CULTURA
QUINTA-FEIRA, 7 FEVEREIRO 2002
Camané apresenta “Pelo Dia Dentro” no Porto
HOJE
E AMANHÃ NO TEATRO RIVOLI
O fado encontrou nele o futuro. Mas, como em Amália, também para Camané
a perfeição esconde-se para além da próxima curva. “O fado é uma música para a
vida toda.” O fado é Camané
Ele é o homem que em Portugal, no presente, melhor canta o fado.
Claro, há Carlos do Carmo, João Braga, Vicente da Câmara, Carlos Zel – a geração
mais velha. Mas se estes conservaram intacta a nobreza de uma tradição musical
que se confunde com a própria essência anímica de Lisboa, Camané tem a seu
favor ter projetado essa nobreza num sentido novo, capaz de atrair para o fado
novos aderentes.
Depois, ou
antes, ou sempre, Camané é um fadista inteiro. Parece pouco, mas é muito. Por
vezes até, como no seu caso, excessivo. Um excesso de vida e de sentimentos que
não andam longe do sofrimento e da morte, enquanto símbolo de regeneração. Ser
fadista não é apenas cantar o fado. É ser. E desse ser fazer com que a voz se vergue
à força das ondas e se molde à poesia das palavras.
Algo que o
próprio sintetiza de forma desconcertante, numa alusão ao espírito (o fogo) que
enforma os verdadeiros fadistas: "É preciso ser-se fadista a cantar".
Um chamamento, enfim. De chama. O fado chama pelo homem, o homem chama pelo
fado. A alma vibra em simpatia como um eixo. Se tiver forma de voz, tanto
melhor.
Camané vai
ter a sua prova de fogo esta noite e amanhã no Teatro Rivoli, no Porto, descendo
a Lisboa no dia 14 para atuar no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém.
A seu lado vão estar os seus companheiros habituais, nos últimos tempos: José
Manuel Neto, na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença, na viola, e Paulo
Paz, no contrabaixo. Sem convidados.
"No
fundo, é como se estivesse em minha casa, para convidar alguém tinha que estar
preparado para o receber. Quero sentir-me confortável. E para me sentir honesto
tenho que dizer que não estou pronto para receber ninguém, ainda", diz
Camané.
Exposição
total. Sem truques. Sem medos. Bem, não exatamente: "Sinto sempre algum, é
um bocado complicado. Depois desaparece, pelo enorme prazer que sinto em
cantar, com as palavras, as emoções... A partir daí parece que consigo sair de
mim, deixo de me preocupar comigo, entrego-me aos fados".
Ser-se
fadista é também essa entrega, "às palavras, ao que se está a cantar, é
deixar-me ir". E é "ser-se autêntico": "Um cantor de
flamenco, identificamo-lo logo mal o ouvimos cantar. Um fadista também. Quando
dou um ré, é completamente diferente da maneira como um cantor de jazz dá um
ré. É um tempo, um ambiente, uma coisa diferente".
Aprender com o
passado
É preciso, pois, ser-se fadista a cantar. Cantar, toda a gente
sabe o que é. Mas ser fadista é fado de muito poucos. Camané sentiu-o desde
muito cedo. Ainda criança, já cantava. O fardo de luz veio mais tarde. Ganhou
em 1979 a Grande Noite do Fado, trabalhou com Filipe La Féria, participou nas
noites de fado da Comuna.
Foi aí que
conheceu José Mário Branco, outro trovador dos combates do espírito. E José
Mário Branco ajudou-o a abrir as asas, assumindo-se como produtor e
"designer" de uma música que a sua sabedoria lapidou em jóias, nos
álbuns "Uma Noite de Fados", "Na Linha da Vida", "Esta
Coisa da Alma" e o novo "Pelo Dia Dentro", que estará na base do
alinhamento para o concerto de hoje à noite, embora não fiquem de fora alguns
dos fados dos seus anteriores trabalhos.
Sem José
Mário Branco, a música de Camané teria sido outra. "Uma das coisas que
gosto de ouvir é a forma como se toca, um som específico que se adapte à minha
voz. Era o que eu gostava de ouvir em algumas bandas rock ou noutros estilos de
música, esse som próprio, determinado ambiente. E foi isso que o José Mário fez
nos meus discos, pôr a guitarra a responder, conforme as palavras. Conseguiu a
ligação perfeita com a minha maneira de estar no fado".
Curiosamente,
Camané não gosta de ouvir os seus próprios discos. "Acho sempre que posso
fazer melhor, estou sempre a achar que está mal, em relação à minha forma de
cantar". Pode parecer estranho que assim aconteça, na medida em que a
crítica e o público têm sido unânimes no reconhecimento do seu talento.
Mas não há
nada a fazer. Como em Amália, como em Carlos Paredes, também eles eternamente
descontentes consigo mesmos, a humildade de Camané impede-o de se ver com os
mesmos olhos com que os outros o veem: "Sempre senti o peso de conseguir
estar à altura do passado. Vejo só os meus defeitos, é uma questão de carater,
pode haver um estádio inteiro a dizer bem, mas basta que haja uma só pessoa a
dizer mal que é a ela que presto atenção. Sei que tenho que aprender
muito".
É essa
insatisfação que faz com que Camané não pare e que o impele para diante. Camané
aprende porque a vida é ela mesma aprendizagem. "Só tenho a aprender com
Amália, com o Carlos do Carmo, com o Marceneiro".
Mas se o
fado tem a ver com a vida, será possível aprender a viver através da vida dos
outros? O segredo tem que estar algures. "Tento aprender a sua arte. Uma
forma de viver as palavras, de as fazer nossas. Sei que tenho que crescer ainda
muito, humanamente. O fado é uma música para a vida toda. Os fados
tradicionais, embora pareça o contrário, são difíceis de cantar. A melodia é
simples, a arte está em construir uma canção dentro dela, como um 'blues'. Aí é
que aparece o lado criativo. É preciso interiorizar tudo e isso para mim é o
mais difícil, mas também o mais bonito do fado – a criação". O que Camané
aprende e nos ensina é a descortinar a beleza.
Camané
PORTO Rivoli Teatro Municipal (Grande Auditório). Tel:
223392219. Hoje e amanhã, às 21h30. Bilhetes a 13 e 16 euros.
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