18/10/2016

"Todos os esquemas estão feitos para manipular a criança" [Meira Asher]

CULTURA
SÁBADO, 20 JULHO 2002

‘Todos os esquemas estão feitos para manipular a criança’

ENTREVISTA COM MEIRA ASHER

“Daqui ninguém sai vivo” – este poderá ser o mote dos dois concertos que a cantora israelita Meira Asher dará em Portugal, na apresentação do novo álbum, “Infantry”. Confrontos marcados para hoje e para a próxima segunda-feira, em Tondela e Lisboa. Boa sorte.

Não mata mas mói. A música de Meira Asher é uma fogueira acesa. Um ferro em brasa aplicado sobre a pele. Uma ferida mal cicatrizada. A cantora israelita está de regresso a Portugal, depois de anteriores concertos no Porto e na Guarda, para apresentar o seu terceiro e novo álbum, “Infantry”, assinado em parceria com Guy Harries. Uma denúncia cruel, em regime de reportagem apocalíptica, das torturas infligidas sobre crianças, em várias partes do globo. Espetáculos marcados para hoje, em Tondela, no âmbito do Festival Tom de Festa, e na próxima segunda-feira (dia 22), na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Não vai ser fácil nem agradável de ouvir, nem isso é, de resto, o que lhe importa. Meira faz-nos sofrer. Meira Faz-nos pensar. Meira faz-nos sentir que vivemos num mundo de mentiras, horror e crueldade. E que já não é possível desviar os olhos e fingir que está tudo bem. A própria explicou ao PÚBLICO porquê.
            PÚBLICO – Que tipo de equipamento eletrónico usaram neste disco? Parece que buscaram vários “objetos relacionados com crianças” para serem usados como instrumentos musicais. Pode ser mais explícita?
            MEIRA ASHER – Usámos sintetizadores antigos, daqueles enormes, com cabos e uma quantidade de módulos. Não recorremos a “samples” mas, em contrapartida, socorremo-nos de “field recordings”, com vozes, ficheiros digitais e analógicos… A maior parte recolhidos em locais de crianças, como jardins de infância, pátios de recreio… Esses objetos que refere foram essencialmente brinquedos aos quais fizemos algumas adaptações. Mas também uma boneca médica das que se usam para ensinar a insuflar oxigénio em doentes, na qual introduzimos no seu interior um rádio-transístor. E lápis de colorir, inseridos em “interfaces” eletrónicos… Alguns destes artefactos serão usados nos espetáculos.
            Fez isso com um propósito estritamente estético ou também ético?
            Em cada performance tem que haver uma integridade absoluta. É difícil, no contexto da música eletrónica, em que muitas vezes se é escravo do manuseamento de um ou mais computadores. Tentamos construir algo que seja tão interessante para os olhos como para os ouvidos.
            Um lado visual que adquire ainda maior relevo no suporte vídeo que costuma utilizar nos concertos, não é verdade?
            Sim, usamos “live cameras” que filmam tudo o que se passa em palco, o conceito geral passa por pôr em contraste o “muito pequeno” e o “muito grande” [num dos “sites” dedicados à artista, refere-se ao “contraste entre os pontos de vista das crianças e dos adultos”]. A performance de “Infantry” que vamos apresentar em Portugal já vai na segunda versão, modificámos muita coisa, eliminámos o ecrã gigante, é um verdadeiro “work in progress”… Mas não filmamos as pessoas. Estamos mais interessados em transmitir informação do que em registar reações.
            Essas reações – por vezes extremistas – do público não a preocupam de todo?
            Sem dúvida que preocupam. A questão está em que esta música é aberta a todas as interpretações e pode haver pessoas que não estejam preparadas para a receber. Num concerto na Suíça, uma rapariga, estudante de psicologia, veio ter comigo para me confessar que não aguentou e teve que sair dali para fora, pois era tudo demasiado forte. Que se sentira “assombrada”. Não estava preocupada, embora o seu subconsciente tivesse recebido a mensagem. Era como se estivesse ali uma bomba à sua espera. Mas nem tudo pode ser diversão e entretenimento…
            Por que razão escolheu um tema tão incómodo como a tortura e o abuso infantil?
            Há muito tempo que andava a pensar em fazer alguma coisa com base nas crianças. Trabalho com crianças desde há muito, sinto-me ligado a elas. Hesitei em relação ao tópico a escolher mas, tendo em conta o nosso “background”, a situação militar em Israel, acabou por ser natural falar das crianças-soldados. Embora a idade de recrutamento seja de 19 anos, as crianças começam a preparar-se para a guerra a partir dos 4, 5 anos. Este disco não fala apenas da manipulação infantil, mas também da manipulação em geral. Todo o ser humano foi manipulado em criança, pelos pais, pelos professores, pelos amigos. Todos os esquemas sociais estão feitos para manipular a criança. Não se trata de fazer julgamentos, mas de mostrar como esta manipulação surge logo dentro do lar. E prossegue assim, ao longo da adolescência, através da pressão dos grupos de amigos, e da idade adulta, através da manipulação dos “media”, da política, etc. Se calhar, é um comportamento natural…
            Um tema tão curto como “The School” pode ser difícil de suportar…
            Tem por base uma história verdadeira. É sobre matar-se pessoas palestinianas no seu próprio território, neste caso uma criança…
            “Torture A-B-C” parece tirada de um manual escolar…
            Sim, existem muitas e diferentes formas de tortura que foram cometidas sobre as crianças nos últimos anos. Foram recitadas por ordem… da mesma forma que as crianças são obrigadas a aprender o A-B-C das suas partes do corpo, por exemplo…
            “The box” é outro tema assustador. Uma caixa de pandora de horrores…
            São três espécies de caixas que se vão abrindo, cada uma revelando um pequeno diabo, sobre as relações entre os adultos e as crianças, tendo como cenário um jardim de infância.
            Alguém disse uma vez que “a arte não deve ser um espelho, mas um amrtelo”. Concorda?
            Pode ser tantas coisas… Sim… pode ser facilmente um martelo, especialmente para mim (risos). O mais importante é ajudar as pessoas a abrirem as suas mentes.


Dois adultos interessados pelos som

Meira Asher nasceu em Tel Aviv, Israel, e reside na Holanda. Estudou percussão, técnicas de voz e artes interdisciplinares na Índia, Jerusalém, Gana e Califórnia, onde se graduou. Prepara atualmente o seu doutoramento no Instituto de Sonologia, em Haia. “Infantry” é o seu terceiro álbum de originais, depois de “Dissected” e “Spears into Hooks”, este último incluído na lista dos “melhores do ano” de 2000, do PÚBLICO. Guy Harries é um compositor/performer residente na Holanda, também a estudar Sonologia e Composição, no Conservatório de Haia. Flautista e vocalista do grupo Sonicartoons, investiga atualmente as possibilidades de transformação eletrónica da voz humana.


Meira Asher & Guy Harries
TONDELA Cine Tejá do Novo Ciclo
ACERT. Tel.: 232814400.
Hoje, às 22h. Bilhetes a 5 e 7,50 euros.
LISBOA Galeria Zé dos Bois.
Tel.: 213430205. 2ª, 22, às 22h.
Bilhetes a 10 euros.

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