18/10/2016

Jazz com outro gosto no Jazz em Agosto

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 2 AGO 2002

Jazz com outro gosto no Jazz em Agosto

FESTIVAL COMEÇA HOJE NA GULBENKIAN

Chicago e Reino Unido. Jazz e algo mais. São os dois eixos de sustentação de um festival para o qual jazz não liga com preconceito. Keith Tippett, Barry Guy, Evan Parker, Marilyn Crispell, Fred Anderson e Chicago Underground Quartet irão atrair para a sua causa também o público rock

Foi mais ou menos a meio da década de 60 que o jazz e o rock começaram a reparar na existência um do outro. O jazz condescendeu em deitar uma vista de olhos ao rock e o que viu agradou-lhe. O rock perdeu o respeito ao jazz e mordeu-lhe as canelas. O casamento era inevitável. Chamou-se “jazz rock” antes de se chamar “fusão”.
            Miles Davis lançou a bíblia “Bitches Brew” em 1969, mas a “beat generation” há anos que escutava com atenção o que se passava do “outro lado”. Desde então muitas certezas ficaram pelo caminho. Entre o jazz “downtown” e algum pós-rock o caminho é curto.
            É essa margem de incerteza, mas também por isso, de descoberta, que o Festival Jazz em Agosto, cuja 19ª edição arranca hoje na Gulbenkian, em Lisboa, e se prolonga até dia 10, se propõe dar a conhecer a franjas de público com educação musical e sensibilidade suficientes para beberem a cicuta da transgressão e navegarem entre a nascente e a foz de tradições que não passam por Nova Iorque.
            Há um jazz que agrada ao público de rock (o oposto já não é tão verdadeiro…). Jazz aberto, interveniente, descomprometido, experimental. Jazz negro, jazz branco, jazz mestiçado de geografias várias, algumas delas imaginárias.
            É algum desse jazz sem fronteiras que o Jazz em Agosto traz a Portugal, durante nove dias recheados de concertos, conferências e “workshops” que já andam a pôr a cabeça em água a muita gente. No Grande Auditório da Gulbenkian, no Anfiteatro ao ar livre, na sala Polivalente e no Auditório 2. De tarde e à noite. Para nos empanturrarmos. De petiscos. Porque palha é coisa que não há, numa programação que consideramos um verdadeiro luxo.
            Dois eixos, Chicago e Reino Unido, permitem estabelecer a ponte. Chicago é a sede americana do pós-rock (ou do pós-jazz…), cultivado por grupos como os Tortoise, DKV, Isotope 217 e Chicago Underground (duo, trio, quartet…). Estes últimos – formação composta por Rob Mazurek, Chad Taylor, Noel Kupersmith e Jeff Parker – estarão presentes no Jazz em Agosto, num dos concertos aguardados com maior expetativa.
            Do outro lado do Atlântico, a Inglaterra conferiu um significado novo ao “free jazz” e chamou-lhe “free music”. “Music” e não “jazz”. A marcar uma posição e a desmarcar o jazz como reserva, região demarcada.
            Mas voltemos atrás, e viajemos de novo até aos anos 60 e à Inglaterra. O rock andava encandeado pelo psicadelismo. O mesmo era dizer que o LSD corria com abundância. Considerando que o jazz nunca foi propriamente abstémio, era natural que o binómio onirismo/LSD não passasse despercebido aos “jazzmen” da Velha Albion. Não passou. Desde 1965 que Londres vibrava nas metamorfoses de um caleidoscópio de sonhos musicais coloridos. Jazz e rock confundiam-se numa teia esfusiante de experiências partilhadas que prosseguiria, já no contexto do rock progressivo, pelos anos 70. Foi o “boom” da “free music”. Músicos de jazz formaram bandas de rock. Ray Russell, John Surman, Ken Hyder, Mike Westbrook, Michael Gibbs, Neil Ardley misturaram os saxofones e as guitarras elétricas, esticando e deformando o velho “4/4”.
            Os Soft Machine tinham começado por ser irmãos espirituais dos Pink Floyd mas acabaram por juntar o psicadelismo ao jazz mais cerebral. E se formações como os Trio, Amalgam, Ovary Lodge, Spontaneous Music Ensemble ou AMM não eram propriamente fáceis de assimilar pelo “mainstream”, mesmo nessa época de permissividade cultural, outras como os Back Door, Rock Workshop, Isotope ou Nucleus penetravam como um vírus carregado de “speed” nos neurónios dos estudantes para quem ser “arty” era estar na crista do momento.
            Toda esta cena borbulhante eclodiu e gritou bem alto o clima de entusiasmo e utopia que então se vivia, com a super-orquestra Centipede, promotora de uma reunião histórica que daria origem ao duplo-álbum “Septober Energy”. Dois meses num: Setembro e Outubro. Duas músicas numa: jazz e rock.
            Keith Tippett foi o grande impulsionador deste projeto. Também ele estará presente no Jazz em Agosto, em piano solo e, num concerto de encerramento que se antevê apoteótico, com a sua Tapestry Orchestra, “big band” em cujas fileiras pontificam nomes lendários do jazz inglês dos anos 60 e 70, ainda hoje expoentes dessa forma muito “british” de responder aos “blues” negros com uma lição de matemática esquizoide: Elton Dean (fez parte dos Soft Machine, no seu período áureo, dos álbuns “Third”, “4th” e “5”), Henry Lowther, Mark Charig (“session man” em álbuns dos King Crimson), Paul Rutherford, Malcolm Griffiths, Julie Tippetts (a ex-rocker Julie Driscoll, atual mulher de Keith Tippett e autora de um álbum espectral, “Sunset Glow”), Maggie Nicols, Louis Moholo… Ainda Paul Dunmall, Paul Rogers e Tony Levin que, juntamente com Keith Tippett, formam o quarteto Mujician.

