CULTURA
SÁBADO, 20
JULHO 2002
‘Todos os
esquemas estão feitos para manipular a criança’
ENTREVISTA COM MEIRA ASHER
“Daqui ninguém sai vivo” – este
poderá ser o mote dos dois concertos que a cantora israelita Meira Asher dará
em Portugal, na apresentação do novo álbum, “Infantry”. Confrontos marcados
para hoje e para a próxima segunda-feira, em Tondela e Lisboa. Boa sorte.
Não mata mas mói. A música de Meira Asher é
uma fogueira acesa. Um ferro em brasa aplicado sobre a pele. Uma ferida mal
cicatrizada. A cantora israelita está de regresso a Portugal, depois de
anteriores concertos no Porto e na Guarda, para apresentar o seu terceiro e
novo álbum, “Infantry”, assinado em parceria com Guy Harries. Uma denúncia
cruel, em regime de reportagem apocalíptica, das torturas infligidas sobre
crianças, em várias partes do globo. Espetáculos marcados para hoje, em
Tondela, no âmbito do Festival Tom de Festa, e na próxima segunda-feira (dia
22), na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. Não vai ser fácil nem agradável de
ouvir, nem isso é, de resto, o que lhe importa. Meira faz-nos sofrer. Meira
Faz-nos pensar. Meira faz-nos sentir que vivemos num mundo de mentiras, horror
e crueldade. E que já não é possível desviar os olhos e fingir que está tudo
bem. A própria explicou ao PÚBLICO porquê.
PÚBLICO
– Que tipo de equipamento eletrónico usaram neste disco? Parece que buscaram
vários “objetos relacionados com crianças” para serem usados como instrumentos
musicais. Pode ser mais explícita?
MEIRA ASHER – Usámos sintetizadores
antigos, daqueles enormes, com cabos e uma quantidade de módulos. Não
recorremos a “samples” mas, em contrapartida, socorremo-nos de “field
recordings”, com vozes, ficheiros digitais e analógicos… A maior parte
recolhidos em locais de crianças, como jardins de infância, pátios de recreio…
Esses objetos que refere foram essencialmente brinquedos aos quais fizemos
algumas adaptações. Mas também uma boneca médica das que se usam para ensinar a
insuflar oxigénio em doentes, na qual introduzimos no seu interior um
rádio-transístor. E lápis de colorir, inseridos em “interfaces” eletrónicos…
Alguns destes artefactos serão usados nos espetáculos.
Fez
isso com um propósito estritamente estético ou também ético?
Em cada performance tem que haver
uma integridade absoluta. É difícil, no contexto da música eletrónica, em que
muitas vezes se é escravo do manuseamento de um ou mais computadores. Tentamos
construir algo que seja tão interessante para os olhos como para os ouvidos.
Um
lado visual que adquire ainda maior relevo no suporte vídeo que costuma
utilizar nos concertos, não é verdade?
Sim, usamos “live cameras” que
filmam tudo o que se passa em palco, o conceito geral passa por pôr em
contraste o “muito pequeno” e o “muito grande” [num dos “sites” dedicados à
artista, refere-se ao “contraste entre os pontos de vista das crianças e dos
adultos”]. A performance de “Infantry” que vamos apresentar em Portugal já vai
na segunda versão, modificámos muita coisa, eliminámos o ecrã gigante, é um
verdadeiro “work in progress”… Mas não filmamos as pessoas. Estamos mais
interessados em transmitir informação do que em registar reações.
Essas
reações – por vezes extremistas – do público não a preocupam de todo?
Sem dúvida que preocupam. A questão
está em que esta música é aberta a todas as interpretações e pode haver pessoas
que não estejam preparadas para a receber. Num concerto na Suíça, uma rapariga,
estudante de psicologia, veio ter comigo para me confessar que não aguentou e
teve que sair dali para fora, pois era tudo demasiado forte. Que se sentira
“assombrada”. Não estava preocupada, embora o seu subconsciente tivesse
recebido a mensagem. Era como se estivesse ali uma bomba à sua espera. Mas nem
tudo pode ser diversão e entretenimento…
Por
que razão escolheu um tema tão incómodo como a tortura e o abuso infantil?
Há muito tempo que andava a pensar
em fazer alguma coisa com base nas crianças. Trabalho com crianças desde há
muito, sinto-me ligado a elas. Hesitei em relação ao tópico a escolher mas,
tendo em conta o nosso “background”, a situação militar em Israel, acabou por
ser natural falar das crianças-soldados. Embora a idade de recrutamento seja de
19 anos, as crianças começam a preparar-se para a guerra a partir dos 4, 5
anos. Este disco não fala apenas da manipulação infantil, mas também da
manipulação em geral. Todo o ser humano foi manipulado em criança, pelos pais,
pelos professores, pelos amigos. Todos os esquemas sociais estão feitos para
manipular a criança. Não se trata de fazer julgamentos, mas de mostrar como
esta manipulação surge logo dentro do lar. E prossegue assim, ao longo da
adolescência, através da pressão dos grupos de amigos, e da idade adulta,
através da manipulação dos “media”, da política, etc. Se calhar, é um
comportamento natural…
Um
tema tão curto como “The School” pode ser difícil de suportar…
Tem por base uma história
verdadeira. É sobre matar-se pessoas palestinianas no seu próprio território,
neste caso uma criança…
“Torture
A-B-C” parece tirada de um manual escolar…
Sim, existem muitas e diferentes
formas de tortura que foram cometidas sobre as crianças nos últimos anos. Foram
recitadas por ordem… da mesma forma que as crianças são obrigadas a aprender o
A-B-C das suas partes do corpo, por exemplo…
“The
box” é outro tema assustador. Uma caixa de pandora de horrores…
São três espécies de caixas que se
vão abrindo, cada uma revelando um pequeno diabo, sobre as relações entre os
adultos e as crianças, tendo como cenário um jardim de infância.
Alguém
disse uma vez que “a arte não deve ser um espelho, mas um amrtelo”. Concorda?
Pode ser tantas coisas… Sim… pode
ser facilmente um martelo, especialmente para mim (risos). O mais importante é
ajudar as pessoas a abrirem as suas mentes.
Dois adultos
interessados pelos som
Meira Asher nasceu em Tel Aviv,
Israel, e reside na Holanda. Estudou percussão, técnicas de voz e artes
interdisciplinares na Índia, Jerusalém, Gana e Califórnia, onde se graduou.
Prepara atualmente o seu doutoramento no Instituto de Sonologia, em Haia.
“Infantry” é o seu terceiro álbum de originais, depois de “Dissected” e “Spears
into Hooks”, este último incluído na lista dos “melhores do ano” de 2000, do
PÚBLICO. Guy Harries é um compositor/performer residente na Holanda, também a
estudar Sonologia e Composição, no Conservatório de Haia. Flautista e vocalista
do grupo Sonicartoons, investiga atualmente as possibilidades de transformação
eletrónica da voz humana.
Meira Asher & Guy Harries
TONDELA Cine
Tejá do Novo Ciclo
ACERT. Tel.:
232814400.
Hoje, às
22h. Bilhetes a 5 e 7,50 euros.
LISBOA
Galeria Zé dos Bois.
Tel.:
213430205. 2ª, 22, às 22h.
Bilhetes a
10 euros.
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