JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 25 OUTUBRO 2002
O amor é sempre louco, ou não é amor. John Coltrane
viveu-o pelo lado da noite, até ao fim. Como demanda de um encontro com o
Absoluto eternamente adiado. Traçou o mais difícil dos caminhos pelo jazz.
Viagem
ao coração da noite
JOHN
COLTRANE
Legacy
Legacy
4xCD
Impulse, distri. Universal
9|10
John Coltrane,
"Trane", nasceu em 1926 na Carolina do Norte e morreu em Junho de
1967, em pleno "Verão do amor". Quarenta e um anos de uma viagem em
que a glória se confundiu com o sofrimento, a grande música com a grande dor.
Vida curta no tempo, como acontece amiúde com a vida dos génios, mas
"curta" apenas aos olhos profanos. Coltrane viveu-os por dentro, de
fio a pavio, como um fogo impiedoso, e durante esse tempo que não se deixa ver
por quem assiste em vez de participar, revolucionou o jazz. Ofereceu-lhe a
liberdade, na travessia da ponte que ligou o "hard bop" ao
"free".
Coltrane palmilhou com o seu
saxofone tenor o caminho que a ela conduz como um calvário, que é a forma mais
extremada de viver o êxtase. Excesso que é, de resto, a palavra de ordem de
toda a sua música. Excesso de notas (o seu tenor abrangia três oitavas que explorou
detalhadamente, até à exaustão), excesso de ritmos, excesso de escuta, excesso
de sentidos e de sentir, em suma, excesso de vida (e vida de excessos...) que
foi toda ela música, a transbordar, que conduziu o autor de
"Ascension", da aventura ao lado de Miles Davis até à grande solidão
cósmica de um "Interstellar Space" e das "Stellar regions",
nos quais mergulhou por fim como um cometa. Hoje os seus discípulos são incontáveis.
"Ballads",
"Crescent", "Live at the Village Vanguard",
"Meditations", "Sun Ship" e "A Love Supreme" são
alguns dos legados discográficos que nos deixou e a presente antologia reagrupa
sob a forma de uma "Legacy" subdividida em quatro unidades temáticas –
"Harmonic and Melodic", "Rhythmic", "Elvin and
Trane" e "Live" – compiladas pelo seu filho, Ravi Coltrane. De
fora, ficou "Ascension", templo, na aceção mais íntima do termo, e da
trágica impossibilidade de neles habitar permanentemente.
"Harmonic and Melodic"
arranca com um tema retirado da primeira sessão de Coltrane como líder, em
1957, "Straight street", e termina com "Offering",
revisitando de passagem clássicos como "Naima", "Giant
steps", "Crescent" e "Aknowledgment" (de "A Love
Supreme"). Normalmente em quarteto, acompanhado por Paul Chambers, Roy
Haynes, Alice Coltrane, Rashied Ali ou pelo mítico triângulo McCoy Tyner, Jimmy
Garrison e Elvin Jones, é o Coltrane hard bopper que nos é apresentado,
herdeiro do espírito do "blues", e o tecnicista obsessivo das
transposições rápidas e abruptas de acordes, o mago dos "giant steps"
nos quais alguns não conseguiram então descortinar mais do que simples
exibicionismo. E "Fifth house" é um tema onde jazz é sinónimo de
sensualidade.