Monstros e uma gata

Tippett, já se vê, é um dos nomes sem os quais o jazz inglês não teri sido capaz de abolir o preconceito. Gravou na editora de rock progressivo Vertigo o álbum “Dedicated to you but you weren´t Listening”, disseminou pérolas de piano elétrico em três álbuns dos King Crimson, rigiu o monumento em honra dos heróis, Centipede, montou outra “big band”, os Ark, instituiu, enfim, uma forma de jazz em que o vórtice do “free” não dispensava algumas das regras de etiqueta que são apanágio de todo o “gentleman”. Tippett e alguns outros elementos da sua orquestra tocarão ainda integrados no octeto de Paul Dunmall, o homem que teve a ousadia de trazer a gaita-de-foles para a música de jazz.
            Outro dos nomes-choque do festival é o do baixista Barry Guy. Fez parte, nos anos da loucura, Spontaneous Music Ensemble, Amalgam, Iskra 1903 e da “escola” London Jazz Composers Orchestra. O Jazz em Agosto recebê-lo-á em contrabaixo solo, com a sua Barry Guy New Orchestra (o programa assim o anuncia, mas suspeitamos que será antes “Now Orchestra”, a mesma que pode ser escutada em “Study – Witch Gong Game 11/10”...), em quarteto com Marilyn Crispell, Mats Gustafsson e Raymond Strid, e em trio com Evan Parker.
            O que nos leva a bufar de novo de excitação e a tirar o chapéu ao programador do festival. É que tanto Marilyn Crispell como Evan Parker são outros “monstros sagrados” do novo jazz internacional. Crispell é gata de jazz, ou jazz de gatas, arranhões e arabescos, gritos e lâminas cortantes, pianista de outra galáxa que não teria tido medo de caminhar ao lado das notas de Contrane, da mesma forma que não receou fazê-lo ao lado de Anthony Braxton.
            Evan Parker é uma espécie de Deus. A família da música improvisada contemporânea tem o seu apelido. Parker, como o outro, Charlie de seu nome, inventou um mundo próprio mas tão vasto que outros se instalaram dentro dele. É a improvisação como corrente indomável mas também como sinfonia. O saxofone soprano, tocado por Evan Parker, é uma nave espacial voando entre as estrelas. Menção especial ainda para um dos percussionistas menos catalogáveis da música improvisada, Paul Lytton, bateria, percussão e “live electronics” em busca constante de novos horizontes.

