CULTURA
DOMINGO, 1 DEZ 2002
Do plástico
à miniatura em cartão
Existe mesmo uma magia das capas e juramos que não tem nada a ver
com Harry Potter. Capas de discos, bem entendido. Quantas vezes não comprámos
já um álbum apenas pela capa, como se, subentendido nesta sedução do olhar,
estivesse algo maravilhoso, a promessa de uma música das esferas?
É verdade que
nem sempre a intuição se revela acertada e que acabamos por ficar agarrados a
monos. Mas mesmo as desilusões comprovam a importância de uma boa capa, uma
capa apelativa, no "marketing" da indústria discográfica.
Esta magia
descresceu um pouco quando as capas de cartão que embrulhavam os LPs de vinil
foram substituídas pelas caixas de CD. Ultrapassado, no entanto, o fascínio
inicial pelo "som inteiramente limpo" (diziam eles...) que relegava
para segundo plano o aspecto gráfico (muitas das primeiras reedições em CD de
fundo de catálogo são caricaturas dos originais), as atenções voltam a
centrar-se no empacotamento e na aparência. O apelo do cartão volta a fazer das
suas.
Aparecem em
primeiro lugar os digipaks, embalagens "de abrir" que devolvem o
prazer das velhas "fold out covers" que atafulhavam as estantes dos
discófilos dos anos 70, de sonhos e cartão.
Ao contrário
dos livretes ou simples folhas de papel impresso que cobardemente se abrigam na
caixa de plástico "standardizada" do CD normal - no caso das
reedições, reduzindo a uma escala microscópica os grafismos originais - o
"digipak" manuseia-se, gasta-se, fica com os cantos amolgados. O que
implica uma certa iniciação, cuidados a ter no seu manuseamento, a preocupação,
nos mais picuinhas, de conservar o mais possível intacto o objecto, com o
recurso a plásticos de protecção. Mas não chega. Coleccionar vinil era outra
coisa. Mais física, palpável. Os japoneses, pioneiros na arte de encolher, têm
uma ideia peregrina. Em vez do "digipak" que, além de outros
inconvenientes, transforma o formato quadrado das capas dos LPs em rectângulos,
porque não fazer uma clonagem das mesmas? É assim que surgem as chamadas
"miniaturas", vendidas a preços proibitivos, mas possuidoras de um
"charme" irresistível. Uma miniatura japonesa é uma obra de arte. Da
textura ao "inlay", da cor ao envernizamento, uma miniatura japonesa
dispensa por completo o plástico e oferece a garantia de ser uma réplica 100
por cento fiel ao LP original. Com a vantagem de a gravação ser perfeita e se
poder arrumar com toda a facilidade.
Em Portugal
há miniaturas das discografias completas dos XTC, The Jam, AC/DC e Genesis, a
primeira fase dos King Crimson ou, em exemplar avulso, "Wish You Were
Here", dos Pink Floyd. O jazz converteu-se igualmente a esta nova mania,
com a Universal a disponibilizar neste formato uma quantidade de reedições
(inéditas) pertencentes ao grupo Verve (Dizzy Gillespie, Ella Fitzgerald, Alice
Coltrane, Count Basie, Sam Rivers, Gerry Mulligan, Stan Getz, entre outros). A
Sony contenta-se em cartonar LPs de jazz rock dos Weather Report, Return to
Forever e Al Di Meola, ou em tornar ainda mais indispensável "In a Silent
Way", de Miles Davis. Isto enquanto catálogos importantes como os da
Impulse ou da Original jazz Classics, se ficam, para já, pelas reedições em
"digipak".
Os
"conhecedores", sobretudo os apreciadores de rock progressivo,
ávidos, vão mais além, recorrendo às importações directas, dispostos a derreter
os ordenados em miniaturas de discos que já tinham em casa, dos Focus,
Renaissance, Moody Blues, Jethro Tull, Pink Floyd, Caravan, Camel, Frank
Zappa... "Crème de la crème", as cinco séries denominadas "Rock
Fantasy", miniaturizaram, até à data, LPs de nomes, muitos deles obscuras
preciosidades, como East of Eden, Gracious, Clear Blue Sky, Gentle Giant, Khan,
T.2, Egg, Stackridge, Wolf, Barclay James Harvest...Na senda do sucesso destas reedições
aparecem as "imitações", miniaturas manufacturadas à pressão que
descuram por completo a minúcia das japonesas, caso de alguns Emerson, Lake and
Palmer ou Uriah Heep. Há ainda aproximações ao conceito - capas em cartão que
não são nem miniaturas nem digipaks - como as produzidas pelo selo italiano
Akarma que tem feito a reconversão de grande parte do material dos anos 70
anteriormente disponível pela editora/distribuidora alemã Repertoire,
entretanto extinta.
