20/10/2016

"1984" na Pop

CULTURA
QUARTA-FEIRA, 6 NOV 2002

“1984” NA POP

David Bowie, Robert Fripp e os Eurythmics são alguns dos famosos que transportaram “1984” da literatura para a música pop. Nenhum deles, porém, explorou tão a fundo a casa como Hugh Hopper, ex-baixista dos Soft Machine.

A casa mais vigiada do país é, acreditam, a nossa. Quanto ao “Big Brother dos Famosos”, teve na pop alguns dos seus inquilinos. George Orwell, como Aldous Huxley, Michael Moorcock ou Philip K. Dick, influenciou, direta ou indiretamente, a cultura pop na sua vertente mais visionária. Mas se, sobretudo os dois últimos, convidavam à alucinação, ao onirismo e à utopia, elementos que o psicadelismo e o rock progressivo exploraram até à exaustão, já Huxley (que ainda incorporava no seu “Admirável Mundo Novo” uma realidade alternativa induzida pela droga) e, principalmente Orwell, no seu “1984”, projetavam o futuro com as cores negras da anti-utopia e do totalitarismo.
                É necessário ser-se duro, ou delirantemente lúcido, para construir boa música inspirada neste universo de terror e claustrofobia, mesmo sem Teresa Guilherme estar presente. Os Progressivos, já na sua fase tardia, foram lá, mas sem grande sucesso. Os “1984” de Rick Wakeman (teclista dos Yes) e de Anthony Phillips (guitarrista dos Genesis, antes de Steve Hackett), comprovam, entre outras lacunas, a ausência do que poderíamos designar por “espírito orwelliano”, a dimensão profética e o ultra-realismo que tornam a leitura do livro num afogamento até ao grau zero do sonho e da liberdade. Ainda que Phillips tenha posto na capa a terrífica gaiola de ratos que no livro é a personificação do horror e dos medos mais profundos que cada um transporta, a música, editada em 1992, é uma fusão mecanicista entre uma personalidade mal refeita das fábulas genesianas e a pop eletrónica, sequenciada sem grande imaginação.
                A década de 80 foi bem aproveitada pelos Eurythmics que, em pleno ano do Grande Irmão orwelliano, gravaram o seu “1984 (For the Love of Big Brother)”. Vivia-se a época cinzenta do pós-industrialismo e da “electronic body music” que pareciam dar razão aos funcionários dos ministérios da “paz”, da “verdade” e do “amor”... Mas apesar do azul de aço dos olhos, os cabelos louros e a voz “soul” de Annie Lennox eram uma traição ao pesadelo. “Sweet Dreams are Made of This”. Sem dúvida não há como escapar à ironia deste outro título dos Eurythmics. Mas esse tempo de milícias sem sonhos pertencia então aos Front 242, Laibach ou Test Dept.
                Coisa mais séria e musicalmente relevante, encontramo-la não na pop mainstream mas no quarto gelado de Robert Fripp e David Bowie, juntos como grandes irmãos nos dois álbuns do cantor, “Heroes” e “Scary Monsters (and Super Creeps)”. Fripp, um dos maiores autoritários e luciferinos criadores do rock contemporâneo, sentiu-se como tubarão em águas ensanguentadas, ao exercer a sua veia de guru em “Let the Power Fall”, álbum de 1981, em que as suas “frippertronics” anunciam em cinco etapas (começando em “1984” e terminando em “1988”) a chegada da idade do gelo. Bowie, sempre mais teatral, dez anos antes da data “fatídica", povoou o seu álbum de 1974, “Diamond Dogs”, de fúria, eletricidade e mutações, encenando a reclusão, mas também a revolta e o espetáculo, no circo do “rock ‘n’ roll”.
                Falta falar da obra-prima gravada por um músico tão obscuro como fascinante: Hugh Hopper, baixista dos Soft Machine e, até hoje, discreto inseminador do melhor jazz de fusão feito na Grã-Bretanha nas últimas três décadas. O álbum intitula-se “1984” e foi editado originalmente em 1972, estando atualmente disponível em CD com o selo Cuneiform.
                Figura proeminente do movimento de Canterbury (fez parte da banda seminal, Wilde Flowers), Hopper não poderia ter-se afastado mais dos campos relvados e dos surrealistas chás das cinco (suspeita-se que de haxixe...) que eram timbre deste sub-género do Progressivo, do que se afastou em “1984”. Influenciado pelo minimalista Terry Riley (nunca será demais salientar a importância que teve para o rock mais experimental uma obra como “A Rainbow in Curved Air”), pelas “tape collages” do homem do Gong, Daevid Allen (nessa época envolvida na manipulação de fitas com a música de Ornette Coleman e as vozes de Ferlinghetti e William Burroughs) e pelo radicalismo revolucionário de “Third” dos Soft Machine, Hopper conseguiu criar o seu próprio mundo de sombras, tão ou mais assustador que o de Orwell.
                Hopper ilumina com uma lanterna furtiva os corredores de “Miniluv”, “Minipax”, “Minitrue” e “Miniplenty”. O baixo elétrico explode em graves onde a distorção é levada ao limite, “loops” sem saída são mordidos pela serra elétrica do free jazz. Imaginem o manicómio onde o espírito de Robert Wyatt se refugiou em “Rock Bottom”. Desçam as escadas. O “1984” de Hugh Hopper desenrola-se nas caves desse manicómio,  nas salas secretas onde se injetam estranhos soros e se corta o cérebro dos doentes aos bocadinhos.

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