05/12/2014

Irredutíveis bretões [11º Festival Cantigas do Maio]



cultura TERÇA-FEIRA, 30 MAIO 2000

Primeiro fim-de-semana do festival Cantigas do Maio

Irredutíveis bretões

Arrancou em beleza o 11º festival Cantigas do Maio. As mulheres levam, para já, vantagem. Amélia Muge, Rosa Zaragoza e Nahawa Doumbia passearam o Seixal pelo mundo. Mas, bem ouvidas as coisas, foram os 30 bretões – na maioria homens – da Bagad Kemper que se fizeram ouvir mais alto. É que dezenas de bombardas tocadas em uníssono não são para brincadeiras…

Esteve à altura dos seus pergaminhos o primeiro fim-de-semana do festival Cantigas do Maio. Na sexta-feira e no sábado, a tenda Chapitô montada nas antigas instalações da fábrica Mundet encheu para ouvir a melhor música do mundo.
            Saúde-se, não só a qualidade dos concertos, como a qualidade do público. Ao contrário de anos anteriores, a fação minoritária dos agitadores – que vai ao festival essencialmente para não deixar os outros ouvirem música – ou faltou ou não fez estragos. Pena o simpático cachorro chamado Jacob ter ganido suficientemente alto para, nalguns momentos, sobrepor a sua voz à de Rosa Zaragoza. Valeu a competência de um elemento da organização que acrescentou às suas funções a de ama-seca canino e lá conseguiu acalmar o animal…
            Latidos à parte, Amélia Muge abriu o Cantigas com um reportório com base no seu mais recente álbum, “Taco a Taco”, acompanhada por um grupo composto por José Martins (braguesa e percussões), José Salgueiro (percussões), José Manuel David (trompa, flauta, kissange), Mário Delgado (guitarra) e Yuri Daniel (conhtrabaixo). Total empatia entre os músicos e uma boa disposição contagiante criaram aquilo a que os ingleses chamam “positive vibe” e nós uma “boa onda”. Amélia esteve acrobata nos gestos e na voz, mostrando que a sua música há muito que descolou dos terrenos demarcados da tradição. A juntar aos seus talentos de compositora, cantora e letrista, Amélia revelou-se na ocasião também uma inspirada criadora de quadras populares, algumas de pé quebrado, é certo, mas sempre se genuíno sabor popular, que usou para apresentar os temas e os músicos da banda. Encarregado de apresentá-la a ela, José Martins correspondeu por sua vez com um naco poético na melhor tradição do Alexandre O’Neill publicitário: “Nasceu uma estrélia: Amélia!”.
            Da Catalunha veio a música das tradições cristã, árabe e sefardita que moldam a cultura de Espanha, na voz de Rosa Zaragoza. Ora num registo intimista, ora num tom mais arrebatador, como numa canção sobre bruxas, a autora das “Canções de Embalar do Mediterrâneo” e de “O Espírito de Al-Andalus” trouxe consigo as cores fortes – do vestuário à voz – do Sul. Destaque para o virtuosismo do percussionista, evidenciado num longo solo no “def”, espécie de “bodhran” de sonoridade mais profunda.

A onda sísmica

            Se na sexta já era difícil encontrar um lugar sentado na Fábrica Mundet – este ano com uma nova e mais racional disposição das bancadas – no sábado era absolutamente impossível. Ambiente ideal que a cantora do Mali, Nahawa Doumbia, e sua banda aproveitaram da melhor maneira, com uma música na qual as percussões e o ritmo mandam e onde a voz passa como uma cobra, na tradição dos blues africanos depurados por Ali Farka Touré. O efeito é hipnótico e obriga à dança. Rosa Zaragoza que o diga, já que não parou quieta um só momento…
            A “temida” onda sísmica chegou a seguir, com os cerca de 30 bretões da Bagad Kemper, de adolescentes imberbes a respeitáveis anciãos, a comprimirem-se em várias filas de ataque sobre o palco. Cinco “biniou-koz” (gaita-de-foles, instrumento que entrou para as bagads com fins terapêuticos, digamos assim, para permitir aos “sonneurs” de bombarda alguns segundos de descanso…), para aí umas vinte bombardas (oboé rústico, de sonoridade vibrante) e uma secção de percussões, explodiram em diversas combinações recordando os tempos em que a música céltica tinha funções militares e como principal objetivo fazer tremer e fugir o inimigo no campo de batalha…
            Seguindo de perto o alinhamento do revolucionário “Hep Diskrog” (disco seminal para o futuro das bagads), a Bagad Kemper teve um desempenho que alguns consideraram “épico” e outros “um ataque sónico”. Um solo de caixas de rufar, com os quatro músicos em movimentos perfeitamente sincronizados, diálogos e solos de biniou e bombarda e, sobretudo, as formidáveis massas sonoras do conjunto puseram em sentido a assistência que, no final, meio surda, pediu mais.
            O festival prosseguiu até de madrugada na tenda de convívio montada uns metros mais abaixo. Aí, a disciplina perdeu-se um pouco, num mar de bretões, um asturiano, portugueses (incluindo o grupo algarvio Vai-de-Viró), cerveja, uma gaita-de-foles a saltar de mão em mão no meio de um caos esfuziante. No exterior, a música de José Afonso passava imperturbável nos altifalantes. A dar sentido à festa.

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