SEGUNDA-FEIRA,
4 DEZEMBRO 2000 cultura
To
Rococo Rot e Aphex Twin “combatem” no Número Festival, em Lisboa
Rave do
inferno
Concerto para
recordar, o dos To Rococo Rot, o melhor de todos os do Número Festival. Animada
pelo espírito dos Can e pela visão de um futuro onde a eletrónica sorri com
rosto humano, a banda alemã ofuscou nos dois últimos dias do festival a “rave”
assassina de Aphex Twin e a gelataria tecno de Kid606.
Trava-se uma dura batalha
entre duas fações antagónicas no panorama atual da música eletrónica e o Número
Festival, que durante três dias decorreu em Lisboa, demarcou os territórios,
contou as armas e arregimentou apoiantes para ambas as partes.
De
um lado perfilam-se os que persistem em encarar a música ao vivo como um ato de
interação afetiva entre pessoas, com músicos no palco assumindo-se como
executantes em tempo real, intérpretes de um ato criativo que exige a
participação ativa de todos. Do outro, a legião dos Dj’s, manipuladores de sons
e conceitos alheios, estrategas de uma nova ordem unificadora de um mundo cada
vez mais dependente de estímulos e imagens.
Na
sexta-feira, o trio alemão To Rococo Rot deu uma lição de como fazer o espírito
dançar. Armados de eletrónica, bateria e um baixo de voz “cósmica”, Stefan
Schneider e os dois irmãos Lippok criaram uma música hipnótica, feita de
subtilezas e impregnada de um swing que por mais de uma vez evocou o tribalismo
etéreo dos Can. Não foi necessário levantar o volume de som a níveis
incomportáveis para um ouvido saudável para prender a assistência – com temas
retirados do álbum “The Amateur View” como “Telema”, “Prado”, “This sandy
piece”, “Tomorrow” ou “Cars” – numa rede de prazer que roçou com suavidade o
“chill out”, convocou os sequenciadores cruzados no espaço sideral dos
Tangerine Dream e ligou os reatores num “groove” orgânico de ritmos tão
complexos e ao mesmo tempo tão em sintonia com os maquinismos internos do corpo
e da mente humanos. Música, se mais adjetivos, com sabor e textura, corpo e
alma, frio e calor, com energia a circular em circuito aberto.
Antes,
Russell Haswell atuou de novo na mesa de DJing a compensar a ausência do
agendado Richard H. Kirk, com a organização a não dar cavaco a ninguém do
sucedido. Será o seu conceito estético de “música eletrónica” de tal forma
unitário e despersonalizado ao ponto de promover a manutenção de uma “vibe”
constante em detrimento da individualização? Refira-se, ainda assim, o superior
desempenho do DJ inglês, bastantes furos acima da sua atuação na véspera,
arriscando mais na imprevisibilidade e na abstração em padrões que procuraram
demarcar-se do catálogo da temporada Outono/Inverno da música de dança…
Sábado,
pela primeira vez, não choveu. E o público correspondeu, proporcionando ao
Número Festival a sua maior enchente dos três dias. People Like Us, alter-ego
de Vicki Bennett, uma rapariga inglesa que aprendeu a usar a eletricidade com
os Negativland, deu início ao programa com uma hora de atraso. Imagens e sons
sincronizados num filme psíquico a abarrotar da imagética “kitsch” dos EUA dos
anos 50, ora infetado por uma visão apocalíptica ora redimido pelo humor. Nada
que os Negativland não tenham feito nos últimos 20 anos, deixando a sensação algo
incómoda da senhora em palco se limitar a trocar os CDs e cassetes e carregar
no botão “on”…
Kid606,
jovem aprendiz autor do recente e promissor “PS I Love You” foi ao vivo mais
agressivo mas também mais previsível do que no disco. Alternou momentos de
(alta) tensão com batidas tecno saídas do congelador. Notou-se a ausência dos
“clicks” de estática, talvez porque as máquinas não estivessem bem
desreguladas…
Depois,
bem, depois foi o massacre. Aphex Twin enfiou-se na mesa dos pratos quase sem
ninguém dar por isso, agachou-se para escapar aos flashes que alguns fotógrafos
de ocasião não paravam de disparar estupidamente aos seus olhos e, talvez por
isso, vingou-se em todos, sem dó nem piedade. Assistiu-se a cerca de duas horas
de violação auditiva, com o volume de som levantado a níveis que desafiaram até
ao limite da capacidade de resistência dos tímpanos, numa demonstração de
virtuosismo e de fúria que apelou às pulsões mais primárias do público. Das
vísceras de um ”drum ‘n’ bass” e “hip hop” abocanhados na carnificina zombie do
filme “Braindead” á tecno do inferno, passando por um “boogie-woogie” a
1000bpm, Aphex Twin foi a ilustração perfeita de um tempo que se aproxima do
fim. “Rave” de homens-máquina amalgamados no “Empire State Human”, o super-homem,
misto de orgulho e de lixo, que os Human League profetizaram em 1979 no álbum
“Reproduction”. Mas dançou-se. Entre o fumo e as gotas de vapor de suor
condensado que pingavam do teto. Dançou-se. Como se a dor fosse a derradeira e
única orquestra que ainda consegue arrancar os corpos da inércia e do vazio.
Dançou-se. A pedir à morte para se demorar ainda um bocadinho. Dançou-se. Como
se não houvesse mais nada a fazer.
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