04/12/2014

"Brazil Classics 3" + Margareth Menezes - "Ellegibo"



Pop Rock

3 ABRIL 1991
LP’S

O NORDESTE EM CHAMAS


VÁRIOS
Brazil Classics 3
LP / CD, Sire, distri. Warner port.
MARGARETH DE MENEZES
Ellegibo
LP / CD, Polydor, distri. Polygram

Pontes entre a terra-mãe e o céu. Passado e futuro. Ponto de encontro da África, Brasil e o resto de mundo. Duas gerações que se olham e se cruzam, no canto maravilhoso do Baião, no frenesim incendiado do forró, do acordeão e das festas Juninas de Luís Gonzaga, Dominguinhos, Gonzaguinha e Jackson do Pandeiro ao universalismo e sensualidade baiana de Margareth de Menezes, a mesma que “roubou” o “show” a David Byrne durante a “tournée” de “Rei Momo”.
Em Margareth de Menezes, David Byrne vê uma das grandes e mais promissoras vozes da música popular brasileira. “Brazil Classics 3” recupera e homenageia a música dos mestres. Byrne, vem nos compêndios, perdeu-se de amores pelo Brasil. Por lá ficaram a sua música e a sua alma. Se “Rei Momo” juntava a visão nova-iorquina heterodoxa do vocalista dos Talking Heads ao universo imenso e luxuriante dos ritmos sul-americanos, a colectânea “Brazil Classics” mergulha nas raízes e na essência do Brasil negro e mágico, do afoxé e do samba, das favelas e da selva, do Nordeste e do Candomblé, do sofrimento e alegria das gentes do sertão, na voz e canções encantadas de alguns dos seus expoentes.
“Brazil Classics” é música de festa, de ritmos e melodias nordestinos, sintetizados no forró, termo que se diz ter origem, por volta de 1900, nas danças populares organizadas por engenheiros ingleses encarregados de construir o sistema ferroviário daquela região e destinadas a todos os trabalhadores (“forró” seria assim um equivalente fonético de “for all”...). David Byrne chama-lhe “mistura de ska e polca em velocidade acelerada”. Acordeão, triângulo e “zabumba” (tambor baixo) formam a necessária e tradicional combinação instrumental a que formas híbridas posteriores (nomeadamente as infusões funk ou a fusão com o rock, ou fo-rock) acrescentaram os metais, violinos e electricidade.
Luís Gonzaga, falecido há dois anos, o homem dos chapéus enormes e fatos espampanantes (só isso já lhe valeria a admiração de Byrne...), abre magistralmente o disco com “O fole roncou”, forró/xaxado inebriante que canta o amor em volta do fogo, naquele registo único que casa as vertentes pagã e cristã da alma brasileira. Gal Costa, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Anastácia, Nando Cordel e Amelinha, Gonzaguinha, Clemilda, Jorge do Altinho, Genival Lacerda, o Trio Nordestino e Elba Ramalho completam a lista de nomes presentes. Qualquer tema chega para se compreender e, sobretudo, sentir onde se encontra o Brasil autêntico, do fundo, muito longe, séculos antes e depois, do vazio das telenovelas e do romantismo serôdio do ídolo de pés de barro, Roberto Carlos.
Frevos, arrasta-pés, sambas, aboio-toadas – danças que duram toda a noite até de madrugada. Vozes que cantam até a morte da depor, com um beijo, diante dos anjos. Impossível conter um frémito de emoção quando se ouve o “Querubim” de Dominguinhos ou Luís Gonzaga cantar em dueto com Elba Ramalho “Sanfoninha choradiera”. Cantares de centro que queimam de prazer. Alegria que, de tão triste, faz doer.
Com Margareth de Menezes, o Brasil muda de figura. Tornada mundialmente conhecida graças às actuações com que abriu o recente “show” de David Byrne, a cantora junta numa mistura explosiva o reggae, o forró, o funk-samba, a lambada e o afoxé eléctrico com a electrónica, uma voz e corpo de uma sensualidade que enlouqueceu a Europa e uma espiritualidade entroncada na genuína tradição religiosa da Baía.
Evidente a influência africana no modo como a música se exterioriza através das pulsões corporais e da dança (conta quem viu que Margareth a dançar é como um vulcão em actividade). Tropicalismo apoteótico. Energia em estado puro. Diz que, quando canta, “tudo se transforma em energia”. Como um sol.
“Negra melodia”, reggae inspirado directamente em Bob Marley (a quem o compositor Jards Macalé ensinou por sua vez o samba), já anteriormente recuperado por Gilberto Gil; o delírio funky de “Tudo à toa”; a lambada sensual de “Abra a boca e feche os olhos” (atenção arcebispo!); a balada em tons “bluesy” “Maravilha morena” (cuja letra evoca, na musicalidade e jogos que entre si disputam as palavras, os feitiços de Caetano Veloso) ou os ascéticos “Ifá, um canto para subir”, baseado nos rituais do Candomblé (juntamente com “Abra a boca”, os dois temas recuperados da “tournée” “Rei Momo”), e “Hino das águas” são alguns bons exemplos da arte maior de Margareth de Menezes, de resto unanimemente reconhecida pelos consagrados. “Ellegibo” vem de novo, e de forma brilhante, recordar que o mundo existe também para além do Atlântico, em redor do Equador. Muita da música do planeta nasceu e nasce aí.

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