CULTURA
QUARTA-FEIRA, 27 MAR 2002
De Danann e a moura encantada no Intercéltico
FESTIVAL ENCERROU NO DOMINGO
Da Irlanda vieram, uma vez mais, os melhores sons do Intercéltico, com
os de Danann a porem os pontos nos “is”: o mundo é mais real num “reel”
Pronto! Aquilo que mais se temia, aconteceu! O Festival
Intercéltico do Porto, que entre 22 e 24 decorreu no Coliseu, abriu um grave
precedente, melhor dizendo, abriu as portas e deixou entrar os mouros! Uma
cantora tunisina e um guitarrista iraquiano. O "duende". Flamenco.
Onde é que o mundo irá parar? A partir de agora, nada será como dantes.
Ghalia
Benali, a cantora árabe em questão, foi a lança em África, a ferir de
sensualidade o Norte céltico. A sua atuação, com o grupo Timnaa, no sábado,
longe de ser brilhante, foi... colorida. Coube, porém, aos De Danann, abocanhar
a maior fatia de glória.
Domingo, em
dois "sets", o segundo dos quais infernal, o grupo decano da
"folk" irlandesa conseguiu enlouquecer uma plateia ávida de
participação. No Coliseu, dançou-se, correu-se em volta das filas, gritou-se de
excitação. Imperturbáveis, sentados do princípio ao fim da sua dupla atuação,
os De Danann foram avançando, entre "sets" instrumentais e as baladas
cantadas por Eleanor Shanley em tom talvez demasiado gritado (não há por aí
nenhum "pub") até ao delírio final.
Frankie
Gavin, se não é Deus, como diz a anedota, anda lá perto. Ou talvez seja mais
legítimo dizer que toca violino como um diabo... Senhor de uma técnica e de um
"feeling" espantosos, foi um regalo ouvi-lo ora a esticar ora a
encolher o compasso dos "reels", criando síncopes e sobreposições só
ao alcance dos mestres. Num dos "medleys", atreveu-se na mesma
sequência a que os Fairport Convention chamaram "Flatback caper" no
seu álbum "Full House". Ou seja, não teve medo das inevitáveis
comparações com o Deus maior do violino tradicional que é Dave Swarbrick... Mas
Frankie Gavin também tocou Bach à maneira de um "reel", "Hey
Jude", dos Beatles, à maneira de um "reel"... "Reel"
real. Irlanda para dançar.
Iam os De
Danann de "reel" em "reel" quando, mais ou menos a meio da
segunda parte da sua atuação, um imenso sol rasgou o Intercéltico. Para além de
todo o virtuosismo e do maior ou menor "output" de energia, a grande
música aconteceu quando os teclados cessaram finalmente o seu apoio logístico –
que a música irlandesa dispensa – e Frankie trocou o violino, primeiro pela
flauta, e a seguir pelo "tin whistle", num extraordinário diálogo com
o "bodhran" de Colm Murphy que antes já rubricara um solo não menos
impressionante. Junte-se a isto uma vocalização "a capella" da
cantora Eleanor Shanley, envolvida num silêncio religioso, e estava encontrado
o melhor de todo o festival.
Bobos e odaliscas
Se os De Danann foram o génio que saiu da lâmpada do
Intercéltico, na véspera, sábado, os galegos Os Cempés foram os bobos e Ghalia
Benali a odalisca. Está certo que os Cempés tenham vindo a Portugal apresentar
o seu novo álbum "Circo Montecuruto", mas não havia necessidade de
tanta palhaçada. Serxio Cés, vocalista e saxofonista, então, exagerou. Numa voz
de fantoche, fez paródia com tudo, mesmo num tema onde a sanfona e palavras que
falam de crianças e velhos agredidos exigiam o silêncio. Ao invés, Serxio optou
por uma sessão de guinchos e macacadas que tiveram o condão de irritar.
Reconheça-se que teve piada ao mimar as poses de um guitarrista de "heavy
metal" ou quando vestiu a pele de uma superestrela da treta, mas o
resultado de tanta ânsia em querer mostrar que eram capazes de dominar uma
plateia enorme como a do Coliseu, foi que a música teve pouco espaço para
concentrar sobre si as atenções. As muiñeiras foram esmagadas pelo bailarico
com pretensões pop. Não tocaram "A Loureana", do álbum "Capitan
Re", o seu melhor tema de sempre, mas atiraram-se com denodo às valsas de
circo e aos pasedobles de coreto. Sem descerem tão baixo como uns Celtas
Cortos, a verdade é que os cem pés pareceram curtos. Foi pena, até porque Antón
Varela é um gaiteiro excelente e os Cempés, na condição de ser ministrada ao
seu vocalista uma dose cavalar de calmantes, são uma banda com todas as
condições para singrar.
E depois do
circo, as Arábias. Com a cantora Ghalia Benali e os Timnaa. Ghalia exibiu no
Coliseu do Porto o novo álbum, "Wild Harissa", um umbigo provocante,
uma cabeleira sensual e um talento inato para o espetáculo. Quanto aos Timnaa,
oscilaram entre os Gypsy Kings, o Brasil, o flamenco e a música árabe. Têm dois
violinistas ágeis e velozes, por vezes trapalhões, um tocador de cajón
compenetrado, um guitarrista iraquiano amante do flamenco e uma bailarina com
mais jeito para mostrar trajes coloridos do que para dançar e sapatear. Mas lá
que deram espetáculo, deram...
Temos assim
no pódio do 13º Festival Intercéltico do Porto: Medalha de ouro para os De
Danann, de prata para os Kornog, de bronze para os restantes. Mouros no
Intercéltico – é preciso descaramento! Falando a sério: o Intercéltico está
vivo e para o ano promete ser de arromba.
Sem comentários:
Enviar um comentário