cultura TERÇA-FEIRA,
30 MAIO 2000
Primeiro
fim-de-semana do festival Cantigas do Maio
Irredutíveis
bretões
Arrancou em
beleza o 11º festival Cantigas do Maio. As mulheres levam, para já, vantagem.
Amélia Muge, Rosa Zaragoza e Nahawa Doumbia passearam o Seixal pelo mundo. Mas,
bem ouvidas as coisas, foram os 30 bretões – na maioria homens – da Bagad
Kemper que se fizeram ouvir mais alto. É que dezenas de bombardas tocadas em
uníssono não são para brincadeiras…
Esteve à altura dos seus
pergaminhos o primeiro fim-de-semana do festival Cantigas do Maio. Na
sexta-feira e no sábado, a tenda Chapitô montada nas antigas instalações da
fábrica Mundet encheu para ouvir a melhor música do mundo.
Saúde-se,
não só a qualidade dos concertos, como a qualidade do público. Ao contrário de
anos anteriores, a fação minoritária dos agitadores – que vai ao festival
essencialmente para não deixar os outros ouvirem música – ou faltou ou não fez
estragos. Pena o simpático cachorro chamado Jacob ter ganido suficientemente
alto para, nalguns momentos, sobrepor a sua voz à de Rosa Zaragoza. Valeu a
competência de um elemento da organização que acrescentou às suas funções a de
ama-seca canino e lá conseguiu acalmar o animal…
Latidos
à parte, Amélia Muge abriu o Cantigas com um reportório com base no seu mais
recente álbum, “Taco a Taco”, acompanhada por um grupo composto por José
Martins (braguesa e percussões), José Salgueiro (percussões), José Manuel David
(trompa, flauta, kissange), Mário Delgado (guitarra) e Yuri Daniel
(conhtrabaixo). Total empatia entre os músicos e uma boa disposição contagiante
criaram aquilo a que os ingleses chamam “positive vibe” e nós uma “boa onda”.
Amélia esteve acrobata nos gestos e na voz, mostrando que a sua música há muito
que descolou dos terrenos demarcados da tradição. A juntar aos seus talentos de
compositora, cantora e letrista, Amélia revelou-se na ocasião também uma
inspirada criadora de quadras populares, algumas de pé quebrado, é certo, mas
sempre se genuíno sabor popular, que usou para apresentar os temas e os músicos
da banda. Encarregado de apresentá-la a ela, José Martins correspondeu por sua
vez com um naco poético na melhor tradição do Alexandre O’Neill publicitário:
“Nasceu uma estrélia: Amélia!”.
Da
Catalunha veio a música das tradições cristã, árabe e sefardita que moldam a
cultura de Espanha, na voz de Rosa Zaragoza. Ora num registo intimista, ora num
tom mais arrebatador, como numa canção sobre bruxas, a autora das “Canções de
Embalar do Mediterrâneo” e de “O Espírito de Al-Andalus” trouxe consigo as
cores fortes – do vestuário à voz – do Sul. Destaque para o virtuosismo do
percussionista, evidenciado num longo solo no “def”, espécie de “bodhran” de
sonoridade mais profunda.
A onda sísmica
Se
na sexta já era difícil encontrar um lugar sentado na Fábrica Mundet – este ano
com uma nova e mais racional disposição das bancadas – no sábado era
absolutamente impossível. Ambiente ideal que a cantora do Mali, Nahawa Doumbia,
e sua banda aproveitaram da melhor maneira, com uma música na qual as
percussões e o ritmo mandam e onde a voz passa como uma cobra, na tradição dos
blues africanos depurados por Ali Farka Touré. O efeito é hipnótico e obriga à
dança. Rosa Zaragoza que o diga, já que não parou quieta um só momento…
A
“temida” onda sísmica chegou a seguir, com os cerca de 30 bretões da Bagad
Kemper, de adolescentes imberbes a respeitáveis anciãos, a comprimirem-se em
várias filas de ataque sobre o palco. Cinco “biniou-koz” (gaita-de-foles,
instrumento que entrou para as bagads com fins terapêuticos, digamos assim,
para permitir aos “sonneurs” de bombarda alguns segundos de descanso…), para aí
umas vinte bombardas (oboé rústico, de sonoridade vibrante) e uma secção de
percussões, explodiram em diversas combinações recordando os tempos em que a
música céltica tinha funções militares e como principal objetivo fazer tremer e
fugir o inimigo no campo de batalha…
Seguindo
de perto o alinhamento do revolucionário “Hep Diskrog” (disco seminal para o
futuro das bagads), a Bagad Kemper teve um desempenho que alguns consideraram
“épico” e outros “um ataque sónico”. Um solo de caixas de rufar, com os quatro
músicos em movimentos perfeitamente sincronizados, diálogos e solos de biniou e
bombarda e, sobretudo, as formidáveis massas sonoras do conjunto puseram em
sentido a assistência que, no final, meio surda, pediu mais.
O
festival prosseguiu até de madrugada na tenda de convívio montada uns metros
mais abaixo. Aí, a disciplina perdeu-se um pouco, num mar de bretões, um
asturiano, portugueses (incluindo o grupo algarvio Vai-de-Viró), cerveja, uma
gaita-de-foles a saltar de mão em mão no meio de um caos esfuziante. No
exterior, a música de José Afonso passava imperturbável nos altifalantes. A dar
sentido à festa.
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