CULTURA
QUARTA-FEIRA,
6 NOV 2002
“1984” NA
POP
David Bowie,
Robert Fripp e os Eurythmics são alguns dos famosos que transportaram “1984” da
literatura para a música pop. Nenhum deles, porém, explorou tão a fundo a casa
como Hugh Hopper, ex-baixista dos Soft Machine.
A casa mais vigiada
do país é, acreditam, a nossa. Quanto ao “Big Brother dos Famosos”, teve na pop
alguns dos seus inquilinos. George Orwell, como Aldous Huxley, Michael Moorcock ou Philip K. Dick,
influenciou, direta ou indiretamente, a cultura pop na sua vertente mais
visionária. Mas se, sobretudo os dois últimos, convidavam à alucinação, ao
onirismo e à utopia, elementos que o psicadelismo e o rock progressivo
exploraram até à exaustão, já Huxley (que ainda incorporava no seu “Admirável
Mundo Novo” uma realidade alternativa induzida pela droga) e, principalmente
Orwell, no seu “1984”, projetavam o futuro com as cores negras da anti-utopia e
do totalitarismo.
É
necessário ser-se duro, ou delirantemente lúcido, para construir boa música
inspirada neste universo de terror e claustrofobia, mesmo sem Teresa Guilherme
estar presente. Os Progressivos, já na sua fase tardia, foram lá, mas sem
grande sucesso. Os “1984” de Rick Wakeman (teclista dos Yes) e de Anthony
Phillips (guitarrista dos Genesis, antes de Steve Hackett), comprovam, entre
outras lacunas, a ausência do que poderíamos designar por “espírito
orwelliano”, a dimensão profética e o ultra-realismo que tornam a leitura do
livro num afogamento até ao grau zero do sonho e da liberdade. Ainda que
Phillips tenha posto na capa a terrífica gaiola de ratos que no livro é a
personificação do horror e dos medos mais profundos que cada um transporta, a
música, editada em 1992, é uma fusão mecanicista entre uma personalidade mal
refeita das fábulas genesianas e a pop eletrónica, sequenciada sem grande
imaginação.
A
década de 80 foi bem aproveitada pelos Eurythmics que, em pleno ano do Grande
Irmão orwelliano, gravaram o seu “1984 (For the Love of Big Brother)”. Vivia-se
a época cinzenta do pós-industrialismo e da “electronic body music” que
pareciam dar razão aos funcionários dos ministérios da “paz”, da “verdade” e do
“amor”... Mas apesar do azul de aço dos olhos, os cabelos louros e a voz “soul”
de Annie Lennox eram uma traição ao pesadelo. “Sweet Dreams are Made of This”.
Sem dúvida não há como escapar à ironia deste outro título dos Eurythmics. Mas
esse tempo de milícias sem sonhos pertencia então aos Front 242, Laibach ou
Test Dept.
Coisa
mais séria e musicalmente relevante, encontramo-la não na pop mainstream mas no
quarto gelado de Robert Fripp e David Bowie, juntos como grandes irmãos nos
dois álbuns do cantor, “Heroes” e “Scary Monsters (and Super Creeps)”. Fripp,
um dos maiores autoritários e luciferinos criadores do rock contemporâneo,
sentiu-se como tubarão em águas ensanguentadas, ao exercer a sua veia de guru
em “Let the Power Fall”, álbum de 1981, em que as suas “frippertronics”
anunciam em cinco etapas (começando em “1984” e terminando em “1988”) a chegada
da idade do gelo. Bowie, sempre mais teatral, dez anos antes da data
“fatídica", povoou o seu álbum de 1974, “Diamond Dogs”, de fúria,
eletricidade e mutações, encenando a reclusão, mas também a revolta e o
espetáculo, no circo do “rock ‘n’ roll”.
Falta
falar da obra-prima gravada por um músico tão obscuro como fascinante: Hugh
Hopper, baixista dos Soft Machine e, até hoje, discreto inseminador do melhor
jazz de fusão feito na Grã-Bretanha nas últimas três décadas. O álbum
intitula-se “1984” e foi editado originalmente em 1972, estando atualmente
disponível em CD com o selo Cuneiform.
Figura
proeminente do movimento de Canterbury (fez parte da banda seminal, Wilde
Flowers), Hopper não poderia ter-se afastado mais dos campos relvados e dos
surrealistas chás das cinco (suspeita-se que de haxixe...) que eram timbre
deste sub-género do Progressivo, do que se afastou em “1984”. Influenciado pelo
minimalista Terry Riley (nunca será demais salientar a importância que teve
para o rock mais experimental uma obra como “A Rainbow in Curved Air”), pelas
“tape collages” do homem do Gong, Daevid Allen (nessa época envolvida na
manipulação de fitas com a música de Ornette Coleman e as vozes de Ferlinghetti
e William Burroughs) e pelo radicalismo revolucionário de “Third” dos Soft
Machine, Hopper conseguiu criar o seu próprio mundo de sombras, tão ou mais
assustador que o de Orwell.
Hopper
ilumina com uma lanterna furtiva os corredores de “Miniluv”, “Minipax”,
“Minitrue” e “Miniplenty”. O baixo elétrico explode em graves onde a distorção
é levada ao limite, “loops” sem saída são mordidos pela serra elétrica do free
jazz. Imaginem o manicómio onde o espírito de Robert Wyatt se refugiou em “Rock
Bottom”. Desçam as escadas. O “1984” de Hugh Hopper desenrola-se nas caves
desse manicómio, nas salas secretas onde
se injetam estranhos soros e se corta o cérebro dos doentes aos bocadinhos.
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