MÚSICA
PERE
UBU NA AULA MAGNA DE LISBOA
A
ARTE DO DESASTRE
A MÚSICA DOS PERE UBU É UM MANUAL DE DOENÇAS E FOBIAS DESTE SÉCULO:
HISTERIA, MEDO, ESQUIZOFRENIA, AUTISMO. “SOMOS A MEMBRANA QUE SEPARA O
INDIVÍDUO DO MUNDO”, PROCLAMOU CERTA VEZ DAVID THOMAS, LÍDER DA BANDA. PASSADOS
25 ANOS SOBRE A SUA FORMAÇÃO, OS PERE UBU CONTINUAM COM INSÓNIAS NA SALA DE
CUIDADOS INTENSIVOS. “SOMOS DEMASIADO ESTÚPIDOS PARA SAIR DISTO E FALTA-NOS A
IMAGINAÇÃO PARA VISLUMBRARMOS UM FUTURO MELHOR”. A CATÁSTROFE COMO FORMA SUPREMA
DE ARTE. LISBOA VAI PODER PARTICIPAR.
NÃO EXISTE explicação para a existência de pessoas como
David Thomas nem de uma banda como os Pere Ubu, nascida em 1975 com base na
visão do surrealista Alfred Jerry, no meio da fuligem, do óleo industrial e dos
resíduos de radioatividade da cidade de Cleveland, nos EUA. Numa das faixas do
álbum “Dub Housing”, uma das várias obras-primas assinadas pelo grupo, assim
consideradas numa escala de valores que começa na paranóia e termina na
iluminação, David grita que “está uma mosca na pomada”. A mosca nunca mais saiu
de lá. Na próxima terça-feira, na Aula Magna da Universidade de Lisboa, convirá
levar um mata-moscas ou um spray de inseticida. Nunca se sabe.
Nunca se
sabe, nunca se soube exatamente o que os Pere Ubu pretendem ou pretenderam
dizer. David Thomas, denominador comum de uma formação várias vezes em perigo
de extinção, é parco em palavras e perito em desarmar quem insiste em ver nele
o ideólogo da geração americana do pós-punk. O PÚBLICO já sentiu, de resto, na
pele os sintomas da alergia, em duas tentativas de entrevista. Os Pere Ubu
ocupam hoje um lugar de destaque no pop alternativa? “Não sei, não é problema
meu, não sou pago para ter essas ideias”. Mas o rock, o que é o rock, senhor
Thomas? Pergunta infeliz. “É uma mudança de uma grande caixa preta de um
extremo da cidade para o outro, na mala do carro”. Não se estava mesmo a ver?
É que para
o senhor das moscas: “A arte existe para revelar segredos e, ao mesmo tempo,
para os preservar”.
Estilhaços
Foi quase
em segredo que se formaram os Pere Ubu. Em 1975, na cidade industrial de
Cleveland, das cinzas dos Rocket from the Tombs e dos Foggy and the Shrimps. O
punk estava prestes a deflagrar dos dois lados do Atlântico e os Pere Ubu
estavam preparados para cavalgar na sua crista. Para tal bastava, dizia Thomas,
“juntar um grupo de pessoas únicas” pois apenas “pessoas únicas podem fazer
música única, saibam ou não tocar um instrumento”. Frase adequada ao espírito
da época que o vocalista dos Pere Ubu logo trataria de contradizer, quando o
punk lhe mordeu as canelas: “Estávamos à beira de um admirável mundo novo e
depois aconteceu o punk. Foi a regressão, a vitória do rock instituído, da
mentalidade corporativa. Convém lembrar que o punk foi inventado para vender
roupas. A cultura foi arrancada dos poetas para ser entregue a bárbaros”.
