Y
2|NOVEMBRO|2001
capa|música
Mulher-inseto
Diamanda
Galás está de regresso a Portugal – dias 8 e 10, no Hard Club de Gaia e na Aula
Magna de Lisboa. Traz consigo novas ameaças de perigo. O espetáculo, de
genérico “Defixiones, Will and Testament”, fala do sofrimento e do exílio. A
voz, um sopro venenoso, é a das almas torturadas. O “blues” da peste.
Já
dizia o outro: “Não acredito nelas, mas que as há, há!”. As bruxas. A
imaginação popular pinta-as de negro, com olheiras e verrugas, voando pelo céu
montadas em vassouras, a invadir os nossos sonhos nas noites de lua nova.
Diamanda Galás não corresponde exatamente ao estereotipo mas a sua música tem o
mesmo efeito de um bruxedo.
A cantora de ascendência grega
ortodoxa que pela segunda vez nos visita (a primeira aconteceu há cinco anos no
CCB, em Lisboa) traz consigo o medo e a dor, mas também um grito de alarme, num
espetáculo de genérico “Defixiones, Will and Testament”.
O tema é o exílio, do homem exilado
de si mesmo. A falta de humanidade e a intolerância das culturas. O sofrimento
e a redenção.
Para o ilustrar, Galás socorreu-se
de textos literários como “The Dance”, do poeta arménio Siamanto, “The Desert”,
do poeta sírio Adónis, “Epistle to the Transients”, do peruano Cesar Vallejo,
“Ain’t no Grave can Hold me down”, do americano Stuyvesant, “Todesfuge”, do
romeno-judeu Paul Celan e escritos do poeta-mártir assírio Dr. Freidoun
Bet-Oraham. “Defixiones, Will and Testament” utiliza ainda técnica musicais
tradicionais como a “amanedhes” (estilo de improvisação da Ásia menor) e a
rebetika grega e arménia, forma musical trazida pelos refugiados da Ásia menor
na Grécia. Ainda a música dos artistas norte-americanos Ornette Coleman, John
Lee Hooker e Blind Lemon Jefferson. O jazz. O “blues”. Sinónimos de libertação.
Diamanda Galás habita em Nova Iorque,
capital do império. Do Bem, para uns. Do Mal, para outros. Ela situa-se no olho
do furacão e cultiva a ambiguidade. É a bruxa, a feiticeira que grita a
revolução, a heresia e o ultraje. Se traz a cura ou, pelo contrário, propaga a
doença, eis o buraco negro onde cada certeza se precipita no vazio.
A bruxa é a manipuladora das forças
da lua e do sangue. Dos fluidos da terra e dos seres vivos que a habitam. Ao
contrário do mago, cuja vontade e domínio se exercem em primeiro lugar sobre o
próprio pensamento, a bruxa age com as ondas do corpo e do sexo. Diamanda Galás
personifica a condição feminina através de um dos seus arquétipos mais
profundos, imagem invertida da tradicional virgem negra presente em várias
religiões e cultos primitivos. Mas mais do que a guardiã dos segredos ela é a
espada (e nesse aspeto, agente de uma polaridade masculina…) que rompe o hímen
da falsa paz e da indiferença. Nela, a ilusão e a praga disseminam-se da mesma
forma que o sexo é abolido. “Todos os grandes performers”, disse há anos
Diamanda ao PÚBLICO, “têm de ser forçosamente travestis, no sentido de deixarem
de ser homens ou mulheres para passarem a ser animais, répteis ou insetos”.
É a mesma capacidade de
transfiguração da bruxa tradicional, que tomava a forma de uma cobra ou de um
morcego. Mas Diamanda Galás não é uma bruxa como as outras e por isso escolheu,
diz, ser um inseto. Mulher-inseto. Vespa de mordedura venenosa.
Em sangue. Se na sua primeira
atuação ao vivo, em 1979, no Festival de Avignon, em França, executou “Un Jour
commo un Autre”, do compositor Vinko Globokar (que Portugal viu integrado na
formação de música contemporânea The New Phonic Art), obra baseada na
documentação da Amnistia Internacional relativa à prisão e tortura das mulheres
turcas, já a sua posterior evolução se direcionou no sentido de uma feminilidade
que entra em contravenção e subverte alguns dos pilares do Catolicismo.
