CULTURA
TERÇA-FEIRA, 26 MAR 2002
Um Strindberg amável e feliz no D.
Maria II
ESTREIA-SE
ESTA NOITE EM LISBOA
“A Viagem de
Pedro, o Afortunado” é uma “comédia amável”, de Strindberg, que Fernanda Lapa
coloriu com os tons de um “divertissement” deslumbrante
August Strindberg escreveu “A
Viagem de Pedro, o Afortunado” em 1881. Uma “comédia afável” que fala da vida e
da sua dupla face. “A vida é boa, a vida é má”, disse um dia. O dramaturgo
sueco, falecido em 1912, escreveu-a numa fase feliz. A encenadora Fernanda Lapa
decidiu, por sua vez, fazer felizes os espectadores, tomando em mãos aquela que
é a primeira apresentação da obra em Portugal.
A
estreia, inicialmente prevista para dia 21, acabou por se atrasar cinco dias,
por motivos técnicos. “Foi um desafio”, reconhece Fernanda Lapa, para quem a
primeira tradução em língua estrangeira de “A Viagem de Pedro, o Afortunado”,
assinada por António Feijó, em 1908, é “datada e cheia de floreados”.
Leu
a francesa e ficou surpreendida: “Uma comédia amável do Strindberg? Não pode
ser! E comecei a ver o que havia nas entrelinhas...” Acabou por descobrir neste
“objeto estranho” o “regresso à infância” do autor, mas onde não estão ausentes
“a amargura, o desencanto e a raiva pelo mundo e pelos outros, o desejo de felicidade
nunca alcançada”.
Pedro faz-se homem
A história é simples: Pedro vive
no mais completo desconhecimento do mundo. Mas alguém está decidido a abrir-lhe
os olhos. Parte numa viagem de descoberta de si mesmo e dos outros. Recebe um anel
mágico que lhe permite satisfazer os mais ínfimos (e íntimos...) desejos, até
descobrir que só a morte do egoísmo que o faz apaixonar-se por si próprio, o
levará à conquista do amor de Lisa. Lisa é Ela, o guia, a intuição, o Feminino,
o mercúrio, o vestido vermelho das núpcias alquímicas...
É
uma viagem de aventuras, êxtases e desilusões, através da qual Pedro descobre à
sua custa que tudo tem um verso e um reverso. Pedro acolhe falsos amigos, ganha
o toque de Midas, torna-se candidato renovador contra o poder despótico da
“corporação”, é feito califa, mergulha na sociedade da corrupção e das
conveniências, desanca nos poemas que não rimam com poesia. Procura Lisa, mas
esta foge-lhe por entre o desmoronar de cada ilusão. Confronta-se com a morte e
faz figura de cobarde.
A
floresta, que no primeiro ato é lugar de maravilhas e deslumbramento (é lá que,
como em grande número de tradições do romantismo, em tom iniciático, se depara
com Ela pela primeira vez) torna-se cruel. Ondas afogam-no, levam-no e
lavam-no. Por fim, Pedro aporta às Ilhas Afortunadas e torna-se um Homem. Lisa
está à sua espera.
Fernanda
Lapa espalhou por “A Viagem de Pedro, o Afortunado” mil e um brinquedos e
truques cénicos, sem perder de vista a unidade da progressão dramática, também ela
sorridente como uma criança feliz — “os aspetos poéticos da peça foram os que mais
me atraíram” —, de modo a fazer desta saga um deleite para os sentidos.
Assistimos,
nesta “comédia amável”, a soluções de extraordinária eficácia, como o recurso ao
vídeo, da responsabilidade de Carlos Assis. A música de João Lucas sabe depurar
o melhor da escola pós-clássica de um Hector Zazou ou de um Henry Torgue. A
cenografia de Ana Vaz, os figurinos de Filipe Faísca, o movimento desenhado por
Marta Lapa e as esculturas de Carlos Lopes convergem todos na edificação de um
palácio de folguedos que são ora de uma extrema delicadeza, ora de um fulgor
barroco a roçar o sarcasmo e a decadência.
Mas
Pedro, que, segundo Fernanda Lapa, é o próprio Strindberg, acreditava. No triunfo
inevitável do bem sobre o mal. Ou fingia que acreditava. Entre as várias
maravilhas de “A Viagem de Pedro, o Afortunado” a menor não será a de, também
nós, participando da odisseia iniciática de Pedro/Strindberg, e durante o
espaço de tempo em que a vida se confunde com o teatro, acreditarmos.
A Viagem de Pedro,
o Afortunado
De August Strindberg
Encenação de Fernanda Lapa. Com José Neves, Maria Amélia Matta,
Maria Henrique, entre outros.
LISBOA Teatro Nacional D. Maria II. Tel.: 213250800.
Estreia hoje, às 21h30. De 3ª a sáb., às 21h30; dom., às 16h.
Bilhetes a 10 euros.
Um
“remake” de “Peter Gynt”
Strindberg escreveu “A Viagem
de Pedro, o Afortunado” numa altura em que se sentia bem consigo e com o mundo,
o que, como é sabido, não constituiu a regra da sua existência. “Tirei disso um
prazer indescritível, mas sem nunca ter muito boa consciência”, escreveu numa
carta com data de 31 de Janeiro de 1882. É visível na estrutura de “A Viagem de
Pedro, o Afortunado” esse estado de encantamento. Se a peça pode ser olhada
enquanto “resposta” eivada de ironia e incandescente claridade ao “Peer Gynt”, de Ibsen,
não é menos verdade que exala deste sonho que aos poucos apodrece até ser
coroado com as cores esplendorosas do “kitsch”, um espírito e uma vitalidade
quase infantis. Fernanda Lapa é taxativa: “Cada vez estou mais convencida que o
nosso amigo Strindberg resolveu fazer um ‘remake’, irónico, do ‘Peer Gynt’...”
Porém, e este será um dos aspetos mais interessantes da peça, explorado pela
encenadora com inteligência e exuberância, à medida que o protagonista, Pedro,
troca a inocência e a
inconsciência pela aprendizagem do poder, do prazer e do desejo e, em última instância,
do amor, também a peça vai mudando de registo. Passa do conto de fadas para a
crítica social e política, desta para um tom de “music-hall”, a seguir para um
registo dramático. E, por fim, o “happy ending” que um manto de dúvida, vaga e inquietantemente,
obscurece. “Cada ato parece de uma peça diferente”, admite, divertida, a
encenadora.
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