David
Thomas é simultaneamente um bárbaro e um poeta. O que acontece é que às vezes
torna-se difícil distinguir quando é uma coisa ou a outra. Quanto aos Pere Ubu,
a sua música era ao mesmo tempo grandiosa e impenetrável, terna como uma pomba,
rude como um insulto, afiada como arame farpado, uma galáxia em expansão
fechada numa garagem em ruínas. Uma das canções do álbum de estreia “The Modern
Dance”, editado em 1978, é a banda-sonora de uma história de amor, com o ruído
de garrafas de vidro a serem despedaçadas contra uma parede de cimento.
Funciona. Assusta. Como uma profecia.
Dança moderna
“30
Seconds over Tokyo”, em EP, e o single “Final Solution” já tinham feito soar o
sinal de alarme. Mas poucos estariam preparados para a onda de choque provocada
por “The Modern Dance”, manifesto do niilismo de uma época cujos efeitos serão
difíceis de dissipar.
Os Pere
Ubu viviam nessa época num antigo clube de prostitutas e conseguiam encher com
50 pessoas o “Pirate’s Cove”, um bar-armazém de marinheiros edificado no local
onde viria a emergir o império do milionário Rockefeller. Para o proprietário
do “Pirate’s Cove”, Jim Dowd, o risco era mínimo. O próprio grupo decidira
chamar aos seus concertos “Disastodromes”. Menos que nada era impossível. “The
Modern Dance” rebentou-nos nas mãos.
Ao lado de
Thomas, tocavam em “The Modern Dance” Tom Herman, na guitarra, Allen
Ravenstine, no sintetizador, Tony Mainmone, no baixo, e Scott Krauss, na bateria.
Permaneceriam pouco tempo juntos. Seria sina dos Pere Ubu mudarem de músicos
como de camisa. A chama, essa, mantinha-se acesa na visão de David Thomas. A
mosca continuava na pomada.
“Dub
Housing” (1978), “New Picnic Time” (1979), “The Art of Walking” (1980) e “Song
of the Bailing Man” (1982), atraíram uma legião de fanáticos mas passaram ao
lado do grande público. Exausto, o grupo implode. Cessam as gravações. David
Thomas prossegue, entretanto, uma carreira a solo, alinhando ao lado da cena
downtown de Nova Iorque, juntando-se a “progressivos” como Chris Cutler ou a um
herói da “folk” como Richard Thompson, e inventando grupos como os Pedestrians,
Wooden Birds, The Pale Boys e – no novo álbum, “Bay City” (inspirado nas
novelas policiais de Raymond Chandler) – os Foreigners, constituído por músicos
noruegueses. Sem nunca deixar de cultivar o gosto pela “surf music” dos Beach
Boys. Outra mania.
Precisamente
num concerto a solo de Thomas com os Wooden Birds, realizado em 1985 na
cidade-natal de Cleveland, o nome dos Pere Ubu voltou a fazer sentido. Mainmone
e Ravenstine eram ambos Wooden Birds. Scott Krauss saiu da assistência em
direção ao palco. “Ele caminhava como um pato, tinha o ar de um pato e grasnava
como um pato. Logo, era mesmo um pato”, lembra David Thomas. O pato juntou-se
aos pássaros de madeira e os Pere Ubu ressuscitaram para mais uma fase
atribulada do sua vida, da qual resultariam até hoje os álbuns “The Tenement
Year” (1988), “Cloudland” (1989), “Worlds in Collision” (1991), Ray Gun
Suitase” (1995) e “Pennsylvania” (1998), e a realização, em Londres, de um
mega-espetáculo inspirado no conceito “Disastodrome”. Thomas criou, por seu
lado, o musical “Mirror Man”, com as participações de Peter Hammill e Linda
Thompson.
É duvidoso
que ele e os seus pares enverguem o “tuxedo” para atuar na noite da próxima
terça-feira, na Reitoria da Universidade de Lisboa. Seja como for, eles já
chumbaram. Com distinção.
PERE UBU
LISBOA
Aula Magna da Universidade de Lisboa, dia 26, às 21h30.
Bilhetes
a 4500$ e 6000$.
ARTES | sexta-feira, 22 setembro 2000
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