.
O
inglês soprador dispensou o saxofone barítono (do qual é exímio executante)
para se concentrar no soprano e no clarinete baixo. Acomodou-se à melodia para
mandar aos amigos em postal ilustrado, arabizou-se sem fazer perigar o seu
estatuto de clássico, solou com disciplina. Sem uma cotovelada, quanto mais um
golpe de asa. O outro inglês, contrabaixista, ainda tentou o diálogo sem rede,
procurando arrancar a música da modorra, mas sem sucesso. Quando, a meio de um
solo, teve a ousadia de, por uma unha negra, se entusiasmar, erguendo os pés do
solo durante três segundos e dois acordes, pareceu falta de respeito. Era
proibido acordar o bebé. E o bebé não acordou, embalado por hora e meia de
“muzak” que trocou a criatividade e a busca – do mal ou do bem, mas busca, do
certo ou do errado, mas aventura – pela pintura de parede. Depois do concerto
de Anouar Brahem, John Surman e Dave Holland as paredes do CCB ficaram,
decerto, mais bonitas e macias.
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