Recorde-se, a este propósito, uma
das suas míticas e mais provocatórias atuações, a 12 e 13 de Novembro de 1989,
em plena Catedral de St. John, the Divine, no coração de Nova Iorque, onde
cantou com o tronco nu coberto de sangue. O sangue de doentes com Sida que
comparou ao sangue de Cristo, num simulacro de eucaristia, entre blasfémias
como “Give me sodomy or give me death”.
Catarse ou ritual de magia negra,
esta performance que ficou registada em disco no duplo álbum ao vivo “Plague
Mass” (1990), com dedicatória a todos os doentes seropositivos que “lutam para
se manter vivos num ambiente hostil onde se lhes diz constantemente que vão
morrer e se lhes oferece uma piedade revoltante e mentiras pacificadoras para
os convencer a desistirem de lutar e a prepararem o próprio funeral”, foi a
representação/exorcismo do medo ancestral da peste. Através de uma manipulação
habilidosa e da transcrição literal de textos bíblicos, a peste com que Deus
castigou os homens era, nos tempos modernos, a Sida, que acabara de vitimar o
irmão e alguns dos seus amigos mais chegados. O sangue infetado. O castigo
divino. A denúncia, mas também a ritualização dolorosa, num teatro mais do que
cruel, do ostracismo a que ainda são votados os doentes da praga do século. O
mal, sob as mais diversas formas e disfarces, foi e continua a ser o tópico
central.
Nessa ocasião que muitos viram como
a violação do templo, Diamanda personificou no limite do sacrilégio, uma doença
que é do corpo, mas também do espírito – uma doença civilizacional. Ou, se
quisermos buscar alívio da visão do sangue, das chagas e dos uivos que nessa
noite fizeram estremecer as colunas da catedral de St. John, era já o exílio de
uma humanidade perdida que a cantora apontava – e encarnava – nesse batismo
demoníaco pelo sangue. Do outro lado, a ambiguidade. Galás chegou a ponderar a
hipótese de fazer uma regeneração total do seu sangue, através de transfusões,
ainda que sem imitar a Condessa de Bathory, vampira lésbica que pretendia
prolongar a juventude bebendo o sangue de raparigas virgens que ela própria
seduzia e assassinava.
Litanias de Satã. Religião. O Antigo
Testamento, do Deus castigador. Os Evangelhos. De pernas para o ar ou não, são
o ponto de chegada que, inevitavelmente, teriam que encontrar, como
encontraram, correspondência em formas musicais como o “blues”, os espirituais
e o “gospel”. Neste aspeto, e segundo uma aproximação estética ao universo de
um Nick Cave, por exemplo (e foi esta a Diamanda que Lisboa assistiu no CCB),
pode dizer-se que a música e a interpretação vocal da cantora se “suavizaram”,
em álbuns como “The Singer” (1992), “The Sporting Life” (1994, com John Paul
Jones, ex-Led Zeppelin), “Vena Cava” (1992) ou “Malediction and Prayer” (1998),
contrastando com o grito primordial dos seus primeiros trabalhos, em que a
literatura romântica mais alucinada (de autores simbolistas como Charles
Baudelaire, Gérard de Nerval, Tristan Corbière ou Edgar Allan Poe), a revolta
luciferina e a anarquia se entrelaçavam numa visão de ópio inominável (está
presentemente a compor uma ópera, intitulada “Nekropolis”) que trazia à
superfície os demónios de um quadro de Bosch. A Galás que evitámos olhar de
frente, de “Litanies of Satan”. A portadora da peste (ela própria assim se
assumia) da trilogia “Masque of the Red Death” (título de um conto de Poe sobre
a peste), subdividida em “The Divine Punishment”, “Saint of the Pit” e “You
must be Certain of the Devil”.
Mas como se formou a personalidade
desta bruxa dos tempos modernos que admite ter “um mau feitio congénito” mas
que não se coibiu de escrever um manifesto em defesa dos Black Leather Beavers,
associação de caráter humanitário de vigilantes de rua vocacionados para o
combate aos violadores de mulheres? Acrescente-se que as técnicas utilizadas
pelos Black Leather Beavers consistiam basicamente na castração dos violadores.
