CULTURA
TERÇA-FEIRA,
16 OUT 2002
CESÁRIA ÉVORA E LURA
Duas fontes de Cabo Verde
São duas gerações e dois modos distintos de cantar a música
cabo-verdiana. Mas o amor é o mesmo. Hoje, no Porto, e amanhã, em Lisboa
Cesária Évora, diva da música cabo-verdiana e embaixadora
cultural do seu país no mundo, regressa aos palcos portugueses para dois
concertos, nos coliseus do Porto e de Lisboa, respetivamente hoje e amanhã. A
jovem Lura assegura a primeira parte dos concertos, podendo deste modo assistir-se
ao "confronto" entre dois modos distintos de cantar e sentir a música
de Cabo Verde.
Cesária,
a autenticidade, a força e a saudade atlânticas, confirmará o que através dela
há muito se sabe: que, por vezes, uma simples onda de dor chega para virar o
barco da vida. Nas ilhas e das ilhas, pertence-lhe o amor que vence distâncias.
Discos como "Miss Perfumado", "São Vicente di Longe" e a atual
"Anthologie: Mornas e Coladeiras" (acabada de ser galardoada
"disco de ouro" em Portugal, o que pela primeira vez acontece com um
álbum seu no nosso país), são a demonstração do que a saudade é quando vivida
nas praias de além-mar: "Sodade", um balanço nostálgico em que a alma
se perde e se ganha, em limos, espuma e naufrágios. Cesária leva-nos com ela.
Lura é
o reverso da medalha, a imagem de juventude e de rebeldia. Já com um álbum
gravado, "In Love", a cantora, nascida há 27 anos em Portugal, filha
de pais cabo-verdianos, sente a "honra" mas também a
"responsabilidade" de abrir o duplo concerto da diva. Espera que o
público esteja recetivo ao que traz "de novo à música de Cabo Verde",
em espetáculos acústicos e intimistas, o seu formato "favorito".
"As
pessoas conhecem mais as mornas e as coladeiras, esquecendo-se do funaná, da
tabanka, da mazurka, do batuque...", diz a cantora, salientando a
importância não só da diferença como de uma música que só a ela lhe pertence. "Há
outras músicas que são só minhas, que eu sinto e canto à minha maneira, além
disso vou cantar temas de Pantera, um compositor que morreu recentemente, muito
jovem", acrescenta.
Lura
canta há oito anos, além de se dedicar também ao teatro. "Às vezes somos
pintores e julgamos que não sabemos pintar. O meu caso foi um bocado assim.
Nunca me passou pela cabeça que poderia cantar, o que eu gostava era de ser
bailarina, até que um dia fui convidada para cantar num disco de Juca, um
são-tomense. Como é que eu podia cantar num disco, com esta voz de bagaço?
Cantava num tom muito grave, não conseguia chegar aos agudos quando as minhas
amigas cantavam o 'Parabéns a Você' [risos]. Foi o Juca que me disse que eu
tinha uma ótima voz. Lá me convenceu...".
A voz é
grave. Como graves são os sentimentos. Não por acaso, Lura incorpora na sua
música a verdade da "soul". Cabo Verde está, porém, sempre presente.
"Aos poucos, e como resultado de várias viagens à terra dos meus pais,
fui-me sentindo cada vez mais cabo-verdiana. Alguns dos jovens que lá vivem não
dão valor às suas tradições, mas depois chegam a Portugal, ouvem uma morna e
são capazes de chorar. Quando não temos as coisas, damos-lhes mais valor. Sou
tradicionalista, mas a verdade é que nasci em Portugal, estudei cá, ouvi muita
música europeia e portuguesa... Na escola, quase fui 'obrigada' a aprender
crioulo, para poder conversar com os meus amigos. Por outro lado, sinto que não
sou cem por cento daqui, a minha raiz não está aqui, está lá. Quando visitei
Cabo Verde pela primeira vez, com a minha família, tive vários 'déjà-vus', a
impressão de já ter estado naqueles sítios. Havia uma fonte onde a minha mãe e
a minha avó costumavam ir buscar água. Era como se fosse também minha...".
Lura
esteve, está "In Love", pela sua terra, pelas pessoas, pela sua
carreira. "Nesse disco tento dizer às pessoas como é importante estarmos
apaixonados pelas coisas, de nos sentirmos bem para que as coisas
aconteçam".
Algo de
importante acontecerá hoje e amanhã.
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