JAZZ
DISCOS
PÚBLICO
5 OUTUBRO 2002
Jon Balke,
Nels Cline, Steuart Liebig e Tom Harrell são homens bem instalados, dentro ou
fora da tradição. Foi Nina Simone quem, há 30 anos, soltou um dos mais
lancinantes gritos da música negra.
Os
desesperados caminham sem um ruído, os desesperados
Enfrentar a noite, voltados para
o mar, pode ser um bom começo para mudar qualquer coisa em nós, para fazer
parar o filme e pôr a rodar outro, mais nítido e transparente. A ECM é
especialista nestes casos. Dá-nos imagens, sonhos, uma limpidez exclusiva de
algum do jazz que por lá se faz. “Kyanos”, do teclista norueguês Jon Balke, com
a sua Magnetic North Orchestra, é o típico objeto de arte com o selo da casa de
Manfred Eicher, ilustrativo do jazz escandinavo que nesta mesma editora de há
muito vem sendo cultivado por gente como Jan Garbarek, Arild Andersen, Terje
Rypdal, Edward Vesala, entre outros estetas do que alguns já definiram como
“neo cool”.
Jon
Balke pertence à fação contemplativa, demonstram-no a forma como as notas do
seu piano levantam voo, como pássaros. Mas também respira nelas algo de Paul
Bley, na maneira como deixam o espaço abrir-se e o silêncio cantar. “Zygotos”
flui como uma maré, jazz de câmara, em camadas, a barrar os mesmos icebergues
de estrelas que Terje Rypdal se entretém a derreter, e “Katabolic” serve para
Per Jorgensen rezar no trompete sobre aquele fundo de pequenas coisas
eletrónicas a murmurarem em surdina por detrás da sacristia, que John Surman
semeou durante anos nos seus discos “minimalistas” na ECM.
Disco
elétrico, moderno (reparem no “groove” de “Plica” ou na violência pontilhista
de “Nano”, onde Cecil Taylor chega a espreitar) – embora não tão “moderno” com
as piscadelas à música de dança de Nils-Petter Molvaer, “Kyanos” passa na prova
da composição, ainda que a cada um dos músicos sejam dadas poucas oportunidades
de suar e, muito menos, de sangrar. Convém lembrar que na ECM ninguém gosta de
limpar a sujidade nem de bater para aleijar. Bofetadas, sim, mas com luva
branca…
Guitarra-chicote
Talvez por isso, saiba bem sentir
o estalo do chicote que Nels Cline empunha em forma de guitarra elétrica, em
“Instrumentals”. Título irónico, já que a banda dá pelo nome de The Nels Cline
Singers, apesar de nenhum dos temas ser vocalizado… Mais direto e “noisy” que a
sua anterior gravação para a Cryptogramophone, “The Inkiling”, “Instrumentals”
mostra um guitarrista em que a herança de Ornette Coleman e de James Blood
Ulmer é mais percetível que a de Coltrane (Nels chegou a compor uma versão de
“Interstellar space”, deste último), mais próximo do jazz rock e do “free rock”
(temas como “Cause for concern” e “Lowered boom”, magmas de eletricidade em
fúria, poderiam ser arrumadas em “Earthbound”, dos King Crimson) do que do
“free jazz”. O próprio define a sua música como
“powerjazzrockfreepsychedelicate instrumental music” e o crítico da “Jazz
Times” chama-lhe “o guitarrista mais perigoso do mundo”. Abanados pelo
terramoto de distorção e decibéis causados pela sua guitarra barítono, nos
15m20 catárticos de “Blood drawing”, somos tentados a dar-lhe razão.
Labirinto
Encontramos Nels Cline de novo no
ensemble de Steuart Liebig (compositor e guitarra contrabaixo, antigo “sideman”
de Julius Hemphill), ao lado de Mark Dresser (contrabaixo), Tom Varner (french
horn) e Vinny Golia (saxofone sopranino). Dresser e Varner, nova-iorquinos, são
nomes familiares da “new music”, enquanto Golia se destaca como expoente da
música improvisada de Los Angeles, com ligações ao rock de câmara (participa em
“City of Mirrors” dos Motor Totemist Guild). “Pomegranate”, construída segundo
os cânones da “big band”, mas liberal na ampla liberdade concedida ao discurso
individual de cada músico, divide-se em quatro movimentos longos onde convergem
o free-bop, estruturas classizantes e improvisação livre. Nels Cline faz o seu
número de guitarrista comedor de fogo em “The darkness of each endless fall” e
Varner desenha espirais em “Widening circles reach across the world”. Golia,
arrasador no registo “Evan Parker na broca de dentista”, e Eric Barber, no
clarinete baixo, conseguem tornar real em “Flare up like flame and create dark
shadows” o que o título recomenda. Pondo as coisas em perspetiva: a economia
musical de “Pomegranate” é tão parca em notas como os títulos das faixas o são
em palavras… Tanto melhor, se o excesso oferece matéria e motivo mais do que
suficientes para nos fazer perder no labirinto do “free”. Um luxo de loucura.