Diamanda Galás tem Xinogalas como
apelido paterno. Os pais, gregos ortodoxos, fazem parte da casta siciliana dos
Manatis. Sicília da “vendetta” (“vingança”), que a cantora personifica como
ninguém, e das carpideiras. “Chorar um ou dois dias é uma coisa. Chorar por
contrato, 15 ou 20 dias, é outra, completamente diferente, um ritual extático
que transcende a banal piedade dos americanos”, disse. Hoje, ainda em cima dos
acontecimentos ocorridos em Nova Iorque a 11 de Setembro, tais palavras acabam
por desvalorizar-se perante o luto americano que se adivinha prolongado.
Hendrix, Maria Callas e Charlie
Parker marcam-na a fogo. Começa a cantar na rua e a conviver com elementos
radicais do “Living Theatre”. Mas consegue ser mais radical do que todos eles e
acaba por ser expulsa, sendo aconselhada a cantar em institutos de doenças
mentais. O seu canto, misto de uivo, vómito e sereia, ligava-se à
“schrei-performance” (um dos seus álbuns, de 1996, tem por título “Schrei 27”)
do teatro expressionista alemão que pretendia alargar as fronteiras da
personalidade humana, síntese do homem, da Besta e da máquina. Sobre este
assunto, tem uma teoria: “Os problemas surgiram quando as pessoas começaram a
fazer separações arbitrárias entre os hemisférios esquerdo e direito do
cérebro. A solução passa por ser capaz de articular as pequenas nuances
malévolas da personalidade, mostrar a natureza humana para além do bem e do
mal, de que falavam Nietzsche, Sade, Poe e Baudelaire, uma espécie de
protoplasma contraditório, eminentemente esquizofrénico”.
Satã, “o grande acusador” ou o
“adversário”, na terminologia hebraica, torna-se o seu padrinho e nem a morte,
que considera “insultuosa”, escapa às suas garras: “Quando o momento chegar,
serei eu a tomar conta da situação. Quando os deuses decidirem levar-me,
rir-me-ei na cara deles. Há-de haver uma seringa espetada no meu braço”.
1989 e 1990 são os anos de todos os
escândalos. A 10 de Dezembro de 1989 é presa por conduta desordeira, ao
interromper uma missa celebrada na catedral de St. Patrick. Em Agosto do ano
seguinte, o Governo italiano acusa-a de blasfémia contra a Igreja Católica, na
sequência de uma apresentação de “Plague Mass” no Palácio dos Medici. Até que a
12 e 13 de Novembro desse ano, o diabo é finalmente convidado oficialmente a
entrar em St. John, the Divine, a segunda maior catedral do mundo. A missa
negra de sangue que transportava a praga para o interior do templo.
Mas para o padre católico Conrado
Balweg tratava-se apenas de uma missa de “libertação do jugo da opressão”
celebrada por aquela que, numa das canções de “Saint of the Pit” (“O Santo do
Túmulo” ou do “Abismo”), faz suas as palavras do poeta Baudelaire: “Sou o
espelho onde se revê a própria fúria/A faca e a ferida revolvida/O carrasco e a
vítima/O vampiro das minhas próprias veias/Pertenço à grande legião dos
perdidos”.
…Mas que as
há, há!...
“Não
acredito nelas, mas que as há, há!. As bruxas. Manipuladoras das forças da lua
e do sangue. Como Diamanda, assim também Kate Bush, Meira Asher ou Rosie
McDowell. Ou Lydia Lunch, que atua hoje, pela primeira vez em Portugal. A
artista americana, com quem falámos ao telefone, vem apresentar um espetáculo
de “spoken word” no festival Faladura.
(artigo conjunto de FM e Raquel Pinheiro. A entrevista
a Lydia Lunch é feita por RP)
gilli smyth
Foi
e continua a ser Shakti Yoni, a feiticeira dos Gong. Shakti é, na doutrina
budista, o fogo interior que deve ser canalizado dos chakras inferiores para os
chakras superiores. Mas Gilli, à semelhança da troupe inteira de lunáticos que
dá pelo nome de Gong, misturou as suas poções e pronunciou abracadabra na zona
nebulosa em que a magia se confunde com a anedota. Quando em “Prostitute poem”,
do álbum “Radio Gnome Invisible, Part 2: Angel’s Egg” (1973), encarna a
prostituta cósmica e geme através do tempo e do espaço “I’m eating your brain,
I’m eating your mind”, encaramos a ameaça como um convite, entre o sobressalto
e o sorriso. Fundou mais tarde os Mother Gong onde a energia feminina Yin
continua a fluir.