O John Coltrane
"rítmico", não menos complexo, é exposto no segundo bloco temático,
"Rhythmic", na pujança do "be bop", menos
"bluesy" mas capaz de expressar outras subtilezas estilísticas,
nomeadamente as sobreposições e extensões, capazes de "torcer" a
balada mais lenta até a tornar numa vertigem de emoções mas sem que – e aqui
reside uma das características mais assombrosas do jazz de "Trane" –
o controlo e a "visão aérea" deixem algum instante de estar
presentes. "Impressions", assente no equilíbrio perfeito mantido por
Tyner/Garrison/Jones, ilustra na perfeição este conhecimento profundo da essência
de cada tema, valorizando um aspeto, o de compositor (e uma vez que alterar é
criar algo de novo), que em Coltrane amiúde costuma ser subvalorizado em
detrimento do executante e do improvisador. Para Coltrane, cada frase, cada
estado de alma, era infinito. Parece um dom. Na prática, significa a
impossibilidade de o divino caber na loucura, por mais desmesurada que possa
ser, do indivíduo. E aqui nasce a tragédia. Os deuses dão a ver a eternidade ao
homem mas proíbem-no de a alcançar em vida. Coltrane sentiu o chamamento dos
deuses, almejou a "música eterna", a única que poderia dar-lhe paz.
Mas essa era e é o silêncio. O silêncio que fica e se ouve por detrás de cada
nota, de cada grito, de cada incursão angustiante de "Trane" em direção
aos confins da expressão musical.
Pelo caminho foi pondo a sua
alma a nu e a nós (bem como a todos os músicos com coragem para acompanhar a
sua música até ao âmago) expondo-nos a uma ventania que, de tanto obrigar a
mergulhar nesse abismo negro que por norma não ousamos encarar de frente, se
pode tornar dolorosa. Como "Song of praise", súplica e ascese capaz
de fazer sofrer na violência do embate com o Belo. "Rhythmic" é ainda
um tratado de "free" ("Compassion", "Tranesonic"),
a liberdade de astros em colisão. "Venus", retirado da cosmologia,
elaborada já muito perto do fim, de "Interstellar Space", deixa-nos
em transe. É um transe. Saxofone tenor, sinos e a bateria de Rashied Ali, em
discreta pontuação. Amor louco em tom de despedida, monólogo arrepiante. Além dele
– o infinito.
"Elvin and Trane" tira
o retrato de uma simbiose. Entre o saxofonista e o baterista Elvin Jones, com
quem partilhou sessões da maioria dos clássicos dos anos 60. Jones, também ele
um "alongador" do tempo e profeta da eternidade, construiu, degrau a
degrau, a escada de Jacob que Coltrane haveria de subir. "Miles'
mode" é pura equação rítmica a três vozes (nesta associação o piano de
McCoy Tyner teve sempre algo a dizer) enquanto "The drum thing" põe
em evidência algumas das preocupações em redor da música tradicional que
"Trane" também utilizou na sua busca de uma "cosmonicação"
sem fronteiras. A passagem do solo de Jones para as frases curtas em "up
tempo" do saxofonista e do piano de Tyner, na terceira parte de "A
Love Supreme", constitui um dos momentos de puro deleite (e, curiosamente,
de menor inquietação...) de "Elvin and Trane", unidade temática e
unidade entre dois músicos que termina em "Serenity" (nunca um título
terá soado tão falso, ou tão dramático), ainda um adeus, opressão e beleza
conjugados numa viagem da qual já se adivinhava o epílogo.
O alívio, se alívio houver, virá
de "Live", das notas soltas em palco a enganar a solidão. No Birdland
ou no Village Vanguard. A música ganha proximidade, o saxofone conquista na
intimidade com o público a companhia que o seu périplo solitário jamais conseguiu
obter. É verdade que "Impressions", os 29 minutos de "Nature
boy/One down, one up" ou a sempiterna "Naima" devolvem-nos ao
lugar confortável em que o jazz parece poder ser uma música para ser ouvida em
segurança. Mas a noite está lá. Esteve sempre. John Coltrane escrevia assim em
1964: "How kind you are to me – to give – the universe revealed. I see.
Yes, right now I'll go to sleep – it's sweet – I rest in peace at night".
A esta "Legacy", a
esta ascensão ao coração do furacão, apenas faltará a inclusão de uma das suas
entradas principais. "Ascension", precisamente. Por o perigo ser
demasiado, talvez...
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