No “Village Vanguard”
Sair do labirinto pode tornar-se
um caso sério, caso não se tenha bússola ou se desconheça os ensinamentos do
sol. Mais grave, se for noite, como em “Pomegranate”… Mas do escuro emergiu um
edifício iluminado. Ao longe, as notas de um trompete embebido de classicismo
soltam-se como pardais que ali encontraram alimento, trazendo calor e
segurança. No letreiro do edifício lê-se “Village Vanguard” e é lá que Tom
Harrell se sente em casa. Já visitara o local antes, com as “big bands” de
George Russell e Mel Lewis, mas como líder arriscou-se a tocar na mítica sala
de jazz somente depois de se impregnar com os espíritos que John Coltrane aí
deixara na mítica sessão de 1961 (voltaria lá cinco anos mais tarde). Eleito o
ano passado pelos leitores da “Down Beat” como “compositor do ano”, Harrell é
um daqueles músicos que não engana nem engana o passado. Desprende-se da sua
música labor, sabedoria e memória, alegria e fluência contagiantes. Mesmo se
“Where the rain begins” salpique de humidade o humor, entregamo-nos a “Live at
the Village Vanguard” em reconciliação com a vida, não como ela é, mas como
gostaríamos que fosse. Felizes por sabermos que na estrada onde o jazz nasceu
continuam a passar ilustres viajantes.
Sombras no “gospel”
Nina Simone viaja por uma estrada
solitária. Não que a região seja desértica, a terra é a dos blues e do gospel,
mas porque a sua voz vem de outro mundo. Uma voz, meu Deus (não invocar o santo
nome d’Ele em vão, diz o mandamento, mas não é o caso) que traz dentro quantos
e tão vividos romances da alma. Em Nina Simone não faz sentido falar de
virtuosismo. O seu canto, como o de Aretha Franklin, é emoção em estado puro,
vibrato de ascetismo mas também um erotismo mágico muito pouco cristão.
“Gospel”, recorde-se, é “God” e “Spell”. Deus e feitiço. Se por vezes a
quiseram levar, e ela deixou, para os terrenos ínvios do simples
“entertainment”, “Nina Simone and Piano!”, voz e piano sem rede, constitui a
prova viva de que a sua música entra em harmonia numa esfera alternativa.
Editado pela primeira vez em 1969, e agora aumentado por quatro inéditos na
altura deixados de fora, o tempo acentuou a força e uma excentricidade vocais
que poderão soar hoje a ouvidos mais frágeis, a afetação e exagero. É verdade
que “I think it’s going to rain today” chega a incomodar, tal o despudor do
grito e a exibição sem preconceitos da solidão. “Everyone’s going to the moon”
reiventa o “crooning”, misturando “spoken word” e súplica, em longa e sofrida
oração de quem se sente cercado por um mundo em que a velocidade do que se quer
dizer ao outro não coincidem. Em “Who am I?”, de Leonard Bernstein, a Brodway
torna-se palco de ansiosa inquirição: “Acreditas na encarnação? Já aqui
estiveste antes? Tiveste essa experiência? Então deves questionar todas as
verdades conhecidas...”. Nina ousou ser diferente num campo, o dos espirituais,
demasiado habituado a certezas. “The desperate ones, they walk without a sound,
the desperate ones” canta num dos temas mais sombrios e inexplicáveis de “Nina
Simone and Piano!”. Não houve outro disco, objeto estranho no jazz vocal, que
falasse assim dos deserdados de deus. Ou dos homens.
Jon
Balke
Kyanos
7|10
ECM, distri. Dargil
The
Nels Cline Singers
Instrumentals
7|10
Cryptogramophone,
distri. Sabotage
Steuart Leibig
Pomegranate
8|10
Cryptogramophone,
distri. Sabotage
Tom Harrell
Live at the Village Vanguard
8|10
Bluebird,
distri. BMG
Nina Simone
Nina Simone and Piano!
9|10
RCA,
distri. BMG
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