CULTURA
SEXTA-FEIRA,
2 AGO 2002
Jazz com outro gosto no Jazz em Agosto
FESTIVAL COMEÇA HOJE NA GULBENKIAN
Chicago e Reino Unido. Jazz e
algo mais. São os dois eixos de sustentação de um festival para o qual jazz não
liga com preconceito. Keith Tippett, Barry Guy, Evan Parker, Marilyn Crispell,
Fred Anderson e Chicago Underground Quartet irão atrair para a sua causa também
o público rock
Foi mais ou
menos a meio da década de 60 que o jazz e o rock começaram a reparar na
existência um do outro. O jazz condescendeu em deitar uma vista de olhos ao
rock e o que viu agradou-lhe. O rock perdeu o respeito ao jazz e mordeu-lhe as
canelas. O casamento era inevitável. Chamou-se “jazz rock” antes de se chamar
“fusão”.
Miles Davis lançou a bíblia “Bitches
Brew” em 1969, mas a “beat generation” há anos que escutava com atenção o que
se passava do “outro lado”. Desde então muitas certezas ficaram pelo caminho.
Entre o jazz “downtown” e algum pós-rock o caminho é curto.
É essa margem de incerteza, mas
também por isso, de descoberta, que o Festival Jazz em Agosto, cuja 19ª edição
arranca hoje na Gulbenkian, em Lisboa, e se prolonga até dia 10, se propõe dar
a conhecer a franjas de público com educação musical e sensibilidade
suficientes para beberem a cicuta da transgressão e navegarem entre a nascente
e a foz de tradições que não passam por Nova Iorque.
Há um jazz que agrada ao público de
rock (o oposto já não é tão verdadeiro…). Jazz aberto, interveniente,
descomprometido, experimental. Jazz negro, jazz branco, jazz mestiçado de
geografias várias, algumas delas imaginárias.
É algum desse jazz sem fronteiras
que o Jazz em Agosto traz a Portugal, durante nove dias recheados de concertos,
conferências e “workshops” que já andam a pôr a cabeça em água a muita gente.
No Grande Auditório da Gulbenkian, no Anfiteatro ao ar livre, na sala
Polivalente e no Auditório 2. De tarde e à noite. Para nos empanturrarmos. De
petiscos. Porque palha é coisa que não há, numa programação que consideramos um
verdadeiro luxo.
Dois eixos, Chicago e Reino Unido,
permitem estabelecer a ponte. Chicago é a sede americana do pós-rock (ou do
pós-jazz…), cultivado por grupos como os Tortoise, DKV, Isotope 217 e Chicago
Underground (duo, trio, quartet…). Estes últimos – formação composta por Rob
Mazurek, Chad Taylor, Noel Kupersmith e Jeff Parker – estarão presentes no Jazz
em Agosto, num dos concertos aguardados com maior expetativa.
Do outro lado do Atlântico, a
Inglaterra conferiu um significado novo ao “free jazz” e chamou-lhe “free
music”. “Music” e não “jazz”. A marcar uma posição e a desmarcar o jazz como
reserva, região demarcada.
Mas voltemos atrás, e viajemos de
novo até aos anos 60 e à Inglaterra. O rock andava encandeado pelo
psicadelismo. O mesmo era dizer que o LSD corria com abundância. Considerando
que o jazz nunca foi propriamente abstémio, era natural que o binómio
onirismo/LSD não passasse despercebido aos “jazzmen” da Velha Albion. Não
passou. Desde 1965 que Londres vibrava nas metamorfoses de um caleidoscópio de
sonhos musicais coloridos. Jazz e rock confundiam-se numa teia esfusiante de
experiências partilhadas que prosseguiria, já no contexto do rock progressivo,
pelos anos 70. Foi o “boom” da “free music”. Músicos de jazz formaram bandas de
rock. Ray Russell, John Surman, Ken Hyder, Mike Westbrook, Michael Gibbs, Neil
Ardley misturaram os saxofones e as guitarras elétricas, esticando e deformando
o velho “4/4”.
Os Soft Machine tinham começado por
ser irmãos espirituais dos Pink Floyd mas acabaram por juntar o psicadelismo ao
jazz mais cerebral. E se formações como os Trio, Amalgam, Ovary Lodge,
Spontaneous Music Ensemble ou AMM não eram propriamente fáceis de assimilar
pelo “mainstream”, mesmo nessa época de permissividade cultural, outras como os
Back Door, Rock Workshop, Isotope ou Nucleus penetravam como um vírus carregado
de “speed” nos neurónios dos estudantes para quem ser “arty” era estar na
crista do momento.
