11/10/2016

De Danann e a moura encantada no Intercéltico

CULTURA
QUARTA-FEIRA, 27 MAR 2002

De Danann e a moura encantada no Intercéltico

FESTIVAL ENCERROU NO DOMINGO

Da Irlanda vieram, uma vez mais, os melhores sons do Intercéltico, com os de Danann a porem os pontos nos “is”: o mundo é mais real num “reel”

Pronto! Aquilo que mais se temia, aconteceu! O Festival Intercéltico do Porto, que entre 22 e 24 decorreu no Coliseu, abriu um grave precedente, melhor dizendo, abriu as portas e deixou entrar os mouros! Uma cantora tunisina e um guitarrista iraquiano. O "duende". Flamenco. Onde é que o mundo irá parar? A partir de agora, nada será como dantes.
                Ghalia Benali, a cantora árabe em questão, foi a lança em África, a ferir de sensualidade o Norte céltico. A sua atuação, com o grupo Timnaa, no sábado, longe de ser brilhante, foi... colorida. Coube, porém, aos De Danann, abocanhar a maior fatia de glória.
                Domingo, em dois "sets", o segundo dos quais infernal, o grupo decano da "folk" irlandesa conseguiu enlouquecer uma plateia ávida de participação. No Coliseu, dançou-se, correu-se em volta das filas, gritou-se de excitação. Imperturbáveis, sentados do princípio ao fim da sua dupla atuação, os De Danann foram avançando, entre "sets" instrumentais e as baladas cantadas por Eleanor Shanley em tom talvez demasiado gritado (não há por aí nenhum "pub") até ao delírio final.
                Frankie Gavin, se não é Deus, como diz a anedota, anda lá perto. Ou talvez seja mais legítimo dizer que toca violino como um diabo... Senhor de uma técnica e de um "feeling" espantosos, foi um regalo ouvi-lo ora a esticar ora a encolher o compasso dos "reels", criando síncopes e sobreposições só ao alcance dos mestres. Num dos "medleys", atreveu-se na mesma sequência a que os Fairport Convention chamaram "Flatback caper" no seu álbum "Full House". Ou seja, não teve medo das inevitáveis comparações com o Deus maior do violino tradicional que é Dave Swarbrick... Mas Frankie Gavin também tocou Bach à maneira de um "reel", "Hey Jude", dos Beatles, à maneira de um "reel"... "Reel" real. Irlanda para dançar.
                Iam os De Danann de "reel" em "reel" quando, mais ou menos a meio da segunda parte da sua atuação, um imenso sol rasgou o Intercéltico. Para além de todo o virtuosismo e do maior ou menor "output" de energia, a grande música aconteceu quando os teclados cessaram finalmente o seu apoio logístico – que a música irlandesa dispensa – e Frankie trocou o violino, primeiro pela flauta, e a seguir pelo "tin whistle", num extraordinário diálogo com o "bodhran" de Colm Murphy que antes já rubricara um solo não menos impressionante. Junte-se a isto uma vocalização "a capella" da cantora Eleanor Shanley, envolvida num silêncio religioso, e estava encontrado o melhor de todo o festival.

Bobos e odaliscas
Se os De Danann foram o génio que saiu da lâmpada do Intercéltico, na véspera, sábado, os galegos Os Cempés foram os bobos e Ghalia Benali a odalisca. Está certo que os Cempés tenham vindo a Portugal apresentar o seu novo álbum "Circo Montecuruto", mas não havia necessidade de tanta palhaçada. Serxio Cés, vocalista e saxofonista, então, exagerou. Numa voz de fantoche, fez paródia com tudo, mesmo num tema onde a sanfona e palavras que falam de crianças e velhos agredidos exigiam o silêncio. Ao invés, Serxio optou por uma sessão de guinchos e macacadas que tiveram o condão de irritar. Reconheça-se que teve piada ao mimar as poses de um guitarrista de "heavy metal" ou quando vestiu a pele de uma superestrela da treta, mas o resultado de tanta ânsia em querer mostrar que eram capazes de dominar uma plateia enorme como a do Coliseu, foi que a música teve pouco espaço para concentrar sobre si as atenções. As muiñeiras foram esmagadas pelo bailarico com pretensões pop. Não tocaram "A Loureana", do álbum "Capitan Re", o seu melhor tema de sempre, mas atiraram-se com denodo às valsas de circo e aos pasedobles de coreto. Sem descerem tão baixo como uns Celtas Cortos, a verdade é que os cem pés pareceram curtos. Foi pena, até porque Antón Varela é um gaiteiro excelente e os Cempés, na condição de ser ministrada ao seu vocalista uma dose cavalar de calmantes, são uma banda com todas as condições para singrar.
                E depois do circo, as Arábias. Com a cantora Ghalia Benali e os Timnaa. Ghalia exibiu no Coliseu do Porto o novo álbum, "Wild Harissa", um umbigo provocante, uma cabeleira sensual e um talento inato para o espetáculo. Quanto aos Timnaa, oscilaram entre os Gypsy Kings, o Brasil, o flamenco e a música árabe. Têm dois violinistas ágeis e velozes, por vezes trapalhões, um tocador de cajón compenetrado, um guitarrista iraquiano amante do flamenco e uma bailarina com mais jeito para mostrar trajes coloridos do que para dançar e sapatear. Mas lá que deram espetáculo, deram...
                Temos assim no pódio do 13º Festival Intercéltico do Porto: Medalha de ouro para os De Danann, de prata para os Kornog, de bronze para os restantes. Mouros no Intercéltico – é preciso descaramento! Falando a sério: o Intercéltico está vivo e para o ano promete ser de arromba.

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