kate bush
A
bruxa boa, próxima da imagem tradicional. Da voz aguda, já de si arrepiante, à
faceta de dançarina erótico-naturalista e ao modo como quase sempre se fazia
fotografar nos anos 80 (menos agora, que já vão aparecendo as rugas e está mais
gordinha…) rodeada de plantas (a cornucópia de bestas noturnas de “Never for
Ever”, os cães de “Hounds of Love”), ou corpos humanos (“The Red Shoes”), é a
típica encarnação das forças e dos ciclos da Natureza. Em “Lionheart”
metamorfoseou-se num leão e no clip da canção “Cloudbursting” vemo-la aliada a
um mago-inventor de uma máquina de nuvens. Esta faceta de manipuladora tem
correspondência na forma como lida com os sons, o que faz com que a sua música
nunca tenha abandonado uma faceta experimental. Exemplo disso é a “suite” “The
ninth wave”, a “nova onda” (de “Hounds of Love”), onde a magia se torna mais
ativa do que nunca e se apresenta de forma explícita num dos andamentos desta
peça, intitulado “Waking the witch”, acordando a bruxa. Imaginamo-la para
sempre a cantar “Wuthering heights” no alto do monte dos vendavais.
cosey fanni
tutti
Antes
de fazer música com os Throbbing Gristle, Cosey Fanni Tutti (nome inspirado na
ópera de Mozart, “Così Fan Tutti”) era atriz de filmes porno. Ou seja, da
exposição dos mecanismos de exploração do corpo passou para a exposição dos
mecanismos de exploração da mente. Na época da música industrial, final dos
anos 70, os Throbbing Gristle foram peritos em agir sobre a área em que o
sexual e o mental se interligam, ou seja, o erótico, que não é mais do que o
sexual transformado em imagem mental. Cosey funcionava como ícone/polaridade
porno do grupo. Faltava scannerizar e monitorizar tais imagens. Foi o que
fizeram os Psychic TV, já nos anos 90, ao transformarem a mente num ecrã de
televisão. Quanto a Cosey, formou com Chris Carter (outro ex-Throbbing Gristle)
a dupla Chris & Cosey, vendeu a alma que não tinha ao projeto CTI
(“Creative Technology Institute”) e enveredou pelos rituais mais rentáveis da
tecno e do “trance”.
meira asher
A
cantora israelita de cabeça rapada que já por duas vezes pôs os cabelos em pé
ao público português, segue de perto os passos de Diamanda Galás. A sua voz
também é uma sirene de horror que transporta os germes da destruição e da
desgraça. Depois de um primeiro álbum, “Dissected”, amenizado pelas sonoridades
humanistas da “world music”, no posterior “Spears into Hooks” Meira Asher abre
a ferida e aumenta o grau de perigosidade num exorcismo dos fantasmas gerados
pelo Holocausto. Com ou sem recurso aos textos bíblicos ou ao poema “Se questo
é un huomo”, de Primo Levi. Num dos temas deste disco, “Weekend away break”, a
câmara de horrores de Birkenau é reaberta e recordada como uma estância de
férias. Para Meira Asher não há inocentes nem culpados, apenas a dependência
mútua entre vítima e carrasco num eterno jogo de poder.
diana
rogerson rosie mcdowell leslie winer
Poderiam
pertencer à “WICCA”, irmandade “oficial” das bruxas de todo o mundo. Diana
Rogerson (na foto), aka Crystal Belle, é o anjo exterminador dos Nurse With
Wound, um dos múltiplos projetos do seu marido, Steven Stapleton, e a sua
presença assombra álbuns como “Soliloquy for Lilith”, “The Sylvie and Babs
Hi-Fi Companion” e “Alas the Madonna does not Function”. Rosie McDowell verteu
a sua energia fêmea em seitas como Current 93, discípulos do mago negro
Aleister Crowley, e Non, de Boyd Rice, satanista convicto. Leslie Winer, antiga
secretária do escritor homossexual e ex-heroinómano William Burroughs, é a
autora de um álbum de trip-hop com o título “Witch”.
Sem comentários:
Enviar um comentário