Toda esta cena borbulhante eclodiu e
gritou bem alto o clima de entusiasmo e utopia que então se vivia, com a super-orquestra
Centipede, promotora de uma reunião histórica que daria origem ao duplo-álbum
“Septober Energy”. Dois meses num: Setembro e Outubro. Duas músicas numa: jazz
e rock.
Keith Tippett foi o grande
impulsionador deste projeto. Também ele estará presente no Jazz em Agosto, em
piano solo e, num concerto de encerramento que se antevê apoteótico, com a sua
Tapestry Orchestra, “big band” em cujas fileiras pontificam nomes lendários do
jazz inglês dos anos 60 e 70, ainda hoje expoentes dessa forma muito “british”
de responder aos “blues” negros com uma lição de matemática esquizoide: Elton
Dean (fez parte dos Soft Machine, no seu período áureo, dos álbuns “Third”,
“4th” e “5”), Henry Lowther, Mark Charig (“session man” em álbuns dos King
Crimson), Paul Rutherford, Malcolm Griffiths, Julie Tippetts (a ex-rocker Julie
Driscoll, atual mulher de Keith Tippett e autora de um álbum espectral, “Sunset
Glow”), Maggie Nicols, Louis Moholo… Ainda Paul Dunmall, Paul Rogers e Tony
Levin que, juntamente com Keith Tippett, formam o quarteto Mujician.
Monstros e uma gata
Tippett, já
se vê, é um dos nomes sem os quais o jazz inglês não teri sido capaz de abolir
o preconceito. Gravou na editora de rock progressivo Vertigo o álbum “Dedicated
to you but you weren´t Listening”, disseminou pérolas de piano elétrico em três
álbuns dos King Crimson, rigiu o monumento em honra dos heróis, Centipede,
montou outra “big band”, os Ark, instituiu, enfim, uma forma de jazz em que o
vórtice do “free” não dispensava algumas das regras de etiqueta que são
apanágio de todo o “gentleman”. Tippett e alguns outros elementos da sua
orquestra tocarão ainda integrados no octeto de Paul Dunmall, o homem que teve
a ousadia de trazer a gaita-de-foles para a música de jazz.
Outro dos nomes-choque do festival é
o do baixista Barry Guy. Fez parte, nos anos da loucura, Spontaneous Music
Ensemble, Amalgam, Iskra 1903 e da “escola” London Jazz Composers Orchestra. O
Jazz em Agosto recebê-lo-á em contrabaixo solo, com a sua Barry Guy New
Orchestra (o programa assim o anuncia, mas suspeitamos que será antes “Now
Orchestra”, a mesma que pode ser escutada em “Study – Witch Gong Game
11/10”...), em quarteto com Marilyn Crispell, Mats Gustafsson e Raymond Strid,
e em trio com Evan Parker.
O que nos leva a bufar de novo de
excitação e a tirar o chapéu ao programador do festival. É que tanto Marilyn
Crispell como Evan Parker são outros “monstros sagrados” do novo jazz
internacional. Crispell é gata de jazz, ou jazz de gatas, arranhões e
arabescos, gritos e lâminas cortantes, pianista de outra galáxa que não teria
tido medo de caminhar ao lado das notas de Contrane, da mesma forma que não
receou fazê-lo ao lado de Anthony Braxton.
Evan Parker é uma espécie de Deus. A
família da música improvisada contemporânea tem o seu apelido. Parker, como o
outro, Charlie de seu nome, inventou um mundo próprio mas tão vasto que outros
se instalaram dentro dele. É a improvisação como corrente indomável mas também
como sinfonia. O saxofone soprano, tocado por Evan Parker, é uma nave espacial
voando entre as estrelas. Menção especial ainda para um dos percussionistas
menos catalogáveis da música improvisada, Paul Lytton, bateria, percussão e
“live electronics” em busca constante de novos horizontes.
Ritual Chicago
Do outro
lado do Atlântico, a linha do horizonte dobra-se em Chicago. Dos Chicago
Underground, que em Lisboa serão Quartet, já se disse alguma coisa. Atuam no
território em constante mutação onde o jazz, o rock, a eletrónica e o
inesperado cruzam armas e argumentos. Os Art Ensemble of Chicago, seus
progenitores espirituais, prezavam a liberdade com outra força. Eram a selva
que irrompe na cidade. O quarteto liderado por Rob Mazurek e Chad Taylor é mais
um caçador de feras virtuais. Há diferenças na ferocidade e na intensidade dos
rugidos. Mas é igual a verdade de ambos: o ritual.
