23/10/2016

Viagem ao coração da noite [John Coltrane]

JAZZ
DISCOS
PÚBLICO 25 OUTUBRO 2002

O amor é sempre louco, ou não é amor. John Coltrane viveu-o pelo lado da noite, até ao fim. Como demanda de um encontro com o Absoluto eternamente adiado. Traçou o mais difícil dos caminhos pelo jazz.

Viagem ao coração da noite

JOHN COLTRANE
Legacy
4xCD Impulse, distri. Universal
9|10

John Coltrane, "Trane", nasceu em 1926 na Carolina do Norte e morreu em Junho de 1967, em pleno "Verão do amor". Quarenta e um anos de uma viagem em que a glória se confundiu com o sofrimento, a grande música com a grande dor. Vida curta no tempo, como acontece amiúde com a vida dos génios, mas "curta" apenas aos olhos profanos. Coltrane viveu-os por dentro, de fio a pavio, como um fogo impiedoso, e durante esse tempo que não se deixa ver por quem assiste em vez de participar, revolucionou o jazz. Ofereceu-lhe a liberdade, na travessia da ponte que ligou o "hard bop" ao "free".
                Coltrane palmilhou com o seu saxofone tenor o caminho que a ela conduz como um calvário, que é a forma mais extremada de viver o êxtase. Excesso que é, de resto, a palavra de ordem de toda a sua música. Excesso de notas (o seu tenor abrangia três oitavas que explorou detalhadamente, até à exaustão), excesso de ritmos, excesso de escuta, excesso de sentidos e de sentir, em suma, excesso de vida (e vida de excessos...) que foi toda ela música, a transbordar, que conduziu o autor de "Ascension", da aventura ao lado de Miles Davis até à grande solidão cósmica de um "Interstellar Space" e das "Stellar regions", nos quais mergulhou por fim como um cometa. Hoje os seus discípulos são incontáveis.
                "Ballads", "Crescent", "Live at the Village Vanguard", "Meditations", "Sun Ship" e "A Love Supreme" são alguns dos legados discográficos que nos deixou e a presente antologia reagrupa sob a forma de uma "Legacy" subdividida em quatro unidades temáticas – "Harmonic and Melodic", "Rhythmic", "Elvin and Trane" e "Live" – compiladas pelo seu filho, Ravi Coltrane. De fora, ficou "Ascension", templo, na aceção mais íntima do termo, e da trágica impossibilidade de neles habitar permanentemente.
                "Harmonic and Melodic" arranca com um tema retirado da primeira sessão de Coltrane como líder, em 1957, "Straight street", e termina com "Offering", revisitando de passagem clássicos como "Naima", "Giant steps", "Crescent" e "Aknowledgment" (de "A Love Supreme"). Normalmente em quarteto, acompanhado por Paul Chambers, Roy Haynes, Alice Coltrane, Rashied Ali ou pelo mítico triângulo McCoy Tyner, Jimmy Garrison e Elvin Jones, é o Coltrane hard bopper que nos é apresentado, herdeiro do espírito do "blues", e o tecnicista obsessivo das transposições rápidas e abruptas de acordes, o mago dos "giant steps" nos quais alguns não conseguiram então descortinar mais do que simples exibicionismo. E "Fifth house" é um tema onde jazz é sinónimo de sensualidade.
                O John Coltrane "rítmico", não menos complexo, é exposto no segundo bloco temático, "Rhythmic", na pujança do "be bop", menos "bluesy" mas capaz de expressar outras subtilezas estilísticas, nomeadamente as sobreposições e extensões, capazes de "torcer" a balada mais lenta até a tornar numa vertigem de emoções mas sem que – e aqui reside uma das características mais assombrosas do jazz de "Trane" – o controlo e a "visão aérea" deixem algum instante de estar presentes. "Impressions", assente no equilíbrio perfeito mantido por Tyner/Garrison/Jones, ilustra na perfeição este conhecimento profundo da essência de cada tema, valorizando um aspeto, o de compositor (e uma vez que alterar é criar algo de novo), que em Coltrane amiúde costuma ser subvalorizado em detrimento do executante e do improvisador. Para Coltrane, cada frase, cada estado de alma, era infinito. Parece um dom. Na prática, significa a impossibilidade de o divino caber na loucura, por mais desmesurada que possa ser, do indivíduo. E aqui nasce a tragédia. Os deuses dão a ver a eternidade ao homem mas proíbem-no de a alcançar em vida. Coltrane sentiu o chamamento dos deuses, almejou a "música eterna", a única que poderia dar-lhe paz. Mas essa era e é o silêncio. O silêncio que fica e se ouve por detrás de cada nota, de cada grito, de cada incursão angustiante de "Trane" em direção aos confins da expressão musical.
                Pelo caminho foi pondo a sua alma a nu e a nós (bem como a todos os músicos com coragem para acompanhar a sua música até ao âmago) expondo-nos a uma ventania que, de tanto obrigar a mergulhar nesse abismo negro que por norma não ousamos encarar de frente, se pode tornar dolorosa. Como "Song of praise", súplica e ascese capaz de fazer sofrer na violência do embate com o Belo. "Rhythmic" é ainda um tratado de "free" ("Compassion", "Tranesonic"), a liberdade de astros em colisão. "Venus", retirado da cosmologia, elaborada já muito perto do fim, de "Interstellar Space", deixa-nos em transe. É um transe. Saxofone tenor, sinos e a bateria de Rashied Ali, em discreta pontuação. Amor louco em tom de despedida, monólogo arrepiante. Além dele – o infinito.
                "Elvin and Trane" tira o retrato de uma simbiose. Entre o saxofonista e o baterista Elvin Jones, com quem partilhou sessões da maioria dos clássicos dos anos 60. Jones, também ele um "alongador" do tempo e profeta da eternidade, construiu, degrau a degrau, a escada de Jacob que Coltrane haveria de subir. "Miles' mode" é pura equação rítmica a três vozes (nesta associação o piano de McCoy Tyner teve sempre algo a dizer) enquanto "The drum thing" põe em evidência algumas das preocupações em redor da música tradicional que "Trane" também utilizou na sua busca de uma "cosmonicação" sem fronteiras. A passagem do solo de Jones para as frases curtas em "up tempo" do saxofonista e do piano de Tyner, na terceira parte de "A Love Supreme", constitui um dos momentos de puro deleite (e, curiosamente, de menor inquietação...) de "Elvin and Trane", unidade temática e unidade entre dois músicos que termina em "Serenity" (nunca um título terá soado tão falso, ou tão dramático), ainda um adeus, opressão e beleza conjugados numa viagem da qual já se adivinhava o epílogo.
                O alívio, se alívio houver, virá de "Live", das notas soltas em palco a enganar a solidão. No Birdland ou no Village Vanguard. A música ganha proximidade, o saxofone conquista na intimidade com o público a companhia que o seu périplo solitário jamais conseguiu obter. É verdade que "Impressions", os 29 minutos de "Nature boy/One down, one up" ou a sempiterna "Naima" devolvem-nos ao lugar confortável em que o jazz parece poder ser uma música para ser ouvida em segurança. Mas a noite está lá. Esteve sempre. John Coltrane escrevia assim em 1964: "How kind you are to me – to give – the universe revealed. I see. Yes, right now I'll go to sleep – it's sweet – I rest in peace at night".
                A esta "Legacy", a esta ascensão ao coração do furacão, apenas faltará a inclusão de uma das suas entradas principais. "Ascension", precisamente. Por o perigo ser demasiado, talvez...

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