CULTURA
SÁBADO, 16 FEVEREIRO 2002
Operação triunfo de Camané
SALA CHEIA NO CCB
Camané triunfou no CCB. O fado rendeu-se-lhe. O público rendeu-se-lhe.
Num espetáculo que subiu, subiu sempre, até tocar aquele instante de revelação
em que tudo coincide sem aparente esforço
Camané confirmou no concerto de
quinta-feira, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa,
tudo o que tem sido dito dele nos últimos tempos. Ele é de facto – e demonstrou-o
bem – o maior fadista da atualidade. A voz, a pose em palco, a interiorização,
a emotividade, a contenção quando tal lhe é pedido, combinam-se no seu canto na
proporção exata para que o fado irrompa em todo o seu esplendor naquilo que
mais fundo o caracteriza: a dança dolorosa das almas nuas.
A
sala maior do CCB estava cheia. De um público heterogéneo que se rendeu ao fado
maior de Camané. Receberam-no com a expectativa de ver até que ponto se
afirmaria num espetáculo de duas horas apenas na companhia da guitarra
portuguesa de José Manuel Neto, a viola de Carlos Manuel Proença e o
contrabaixo de Paulo Paz. Despediram-se a contragosto (porque a vontade seria
ficar a ouvi-lo toda a noite...), aplaudindo de pé, aos gritos a pedir este e
outro e mais outro fado.
Servido
por um som ao nível da música e um design de luz eficaz, o espetáculo arrancou
no escuro com o contrabaixo a rosnar uma nota cuja gravidade a situava algures
entre a voz humana e um didjeridu. Desceu então um foco de luz e Camané surgiu
ao centro a cantar "Guitarras de Lisboa". Ao sinal do verso certo
irromperam em último lugar as cordas da guitarra. Estava tudo no lugar, agora,
para que o fado, mas não só o fado, renascesse. Mas não logo. Não com a
celeridade de quem receia o desafio. No final dessa primeira claridade
lisboeta, com a simplicidade e o sentimento de quem perdeu um amigo mas sabe
que a vida continua, Camané pediu um minuto de silêncio em memória de Carlos
Zel – falecido na madrugada anterior ao concerto – a quem dedicou o concerto.
Camané
cantou o fado tradicional, os versos de Linhares Barbosa, Fernando Pessoa,
Manuela de Freitas, Aldina Duarte, David Mourão-Ferreira, numa primeira parte
em que a diferença esteve, uma vez mais, na fabulosa composição de José Mário
Branco, "Eu não me entendo", que Camané transformou já num clássico
de sempre da música portuguesa. José Mário Branco cuja assinatura ficou ainda
lavrada em "Marcha do Bairro Alto" e "Ela tinha uma amiga",
dois dos momentos em que a caminhada em direção ao âmago do fado se aligeirou
no canto de coisas aparentemente mais ligeiras.
Após
o intervalo, Camané regressou para falhar a entrada em "A cantar é que te
deixas levar", outro original de José Mário Banco. Pedido de desculpas e
imediata correção. Mas o tema correu tenso até ao fim. A emenda foi, todavia,
gloriosa, na forma como estendeu e abraçou "Quem, à janela", de
Amélia Muge que, sentada no meio da assistência, aplaudiu entusiasticamente.
"Escada
sem corrimão" foi outro dos momentos altos. O poema de David-Mourão
Ferreira é um relâmpago. A sua escada, a escada de Jacob, é a vida, o tempo
curto que une o Céu e o Inferno. Camané percorreu-a de alto a baixo.
Depois
de um belíssimo instrumental em que as cordas brilharam, a voz atreveu-se ainda
mais, compondo "a capella" uma "Complicadíssima teia" com
mudanças de escala e as palavras de António Botto a chisparem de um Camané
sozinho à boca de cena. Mais exposto do que nunca. Sempre em crescendo, com a
voz já plenamente fundida com a emoção, Camané foi tornando cada vez mais alto e
forte e leve o seu canto, até atingir o ponto culminante (antes dos encores) no
"Estranho fulgor" servido pela poesia de Pedro Homem de Melo.
Já
a voar, como que a querer "vingar-se" do pequeno percalço do início
da segunda parte, repetiu "A cantar é que te deixas levar". Repetiu,
é uma força de expressão. O que antes pareceu tecnicamente difícil soltou-se,
como num toque de magia, sem esforço algum, em êxtase. Guitarras, voz,
contrabaixo literalmente voaram. É que, não sei se sabem, quando a música toma
conta do músico, tudo acontece numa coincidência (que é também ciência)
perfeita.
DISCOGRAFIA
“Uma Noite de Fados” (1995)
Gravado ao vivo em estúdio, com a
presença de público, foi o início de uma colaboração (com José Mário Branco).
“Na Linha da Vida” (1998)
Álbum de luzes e cicatrizes, nasceu
de um período doloroso na vida do fadista. “Eu não me entendo” está aqui.
“Esta Coisa da Alma” (2000)
Esta coisa é a alma de Camané. O
álbum que projetou o seu nome para a galeria dos clássicos.
“Pelo Dia Dentro” (2001)
O fado de Camané percorre todos os
cambiantes, das modalidades tradicionais a ruturas ensaiadas em nome do que o
seu íntimo lhe exige.
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