29/12/2014

A arte do desastre [Pere Ubu]



MÚSICA

PERE UBU NA AULA MAGNA DE LISBOA

A ARTE DO DESASTRE

A MÚSICA DOS PERE UBU É UM MANUAL DE DOENÇAS E FOBIAS DESTE SÉCULO: HISTERIA, MEDO, ESQUIZOFRENIA, AUTISMO. “SOMOS A MEMBRANA QUE SEPARA O INDIVÍDUO DO MUNDO”, PROCLAMOU CERTA VEZ DAVID THOMAS, LÍDER DA BANDA. PASSADOS 25 ANOS SOBRE A SUA FORMAÇÃO, OS PERE UBU CONTINUAM COM INSÓNIAS NA SALA DE CUIDADOS INTENSIVOS. “SOMOS DEMASIADO ESTÚPIDOS PARA SAIR DISTO E FALTA-NOS A IMAGINAÇÃO PARA VISLUMBRARMOS UM FUTURO MELHOR”. A CATÁSTROFE COMO FORMA SUPREMA DE ARTE. LISBOA VAI PODER PARTICIPAR.

NÃO EXISTE explicação para a existência de pessoas como David Thomas nem de uma banda como os Pere Ubu, nascida em 1975 com base na visão do surrealista Alfred Jerry, no meio da fuligem, do óleo industrial e dos resíduos de radioatividade da cidade de Cleveland, nos EUA. Numa das faixas do álbum “Dub Housing”, uma das várias obras-primas assinadas pelo grupo, assim consideradas numa escala de valores que começa na paranóia e termina na iluminação, David grita que “está uma mosca na pomada”. A mosca nunca mais saiu de lá. Na próxima terça-feira, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, convirá levar um mata-moscas ou um spray de inseticida. Nunca se sabe.
            Nunca se sabe, nunca se soube exatamente o que os Pere Ubu pretendem ou pretenderam dizer. David Thomas, denominador comum de uma formação várias vezes em perigo de extinção, é parco em palavras e perito em desarmar quem insiste em ver nele o ideólogo da geração americana do pós-punk. O PÚBLICO já sentiu, de resto, na pele os sintomas da alergia, em duas tentativas de entrevista. Os Pere Ubu ocupam hoje um lugar de destaque no pop alternativa? “Não sei, não é problema meu, não sou pago para ter essas ideias”. Mas o rock, o que é o rock, senhor Thomas? Pergunta infeliz. “É uma mudança de uma grande caixa preta de um extremo da cidade para o outro, na mala do carro”. Não se estava mesmo a ver?
            É que para o senhor das moscas: “A arte existe para revelar segredos e, ao mesmo tempo, para os preservar”.

Estilhaços

            Foi quase em segredo que se formaram os Pere Ubu. Em 1975, na cidade industrial de Cleveland, das cinzas dos Rocket from the Tombs e dos Foggy and the Shrimps. O punk estava prestes a deflagrar dos dois lados do Atlântico e os Pere Ubu estavam preparados para cavalgar na sua crista. Para tal bastava, dizia Thomas, “juntar um grupo de pessoas únicas” pois apenas “pessoas únicas podem fazer música única, saibam ou não tocar um instrumento”. Frase adequada ao espírito da época que o vocalista dos Pere Ubu logo trataria de contradizer, quando o punk lhe mordeu as canelas: “Estávamos à beira de um admirável mundo novo e depois aconteceu o punk. Foi a regressão, a vitória do rock instituído, da mentalidade corporativa. Convém lembrar que o punk foi inventado para vender roupas. A cultura foi arrancada dos poetas para ser entregue a bárbaros”.
            David Thomas é simultaneamente um bárbaro e um poeta. O que acontece é que às vezes torna-se difícil distinguir quando é uma coisa ou a outra. Quanto aos Pere Ubu, a sua música era ao mesmo tempo grandiosa e impenetrável, terna como uma pomba, rude como um insulto, afiada como arame farpado, uma galáxia em expansão fechada numa garagem em ruínas. Uma das canções do álbum de estreia “The Modern Dance”, editado em 1978, é a banda-sonora de uma história de amor, com o ruído de garrafas de vidro a serem despedaçadas contra uma parede de cimento. Funciona. Assusta. Como uma profecia.

Dança moderna

            “30 Seconds over Tokyo”, em EP, e o single “Final Solution” já tinham feito soar o sinal de alarme. Mas poucos estariam preparados para a onda de choque provocada por “The Modern Dance”, manifesto do niilismo de uma época cujos efeitos serão difíceis de dissipar.
            Os Pere Ubu viviam nessa época num antigo clube de prostitutas e conseguiam encher com 50 pessoas o “Pirate’s Cove”, um bar-armazém de marinheiros edificado no local onde viria a emergir o império do milionário Rockefeller. Para o proprietário do “Pirate’s Cove”, Jim Dowd, o risco era mínimo. O próprio grupo decidira chamar aos seus concertos “Disastodromes”. Menos que nada era impossível. “The Modern Dance” rebentou-nos nas mãos.
            Ao lado de Thomas, tocavam em “The Modern Dance” Tom Herman, na guitarra, Allen Ravenstine, no sintetizador, Tony Mainmone, no baixo, e Scott Krauss, na bateria. Permaneceriam pouco tempo juntos. Seria sina dos Pere Ubu mudarem de músicos como de camisa. A chama, essa, mantinha-se acesa na visão de David Thomas. A mosca continuava na pomada.
            “Dub Housing” (1978), “New Picnic Time” (1979), “The Art of Walking” (1980) e “Song of the Bailing Man” (1982), atraíram uma legião de fanáticos mas passaram ao lado do grande público. Exausto, o grupo implode. Cessam as gravações. David Thomas prossegue, entretanto, uma carreira a solo, alinhando ao lado da cena downtown de Nova Iorque, juntando-se a “progressivos” como Chris Cutler ou a um herói da “folk” como Richard Thompson, e inventando grupos como os Pedestrians, Wooden Birds, The Pale Boys e – no novo álbum, “Bay City” (inspirado nas novelas policiais de Raymond Chandler) – os Foreigners, constituído por músicos noruegueses. Sem nunca deixar de cultivar o gosto pela “surf music” dos Beach Boys. Outra mania.
            Precisamente num concerto a solo de Thomas com os Wooden Birds, realizado em 1985 na cidade-natal de Cleveland, o nome dos Pere Ubu voltou a fazer sentido. Mainmone e Ravenstine eram ambos Wooden Birds. Scott Krauss saiu da assistência em direção ao palco. “Ele caminhava como um pato, tinha o ar de um pato e grasnava como um pato. Logo, era mesmo um pato”, lembra David Thomas. O pato juntou-se aos pássaros de madeira e os Pere Ubu ressuscitaram para mais uma fase atribulada do sua vida, da qual resultariam até hoje os álbuns “The Tenement Year” (1988), “Cloudland” (1989), “Worlds in Collision” (1991), Ray Gun Suitase” (1995) e “Pennsylvania” (1998), e a realização, em Londres, de um mega-espetáculo inspirado no conceito “Disastodrome”. Thomas criou, por seu lado, o musical “Mirror Man”, com as participações de Peter Hammill e Linda Thompson.
            É duvidoso que ele e os seus pares enverguem o “tuxedo” para atuar na noite da próxima terça-feira, na Reitoria da Universidade de Lisboa. Seja como for, eles já chumbaram. Com distinção.


PERE UBU
LISBOA Aula Magna da Universidade de Lisboa, dia 26, às 21h30.
Bilhetes a 4500$ e 6000$.


ARTES | sexta-feira, 22 setembro 2000

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