Trinta anos
depois, para gáudio dos ecologistas, o plástico está condenado a morrer.
50 anos de
história
Além do suporte propriamente dito, uma capa pode ser uma proposta
estética. Até aos anos 60 era simples: fotografava-se o artista e pespegava-se
na capa. A exceção vinha do jazz, da editora Blue Note, que desde os anos 50
criara uma envolvência e um grafismo próprio com base na fotografia a duas
cores.
A poo espera
até os Beatles lançarem no final dos anos 60 (1967) o objeto de arte total que
é “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, considerado o primeiro LP pensado
como um todo e, no mesmo ano, Andy Warhol colar uma banana no álbum de estreia
dos Velvet Underground.
Um luxo que o
Psicadelismo (ainda em 67, os Rolling Stones introduzem uma imagem 3D em “Theis
Satanic Majesties Request”) e o Rock Progressivo se encarregam de levar a um
barroquismo impensável há poucos anos.
Já na década
de 70, editoras inglesas como a Vertigo e a Harvest usam e abusam dos LP com
“capas de abrir”, numa apropriação da estética do “poster”. São imagens vastas,
desenhos, gravuras, pinturas ou fotografias em que o onirismo e a profusão de
detalhes rivaliza com a complexidade da música.
Na Vertigo,
Markus Keef socorre-se de fotografias tratadas com filtros que conferem um
expressionismo teatral a capas dos Black Sabbath, Beggars Opera, Cressida,
Colosseum ou Affinity. O outro chama-se Roger Dean e pinta paisagens
alienígenas para os Ramases, Clear Blue Sky e Dr. Strangely Strange, num estilo
que se propagaria em larga escala nas capas e no logotipo dos Yes (“Fragile”, “Close
to the Edge”, “Tales from Topographic Oceans”, “Relayer”).
A Harvest
conta com a Hipgnosis para elaborar requintadas colagens fotográficas
surrealistas que adquirem especial relevo em “Ummagumma” e “Atom Heart Mother”
dos Pink Floyd. Brian Eno recorre aos serviços do pintor Peter Schmidt para
aguarelar “Taking Tiger Mountain (By Strategy)” e a coleção de postais que
acompanha a efdição de “Before and After Sicence”.
Na
contracorrente estão os alemães Faust. Capa, “insert” e vinil transparentes, a
suportar a radiografia de um punho, no disco de estreia, negro absoluto em “So
Far”. Ainda na Alemanha, sob o impulso d LSD, a Kosmische Musik de Rolf-Ulrich
Kaiser lança-se no espaço sideral em capas de galáxias longínquias desenhadas
por Peter Geitner para Walter Wegmuller, Popol Vuh, Cosmic Jokers e Klaus
Schulze.
Nos anos 80 a
crise do petróleo e, consequentemente, do papel, faz desaparecer as “fold out
covers”. O minimalismo e a contenção imperam. Desaparecem as “pinturas” dos
anos 70, substituídas por um grafismo despojado que junta ainda a agresividade
gráfica do “punk” (“Never Mind the Bollocks”, dos Sex Pistols, com os seus
altos contrastes de rosa choque e amarelo-limão, permanece um clássico) ao
desejo de um renovado romantismo.
E, se para os
lados da Factory, a regra é ainda a melancolia, conferindo tons mortiços às
capas de Peter Saville para os Joy Division, New Order e Durutti Column, na
4AD, a 23 Envelope oferece aos Cocteau Twins e This Mortal Coil uma névoa de
sugestões inspirada pela pintura impressionista.