Com cartão de sócio da Association
for the Advancement of Creative Musicians (AACM), Fred Anderson (sax tenor) e
Hamid Drake (bacteria) prometem ser outro dos grandes momentos do Jazz em
Agosto. Ao duo juntar-se-á o contrabaixista Peter Kowald, compondo o Fred
Anderson Trio. Jeb Bishop (trombone) apresenta-se, por seu lado, em trio com
Kent Kessler e Tim Mulvenna. Bishop trabalha regularmente com o saxofonista e
atual “enfant terrible” da cena de Chicago, Ken Vandermark. Chega, como
garantia.
Fora do perímetro, mas bem dentro do
espírito de abertura que caracteriza a 19ª edição do Jazz em Agosto, a surpresa
poderá surgir do jazz de câmara da formação norueguesa Different Rivers, sob a
liderança do saxofonista Trygve Seim, do grupo multinacional Essencia, composto
por um músico alemão (Gebhard Ullman), um suíço (a pianista Sylvie Courvoisier)
e um português (o contrabaixista Carlos Bica), do duo de contrabaixos nacional
formado por Carlos Bica e Carlos Barretto (ainda a fumegar do seu
extraordinário encontro com Louis Sclavis, no novo álbum “Radio Song”) ou dos
Lisboa Improvisation Players, com a presença de Steve Adams, membro regular do
Rova Saxophone Quartet. O pós-jazzrock e o conceito multimédia nascerão do
encontro do saxofonista Mats Gustafsson e da dança de Lotta Melin, no
espetáculo “Bevllo-hallat Hhu/Ö”.
É muita e fora-de-série a música que
animará a primeira metade de Agosto na Gulbenkian. O melhor jazz, como o melhor
Verão, é único e irrepetível – fora de série.
MAPA DE CONCERTOS CHICAGO VS. REINO UNIDO
SEXTA, 2
TRYGVE SEIM “Different Rivers”
Grande
Auditório, 21h30
Bilhetes
entre 12,50 e 17,59 euros
SÁBADO, 3
FRED ANDERSON/HAMID DRAKE
Sala
Polivalente, 15h30
Bilhetes a
10 euros
ESSENCIA
Auditório 2,
18h30
Bilhetes a
10 euros
CHICAGO UNDERGROUND QUARTET
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
DOMINGO, 4
CARLOS BICA/CARLOS BARRETTO
Sala
Polivalente, 15h30
Bilhetes a
10 euros
JEB BISHOP TRIO
Auditório 2,
18h30
Bilhetes a
10 euros
FRED ANDERSON TRIO
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
QUARTA, 7
MARILYN
CRISPELL + MATS GUSTAFSSON + BARRY GUY + RAYMOND STRID
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
QUINTA, 8
BARRY GUY
Auditório 2,
18h30
Bilhetes a
10 euros
PAUL DUNMALL OCTET
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
SEXTA, 9
KEITH
TIPPETT
Sala
Polivalente, 15h30
Bilhetes a
10 euros
LISBON IMPROVISATION PLAYERS
Auditório 2,
18h30
Bilhetes a
10 euros
BARRY GUY NOW ORCHESTRA
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
SÁBADO, 10
MATS
GUSTAFSSON + LOTTA MELIN
Sala
Polivalente, 15h30
Bilhetes a
10 euros
BARRY GUY
+ EVAN PARKER + PAUL LYTTON
Auditório 2,
18h30
Bilhetes a
10 euros
KEITH TIPPETT TAPESTRY ORCHESTRA
Anfiteatro
ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a
12,50 euros
A
programação do Jazz em Agosto inclui ainda uma conferência por John Corbett
(“Chicago Now: Creativa Music Renaissance”), sexta, 2, na Sala Polivalente, às
18h30; “Le Champ Jazzistique”, lançamento do livro, por Alexandre Pierrepont,
quarta, 7, na Sala das Tapaçarias, às 17h; mesa redonda com Bill Shoemaker e
músicos britânicos, quarta, 7, na Sala Polivalente, às 18h30; conferência de
Jorge Lima Barreto (“Perigrafias do Jazz”), quinta, 8, na Sala Polivalente, às
15h30, todos com entrada livre; e um “workshop” de contrabaixo, com orientação
de Ken Filiano, quarta, 7, na Sala Polivalente, das 10h às 12h (nº limite de
participantes: 15)
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