Ritual Chicago

Do outro lado do Atlântico, a linha do horizonte dobra-se em Chicago. Dos Chicago Underground, que em Lisboa serão Quartet, já se disse alguma coisa. Atuam no território em constante mutação onde o jazz, o rock, a eletrónica e o inesperado cruzam armas e argumentos. Os Art Ensemble of Chicago, seus progenitores espirituais, prezavam a liberdade com outra força. Eram a selva que irrompe na cidade. O quarteto liderado por Rob Mazurek e Chad Taylor é mais um caçador de feras virtuais. Há diferenças na ferocidade e na intensidade dos rugidos. Mas é igual a verdade de ambos: o ritual.
            Com cartão de sócio da Association for the Advancement of Creative Musicians (AACM), Fred Anderson (sax tenor) e Hamid Drake (bacteria) prometem ser outro dos grandes momentos do Jazz em Agosto. Ao duo juntar-se-á o contrabaixista Peter Kowald, compondo o Fred Anderson Trio. Jeb Bishop (trombone) apresenta-se, por seu lado, em trio com Kent Kessler e Tim Mulvenna. Bishop trabalha regularmente com o saxofonista e atual “enfant terrible” da cena de Chicago, Ken Vandermark. Chega, como garantia.
            Fora do perímetro, mas bem dentro do espírito de abertura que caracteriza a 19ª edição do Jazz em Agosto, a surpresa poderá surgir do jazz de câmara da formação norueguesa Different Rivers, sob a liderança do saxofonista Trygve Seim, do grupo multinacional Essencia, composto por um músico alemão (Gebhard Ullman), um suíço (a pianista Sylvie Courvoisier) e um português (o contrabaixista Carlos Bica), do duo de contrabaixos nacional formado por Carlos Bica e Carlos Barretto (ainda a fumegar do seu extraordinário encontro com Louis Sclavis, no novo álbum “Radio Song”) ou dos Lisboa Improvisation Players, com a presença de Steve Adams, membro regular do Rova Saxophone Quartet. O pós-jazzrock e o conceito multimédia nascerão do encontro do saxofonista Mats Gustafsson e da dança de Lotta Melin, no espetáculo “Bevllo-hallat Hhu/Ö”.
            É muita e fora-de-série a música que animará a primeira metade de Agosto na Gulbenkian. O melhor jazz, como o melhor Verão, é único e irrepetível – fora de série.

MAPA DE CONCERTOS CHICAGO VS. REINO UNIDO

SEXTA, 2
TRYGVE SEIM “Different Rivers”
Grande Auditório, 21h30
Bilhetes entre 12,50 e 17,59 euros

SÁBADO, 3
FRED ANDERSON/HAMID DRAKE
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

ESSENCIA
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

CHICAGO UNDERGROUND QUARTET
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

DOMINGO, 4
CARLOS BICA/CARLOS BARRETTO
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

JEB BISHOP TRIO
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

FRED ANDERSON TRIO
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

QUARTA, 7
MARILYN CRISPELL + MATS GUSTAFSSON + BARRY GUY + RAYMOND STRID
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

QUINTA, 8
BARRY GUY
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

PAUL DUNMALL OCTET
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

SEXTA, 9
KEITH TIPPETT
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

LISBON IMPROVISATION PLAYERS
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

BARRY GUY NOW ORCHESTRA
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros

SÁBADO, 10
MATS GUSTAFSSON + LOTTA MELIN
Sala Polivalente, 15h30
Bilhetes a 10 euros

BARRY GUY + EVAN PARKER + PAUL LYTTON
Auditório 2, 18h30
Bilhetes a 10 euros

KEITH TIPPETT TAPESTRY ORCHESTRA
Anfiteatro ao Ar Livre, 21h30
Bilhetes a 12,50 euros


A programação do Jazz em Agosto inclui ainda uma conferência por John Corbett (“Chicago Now: Creativa Music Renaissance”), sexta, 2, na Sala Polivalente, às 18h30; “Le Champ Jazzistique”, lançamento do livro, por Alexandre Pierrepont, quarta, 7, na Sala das Tapaçarias, às 17h; mesa redonda com Bill Shoemaker e músicos britânicos, quarta, 7, na Sala Polivalente, às 18h30; conferência de Jorge Lima Barreto (“Perigrafias do Jazz”), quinta, 8, na Sala Polivalente, às 15h30, todos com entrada livre; e um “workshop” de contrabaixo, com orientação de Ken Filiano, quarta, 7, na Sala Polivalente, das 10h às 12h (nº limite de participantes: 15)

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