O conceito de
“série”, posto em prática através da repetição de grafismos, de disco para
disco, surge na editora belga Made to Measure (Minimal Compact, Benjamin Lew,
Hector Zazou, etc). Na “World music”, Peter Gabriel leva a conceção ao enjoo,
com o catálogo Real World. A contrastar, a Recommended junta estética e
ideologia, em capas-gravuras de edição limitada e numerada (ZNR, News From
Babel, Cassiber), resultantes do contributo monetário dos futuros compradores.
Os Zoviet France constroem capas em contraplacado enquanto o jazz se transforma
em objeto de contemplação nas capas-zen da editora ECM.
Nos anos 90,
o computador substitui ou alia-se à criação humana. A música eletrónica domina
e a estética dos “clicks & cuts” inave digipaks preenchidos por números,
abstrações matemáticas e espectros informáticos. Para contrabalançar, na “dance
music” o ideário gráfico do “rap” e do “hip hop” recupera as cores quente da
soul dos anos 60 e 70, e o “smile” da droga Ecstasy traz para a “house” os
caleidoscópios de luz e cor do psicadelismo. A pop recorre à fotografia de
Anton Corbijn que imprime a sua assinatura em capas dos Depeche Mode, Tricky e
U2. O absurdo instala-se, finalmente, no seio do “mainstream” e das “grandes
estrelas” dos tops. O ciclo fecha-se. Hoje, como há 40 anos, a indústria volta
a espremer a galinha dos ovos de ouro e descobre que, para promover o produto,
nada melhor do que afixar uma foto da “artista”, despida o mais possível. O
sexo vende. Andy Warhol é que tinha razão.
Como se faz
João Faria, 31 anos, gráfico, tem a sua assinatura em capas de
artistas portugueses como os Três Tristes Tigres, Cool Hipnoise, Sérgio
Godinho, Zen e Isabel Silvestre, e nas coletâneas “Home Listening” e “Portugal
de Luxe”. Escolheu como o trabalho que mais gozo lhe deu, o álbum “Comum”, dos
Três Tristes Tigres, lançado em 1998 pela editora EMI-VC em formato “digipak”.
Ele explica as várias fases do processo.
1. Conversas
com os músicos
“O primeiro passo é estar com as pessoas, conhecer os músicos,
nomeadamente a Ana Deus, mesmo antes de ouvir a música, para perceber bem quais
as expetativas deles relativas à capa”
2. Audição
da música
“Essencial. Ouvir as letras e aproximar-me das palavras da Ana e
da Regina [Guimarães]. A ideia principal, sugerida pelas leras do título,
ultrapassando a própria área da capa, é a aceleração”
3. Escolha
dos materiais
“A piada esteve na metodolgia utilizada. De me aproximar daquilo
que eu julgo ser a maneira de eles também fazerem música. Ir mexendo com as formas,
com o ‘lettering’, com o que envolve as palavras. Havia uma ideia, que acabou
por não se revelar suficientemente forte, de centra tudo em imagens de vídeo
obtidas a partir de um documentário da televisão sobre os meninos de Budapeste
que vivam nos subterrâneos. Aconteceu que, no momento em que começámos a
experimentar pôr as palavras em cima das imagens, imediatamente se percebeu que
o próprio título do álbum, “Comum”, era extremamente forte e poderia funcionar
isoladamente, sem ter que se associar a uma imagem”
4. Compromisso
com a editora
“Nós pensámos sempre num ‘digipak’. A editora preferia uma
embalagem normal. Por limitações orçamentais em termos de produção. O
compromisso determinou a opção pelo ‘digipak’ mais simples, de 4 páginas,
aquele que só abre e mais nada. Não havia espaço para as letras. Quase como um
manifesto, decidimos colocar as letras no suporte onde elas não podem mesmo ser
lidas enquanto o disco está a tocar, ou seja, na ‘bolacha’, no disco mesmo.
Acabou por resultar”
5. Arte
final
“Apesar do produto final não ser feito em Portugal – o disco é
fabricado numa fábrica na Holanda – não tenho razões de queixa. As ‘artes
finais’ já tinham sido verificadas cá, estava tudo direitinho, segundo técnicas
digitais”
As capas favoritas de João Faria são, em Portugal, “Free
Terminator”, dos Santa Maria Gasolina em Teu Ventre e, no estrangeiro,
“Daydream Nation”, dos Sonic Youth.
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